Algumas pessoas são feitas da matéria dos sonhos. Outras são feitas de música. Se você duvida, corra, vá ver Elis, a Musical, cartaz do Teatro Oi Casa Grande, uma prova irrefutável desta verdade simples. Em cena, você vai ver uma atriz perigosa: ela tem o dom de arrebatar o coração da plateia, roubar a alma do público e obrigar os cérebros a mudar a frequência da relação com o mundo. Ela é atriz, portanto ela age sobre a sensibilidade do outro. Ela é uma atriz absoluta, premiada com um estranho dom de cantar. E de encantar. Ela é Laila Garin. Importa repetir, em duas palavras: vá ver.
Sim, existem outros motivos para a ordem imperativa, o milagre de comunicação que acontece no palco não é obra apenas da atriz, ela não está sozinha. Há uma direção notável, assinada por Dennis Carvalho, um estreante de ouro no teatro, que captou e amplificou o sentido ardiloso da peça de Nelson Motta e Patrícia Andrade. O texto não chega a ser um deslumbre – se impõe mais como um pretexto cênico do que uma criação preciosa. A sua tessitura dramatúrgica é melhor resolvida do que a estrutura de Tim Maia – Vale Tudo, o Musical, uma simples incursão biográfica.
O grande segredo deste original de agora repousa em uma estrutura maliciosa, uma conciliação sutil entre o documentário, o relato cronológico de vida e de carreira, no primeiro ato, e o inventário afetivo, a explosão sentimental, no segundo ato. Percebe-se com muita nitidez a proximidade de Nelson Motta com a estrela e o mundo da música. Estes dados são explorados para jogar para a plateia a construção da imagem pública da cantora e, logo, materializar o turbilhão de emoções que nos une agora e sempre a Elis Regina, sem qualquer apelação ou incursão no magma de dor de sua morte.
Dennis Carvalho trabalhou esta dualidade com extremo requinte. A sua habilidade transparece na tradução feliz do confronto entre a individualidade exuberante da artista e a massa, a luta pela fama desde a infância e o desejo de recolhimento, e na contraposição delicada entre quadros biográficos íntimos e públicos. A constatação é natural: Dennis Carvalho não deveria sair do palco. É verdade que as cenas íntimas ficam pequenas demais, um tanto televisivas. Mas a beleza do uso cenográfico dos corpos dos atores e dos grupos é um fato histórico para aplaudir de pé. Além da indicação de fatos, pessoas, lugares e situações, os grupos e os corpos exalam humor, enveredam por brincadeiras, coisas que não podem faltar quando o assunto é Elis. Destaque-se, entre os vários achados, a cena do cabelereiro, as mulheres sob secadores e bobbies, imagem esperta para tratar de marcianos (Alô, Alô, Marciano). Ou a sequência da viagem para o Rio. Ou o encontro com Lennie Dale…
Enfim, tal resultado acontece também porque Dennis Carvalho conseguiu trabalhar em equipe com maestria, extraiu o melhor dos excelentes profissionais escalados para a produção. A coreografia de Alonso Barros vai de filigranas gestuais delicadas aos painéis coletivos impressionantes, além de citações humoradas dos tiques e toques dos corpos em diferentes momentos do passado recente. A cenografia de Marcos Flaksman concilia projeção, cenoplastia e cenarização. A luz de Maneco Quinderé desenha as cenas, sublinha os movimentos, colore os climas e as intensidades afetivas. O figurino de Marília Carneiro materializa épocas, variações sociais, fatos e atmosferas emocionais.
Se a direção de cena comove, a direção de ator induz a reconstituições, sugestões e criações de grande efeito. Felipe Camargo esculpe em sedução, inteligência e cinismo a contraditória figura de Ronaldo Bôscoli, levanta a plateia com a divertida cena em que ousa cantar com graça o Lobo Bobo. Claudio Lins revela todo o encanto de Cesar Camargo Mariano, se afirma em definitivo na linha do galã brilhante e eletriza a sala na cena da separação. Danilo Timm revive o carisma, a força e a magia de Lennie Dale. Ícaro Silva traz a bossa alegre e companheira de Jair Rodrigues. Peter Boos (Henfil), Caike Luna (Miele) e Leo Diniz (Tom Jobim) abrem as comportas de um passado recente de extrema força nos personagens biográficos e, ao lado do numeroso elenco, assinam cenas de encanto, humor, beleza e muita música quando integram as cenas coletivas e as coreografias.
A direção musical e os arranjos de Delia Fisher se instauram em cena com precisão cirúrgica, densidade perfeita, fazem a música de Elis Regina ressurgir avassaladora. O recorte musical oferecido está acima de qualquer restrição que se possa cogitar fazer. Todas as facetas da obra da cantora afloram com nitidez, ainda que sempre se possa ter algo a mais para desejar, pois uma deusa da canção catalisa um vendaval de afetos, conecta a multidão com o infinito.
Se, para as platéias muito jovens, o primeiro ato pode soar um pouco longo e excessivo, detalhista demais, para o público mais maduro, que viveu a época, trata-se de um banho de música e de memória, uma preparação intensa para a vertiginosa espiral de emoção do segundo ato, em que a fama se tornou cotidiana, turbinou a dor de viver. Elis Regina era feita de música, condição existencial que faz com que haja uma deliciosa proximidade entre ela e a jovem Laila Garin. Mas o pior de tudo, para desagrado supremo dos que não gostam dos musicais, é constatar que todos, em cena, foram feitos da matéria dos sonhos, aquela matéria que liberta e irmana todos os homens. E aí, o resultado é simples – este será um dos nossos maiores musicais de todos os tempos. Pegue o lenço, abra o coração, dê uma sacudida no seu espirito e vá ver: você merece, pois algum dia você quis falar com Deus e Elis Regina lhe inspirou.