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A decisão foi política – verificar como está a vida do público consumidor de arte no Rio de Janeiro. A escolha foi fácil – um show de música popular, categoria grande espetáculo, em que eu poderia me mover bem anônima, situação que não seria  garantida em uma peça de teatro. Mas, diante do resultado assustador, fiquei com vontade de tentar um dia uma peça, tipo grande espetáculo, para verificar como andam as desventuras deste sujeito tão sofrido, o cidadão público de arte no Rio de Janeiro.

 

O primeiro passo, comprar ingresso: comodista ou moderna, não sei qual o adjetivo mais adequado, optei por comprar on line, grave pecado. A primeira dificuldade foi o enorme sucesso do show – a escolha era a de comprar os melhores lugares possíveis, dois assentos vips dos vips. E a itinerância pelas páginas e dias parecia não terminar. Não havia mais lugar bom que prestasse em qualquer dia, apesar da antecedência da compra: uau, que sucesso!  Sem opção, a saída foi comprar dois lugares na mesa 421 do Vivo Rio. Agora, depois do show, preciso dizer – como o Vivo Rio tem coragem de vender tais lugares para alguém? São péssimos! Mas voltaremos ao tópico.

 

Depois da compra, havia a necessidade de resgatar os ingressos, pois não poderia imprimir os papeluchos em casa, como faço sempre que compro no ingresso.com, infinitamente mais interessante do que o tal do ingresso. rápido. Escolhi uma loja – da Vivo – na esperança de que o parentesco tornasse a empresa mais fácil (a minha outra vez com esta firma foi em uma loja de biquínis e foi uma maratona). Pois fui duas vezes até a dita loja da Vivo sem sucesso – parece que o sinal cai ou coisa que o valha e o bilhete não chega! Por isto, aliás, vale o parêntese,  é claro que troquei de operadora este ano… Em resumo: deixei para pegar lá, na portaria, na hora. E consegui, finalmente!

 

Os funcionários receptivos do Vivo Rio são a melhor coisa da casa – nota dez, sem queixas. E dá para ficar bem feliz até… sentar na mesa 421. Com honestidade, as duas alas laterais da plateia do Vivo Rio não existem, já se sabe desde que a casa abriu e constatei a tragédia nas peças de teatro que fui ver lá. A bem da verdade, vale destacar que o espaço não funciona para teatro só por ser caro, como se costuma dizer. O problema maior mesmo é que, na montagem de peças, boa parte da plateia fica sem ver nada. Mas, no caso do show Verdade uma ilusão, chega a ser roubo cobrar do consumidor R $ 280,00 reais por estes não-lugares. A coisa é pior do que teatro lateral. Não se vê o centro da cena – e mais adiante tentaremos explicar o que faz com que esta situação seja um ato lesivo inadmissível contra quem pretende ver arte, pelo menos este show. Mesmo que o público habitual dos shows esteja acostumado a aceitar qualquer coisa só para ‘ouvir’ o espetáculo.

 

Vale dizer que, por um outro aspecto, a noite corre bem na cegueira, sem problemas, pois, desde o apagar das luzes e os primeiros acordes, um clima desbragado de festa se instala no salão. Parece que estamos no baile do grêmio sentimental eu te amo periferia para coroar a rainha da comunidade e o que menos importa é o frêmito grave da grande arte: ninguém precisa ver nada, apenas banhar-se nas canções, gritar, assoviar, cantar, estremecer o corpo e vibrar em um semi-transe muito praticado no Brasil. Marisa Monte está sendo alçada ao panteão de deuses absolutos da MPB e o show é o rito de passagem. Um acontecimento retumbante sim.

 

É bonito de ver – sempre comove assistir à consagração de um astro, em especial quando se viu a menina despontar tímida mas resoluta um par de décadas atrás. Mas, convenhamos, que público… O Vivo assombra o freguês ao trazer à lembrança a pobreza de conceito que imperava no Canecão  (e talvez a comida do Canecão seja melhor, pois hoje é só fato de memória, não somos mais obrigados a comê-la ou a vê-la, enquanto a baixa culinária do Vivo está bem concreta diante de nós!). Todavia, a plateia de um show em tese mais classudo como o de MM é capaz de chocar por sua requintada falta de educação – para ficar em poucos exemplos: conversa-se aos berros durante o show, compra-se ingresso barato e tenta-se invadir a área perto do palco, tenta-se roubar o garçom, tenta-se roubar bebidas de outra mesa… enfim, algo perto da selva social.

 

Em compensação, o show é histórico, mesmo que só visto de viés e fatiado. Quanto a este problema, o mais central e grave, sem trocadilho, importante por desnudar a imensa carência do Rio de Janeiro hoje de casas decentes para shows, teatros, música e musicais, ele se tornou mais opressor por uma peculiaridade interessante da proposta de Marisa Monte. Vamos ao fato, sem deixar de reconhecer que está acontecendo uma visão nova, uma revolução, algo de extrema importância para o cenário carioca de arte e cultura.

 

O primeiro ponto é o desejo da cantora de buscar uma aproximação entre música popular e artes plásticas. A coisa tem um charme irresistível, pois a mpb, próxima da canção das ruas e das pulsões expressivas imediatas, sempre foi olhada como filha enjeitada e desprezível das musas – para ilustrar a bastardice, basta lembrar os trechos de Lima Barreto sobre a repercussão social do violão de Policarpo Quaresma. Então, enfim, a nobreza artística! – mas ela acontece um tanto como nobreza comprada, no saldo final, pois as artes visuais entram em cena ainda como ilustração, mais ou menos bem sucedida aqui e ali ao longo da apresentação, mas ilustração. Não há ainda uma relação orgânica.

 

E há uma enorme frontalidade, até um retrocesso em relação a uma certa linha de shows recentes, em que os artistas buscaram grandes espaços dilatados com telões de projeção, eliminação de paredes laterais da caixa da cena e até mesmo o uso de palco elisabetano. Em resumo, o espetáculo foi concebido dentro da caixa do palco italiano, de acordo com uma visão em perspectiva renascentista, referencia de arte sem qualquer relação produtiva com os artistas contemporâneos escolhidos. Assim, a cena prevê um olhar e um espectador que o Vivo Rio não se preocupa em oferecer.

 

No show de Marisa Monte, não foi usada a filmagem-projeção da cena para “compensar” a distância e os péssimos assentos laterais. Em tais condições, portanto, não é para se ver mesmo a obra proposta. A noite é mais para cantar junto e festejar, do que para travar uma relação inteligente e inovadora com o universo da arte. A situação sublinha a importância e a urgência da luta pela construção de casas de espetáculo de excelência na cidade, pois os espaços disponíveis, poucos, caros e com muitas deficiências, simplesmente criam obstáculos inaceitáveis para a pesquisa de linguagem da arte. São casas caça níquel. Talvez se o show de Marisa Monte fosse no Maracanãzinho o resultado estivesse mais perto do projeto da artista e causasse um impacto de arte maior na plateia.

 

Porque o show é divino – é um trabalho de ourivesaria requintada. Desde o figurino esfuziante de Rita Murtinho, de cores, rendados, brilhos, transparências e movimentos exemplares, até a luz de extrema sofisticação, de Zeluis Joels, o que se vê em cena é maestria absoluta. A direção de Leonardo Netto e Claudio Torres é exata no desenho da espacialidade, na indicação dos movimentos limpos, plenos e intensos, nos climas, ainda que a velha estrutura número-efeitos-blecaute persista em pauta. A escolha das canções garante um inventário da trajetória da artista adequado ao momento especial vivido, de aclamação absoluta. A curadoria de Luisa Duarte é inteligente, reuniu artistas responsáveis por trabalhos densos, inventivos, consegue bons casamentos de linguagem, mesmo vistos aos fiapos, mesmo que não se possa ter uma ideia objetiva do jogo construído a partir da lateral. E mesmo que o uso das artes plásticas por vezes insinue ser apenas uso, evoque a decoração ou insinue algum desvario afastado da percepção da obra musical. Há algum desvão de linguagem ainda, a contundência das artes plásticas por vezes se perde – mas o valor do projeto é imenso: há beleza. E projeto cultural sério. E ainda tem a música – e que música. Marisa Monte canta de um lugar muito especial – um pouco como se Roberto Carlos chegasse à universidade, uma espécie de canção romântica universitária. A voz rascante, moderna, sugere o canto livre das mulheres de nosso tempo, sem vergonha de pensar, amar, contemplar o mundo e abraçar todo o lirismo da vida. A cantora e a compositora possuem extrema força artística.

 

Enfim, uma beleza, um encanto – uma grande consagração muito merecida, em que os fãs urram palavras de amor. Tomara que logo tenhamos casas de espetáculo à altura de um talento tão sensacional, para que ela envolva sua plateia completamente em arte. Enquanto esta graça não vem, que muitos jornalistas enfrentem anônimos esta injustiça chamada casa de espetáculos atual, para tentar ajudar a melhorar a vida de todos.