Crítica O Sosia

Existe um teatro cujo objetivo é tocar a própria definição da vida, um pouco na suposição de que o ser humano é incompletude e precisa se reinventar. A cena teatral seria, então, o seu maior aliado, possibilidade de transformação interior. O motor deste palco deve ser o vazio abissal da existência, em que a arte se questiona para questionar as pessoas. É um teatro revolucionário, mas que se distancia de Brecht e do teatro político de intervenção direta ou de formulação cartesiana de propostas de ação. Ou de pensamento. Em uma leitura simplificada, mas produtiva, a dramaturgia alemã, do século XX para cá, poderia ser dividida nestas duas vertentes: a política e a existencial ou de invenção. Na vertente dedicada à ‘arte política da arte’, em atrito com o teatro político de Brecht, o grande nome é Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), infelizmente um dramaturgo muito pouco traduzido e nada encenado no Brasil.

 

Para a felicidade dos cariocas amantes de teatro, um grupo jovem, Tentáculos Espetáculos, optou por levar ao palco pela primeira vez no país a interessante peça radiofônica O Sósia, escrita em 1946 e encenada em 1975 na Alemanha. O texto é adorável – denso, bem humorado, ousado, impregnado por um olhar crítico mais do que ácido a respeito do sentido da existência e uma crença amarga no poder da arte. O Olhar de Dürrenmatt.

 

Em cena, dois homens, um diretor e um escritor, conversam sobre a criação de uma história radiofônica. Instado pelo diretor, o autor cria e recria a história de um homem acordado no meio da noite por seu sósia, que vem lhe anunciar a sua condenação por assassinato. Assim, a trama caminha em duas linhas paralelas – a da invenção dramatúrgica e a da ação dramática. E revela a face inexorável do destino do ser humano, a sua culpa fundante, além e adiante de qualquer Corte, a falha humana patética, original, condição hábil para fazer de todo ser um joguete nas mãos das instituições e das instituições um solene espaço vazio. A proposta é forte. E apaixonante. É filha direta do pós-guerra, o dia seguinte da mais horripilante carnificina que os humanos promoveram contra si próprios.

 

A direção de Guilherme Delgado buscou valorizar o trabalho dos atores, bem desenhado e orgânico no caso de Daniel Archangelo e Ricardo Ventura. A cena evoca o mistério dos filmes policiais e recorre a uma indefinição de época, aposta em um clima de coisa antiga, padrão reforçado pelos figurinos e sublinhado pela luz. Em um cálculo um pouco redundante, são usadas gravações, um recurso um tanto arbitrário, inclinado a provocar dispersão, esvaziamento do clima. Para esta perda, também contribui a implantação da cena, no pequeno palco da Casa da Gávea – projetada muito para a frente, jogada no proscênio, vários detalhes da composição e da ação ficam perdidos, posto que invisíveis. Efeito semelhante provoca a nudez da atriz – Aline França, em uma atuação corajosa, porém marcada por certa insegurança e comprometida com a nudez desnecessária para a linha forte do texto.

 

A cenografia de Carlos Augusto Campos oferece um desenho de espaço muito adequado ao texto – tanto pode ser um lugar de trabalho de radio, como pode ser o estar de uma casa, uma mesa de bar, pontos de partida para a construção da trama central e apoio para a indicação da ação sugerida. Neste caso, o desenho da luz se destaca como ferramenta importante para a construção de cenas simbólicas, tais como as do uso dos copos e do vinho, as da aparição da mulher e as cenas que falam/mostram diretamente a morte.

 

Atividade integrante do Ano da Alemanha no Brasil, a peça é um trabalho singelo, mas sério, um caminho louvável para ampliar o lugar da dramaturgia e da cultura alemães em nossa cidade. Poucas dramaturgias no mundo revelam preocupação tão profunda e frequente com a definição do ser humano – em uma terra como a nossa, em que a vida humana com frequência é tratada como tranqueira descartável, é um luxo contar com cenas de Dürrenmat. Resta ao publico de teatro duas opções – ver e tornar a ver. Não perca.