Crônica teatral
A pergunta está sempre presente. Quando se fala em teatro numa roda de amigos, numa festa de família ou até num encontro casual, logo um interlocutor joga no ar – ah, na sua opinião, como está o teatro carioca hoje…?
Quem é de teatro, sabe: difícil responder. São muitos os fatores em jogo e a visão do palco depende muito do olho (e do cérebro, e do coração…) de quem o contempla. Um detalhe da cena do momento, porém, choca a sensibilidade do público que adora frequentar as casas de espetáculos: a imensa quantidade de monólogos, por toda a parte. Do jovem amador ao celebrado profissional, uma bela maioria desposou a fala de si, digamos. Como se o teatro tivesse se transformado numa espécie de monobloco do eu sozinho.
Os espectadores apaixonados insistem em pedir explicação para esta transformação curiosa da cena nacional. Quem é mais velho, se formou vendo montagens teatrais que envolviam elencos enormes. Às vezes a ficha técnica trazia vários nomes de primeira grandeza – e eles podiam até aparecer como coadjuvantes, sem maior projeção. E estavam felizes, sentiam orgulho do teatro que defendiam.
Naqueles tempos, naquela visão de teatro, fazer um monólogo era uma grande ousadia: não era para qualquer um, não era rotina. Se a lista dos grandes atores brasileiros é examinada com atenção, constata-se que a maioria absoluta dos grandes astros passados nunca esteve em cartaz com um monólogo… Alguns casos históricos eram justificados sob uma aura de constrangimento – a peça era um “cavalo de batalha”, o tal astro precisava muito fazer bilheteria, precisava de dinheiro. Agora, os monólogos viraram uma rotina. Contraditoriamente, nunca existiu no país um rol de políticas de subvenção/isenção tão amplo.
Ao mesmo tempo, as grandes montagens, dedicadas aos maiores textos de bela dramaturgia nacional e universal, sustentadas por elencos numerosos, sumiram dos tablados. Faz algum tempo, o teatro brasileiro – especialmente o carioca – passou a ignorar os grandes clássicos, como se eles fossem ultrapassados ou obsoletos. Já existem algumas gerações de brasileiros que desconhecem as cenas de Martins Pena, Artur Azevedo, Jorge Andrade. A única chance oferecida aqui e ali para desfrutar a grande dramaturgia é algum Nelson Rodrigues.
Então, perguntemos. Como se deu esta mudança tão profunda na vida teatral do país? Não precisamos mais do grande teatro? Só nos interessa o encontro íntimo, confidencial, as memórias e documentos de vida, os relatos literários narrativos, as denúncias dos problemas sociais dilacerantes que soterram o cotidiano dos cidadãos? Para quê serve o teatro – apenas para confrontar as causas imediatas, sofrer mais um pouco com elas, para seguir adiante numa espécie de procissão de penitentes high tech? As grandes causas da vida se tornaram obsoletas?
Listar o número de monólogos em cartaz hoje é um pouco desalentador. Mas estudar o perfil envolvido é interessante, pois revela um “teatro da sofrência” inédito na história. Sem que se discuta a qualidade dos trabalhos, pois alguns monólogos são arrebatadores de verdade, tornam-se fatos cênicos históricos, reviram os valores sociais das plateias, constata-se que a maioria circula ao redor do reforço do “eu”, com uma mudança radical no conceito de dramaturgia. São peças-depoimento, peças-confessionário, peças-documentário, peças-performance, peças-aula, peças-palestra… Em geral, roçam a superfície da vida, vivem da cumplicidade do público, que vivencia um ritual catártico bastante ególatra.
Um fato curioso: ficou bem mais fácil ver elencos numerosos em cena nas montagens amadoras, alternativas, ou dos grupos dedicados à pesquisa, do que na rotina profissional, de mercado. As montagens assinadas por conjuntos como a Cia Armazém de Teatro e o Galpão, por exemplo, reúnem um número significativo de artistas. E sacodem a placidez da vidinha teatral confessional, abrindo a cortina para grandes abismos humanos.
Esta semana chega ao Rio um dos grupos teatrais mais importantes da cena brasileira atual, a companhia curitibana Trupe Ave Lola. A equipe traz para o Teatro Nelson Rodrigues o espetáculo Cão Vadio, com dramaturgia e direção da inquieta artista Ana Rosa Genari Tezza.
São oito atores em cena, numa montagem em que a linguagem do cabaré se associa ao universo do realismo fantástico. A música executada ao vivo foi inspirada pelo cancioneiro latino-americano e o texto dialoga com Vargas Llosa, Garcia Marquez, Borges, Shakespeare e Tchekov. Portanto, houve um extenso trabalho de pesquisa, a busca de um pensamento cênico generoso. A proposta é imperdível, lida de imediato com a discussão a respeito dos rumos do teatro hoje.
Mas há algo mais. Uma outra intervenção contribui para lançar o teatro de grupo no centro dos debates da atualidade: a Companhia Ensaio Aberto acabou de inaugurar um novo teatro no Armazém da Utopia, o Teatro Vianinha, o principal espaço de apresentação da equipe, com uma plateia de 272 lugares, numa época em que o teatro profissional se limita a acompanhar o fechamento dos teatros. Lá está em cartaz, em temporada gratuita e, a seguir, em temporada popular, uma nova montagem de O Banquete, de Mario de Andrade, com um elenco de 21 atores e uma equipe de arte imensa, dirigida por Luiz Fernando Lobo.
Contudo, atenção: este quadro surpreendente, em que os alternativos se tornam protagonistas enquanto forças de produção, não se aplica, de jeito algum, ao universo do teatro musical. Sublime ironia… Há uma reviravolta histórica notável em cartaz na cena do Rio: o palco do musical tem se afirmado como um turbilhão de almas em estado de graça, para sacudir a sensibilidade das plateias; poucos musicais exploram o monólogo.
Além da realidade fervilhante de produções e invenções, temos agora até mesmo uma notícia verdadeiramente retumbante, como recomenda a canção que rege o país. Vai estrear em novembro, no Teatro Adolpho Bloch, Rio Uphill – o musical, o primeiro musical brasileiro concebido em Nova Yorque, onde esteve em cartaz, rigorosamente estruturado segundo os procedimentos “dramatúrgicos” característicos do gênero e com temática carioca.
Isto significa a existência de um libreto criado em sintonia com uma partitura especialmente composta, vinculada à ação de forma direta. E uma trama voltada para a estrutura dilacerada da sociedade brasileira, o paradoxo asfalto-favela. Sob a direção de Gustavo Barchilon, a peça reúne um elenco bem numeroso, com atores profissionais e nomes alternativos, oriundos da vida em comunidade. A trilha combina uma pegada de musical contemporâneo com samba, forró, funk, rap e rock.
De imediato, uma pergunta bem provocante se impõe. É para fazer tremer as almas devotadas cegamente ao teatro de texto. Depois de ser tão combatido, desde o século XIX, tanto pelas elites intelectuais como pelas grandes personalidades do drama, depois de mal falado pela direita e pela esquerda, finalmente o musical assumiu o seu lugar de senhorio do teatro brasileiro?
Afinal, quem sabe seduzir a alma cidadã do país, a cena dramática dialogada ou a visão espetacular de seres livres, cantando e dançando em cena com emoção diante do público? Para os fortes, a situação parece clara: o teatro carioca vai muito bem, obrigada. Ele está vibrante nos palcos, cantando e se requebrando, fazendo os corações nos teatros vibrarem emocionados sob um mesmo ritmo. Para os que são escravos das cenas soterradas por palavras, talvez a constatação martirize.
Talvez seja obrigatório reconhecer uma crise de valores teatrais de enormes proporções, na qual grandes atores estão se transformando em desempregados solenes? Para pensar o que acontece agora, é fundamental ultrapassar o preconceito, abandonar o apego ao pseudo conflito entre drama letrado e drama musical. Afinal, convenhamos: se Wedekind virou musical, se Brecht funcionava com música, o que isto quer dizer? Vale arriscar uma constatação bem implicante – tudo indica que o palco, aqui, sucumbiu diante da canção, forma ideal adequada para novos tempos teatrais e sociais. Fazer o quê? Liberte-se. Limpe a garganta, sacuda o corpo, cante e aproveite.
Dicas para conferir:
ESTREIA: CÃO VADIO Cia Trupe Ave Lola Dramaturgia e direção: Ana Rosa Genari Tezza Elenco: Ane Adade, Cesar Matheus, Eduardo Giacomini, Evandro Santiago, Helena Tezza, Marcelo Rodrigues, Olga Nenevê e Regina Bastos ESTREIA: 19 de setembro (5ªf), às 19h. Teatro: CAIXA Cultural Rio de Janeiro Teatro Nelson Rodrigues Av. República do Paraguai, 230 – Centro / RJ |
EM CARTAZ:
O BANQUETE
Cia Ensaio Aberto
Ficha Técnica
Texto de Mário de Andrade
DRAMATURGIA João Batista
DIREÇÃO Luiz Fernando Lobo
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Tuca Moraes
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Dani Carvalho
CENOGRAFIA J.C. Serroni
FIGURINOS Beth Filipecki e Renaldo Machado
ILUMINAÇÃO Cesar de Ramires
DIREÇÃO MUSICAL E TRILHA ORIGINAL Felipe Radiccetti
PROGRAMAÇÃO VISUAL Marcos Apóstolo e Tatiana Rodrigues
CIÊNCIA DO NOVO PÚBLICO – Coordenador Fernando Porto
ELENCO
Janjão Leonardo Hinckel
Sarah Light Tuca Moraes
Siomara Ponga Rossana Russia
Felix de Cima Gilberto Miranda e Emerson Manguete (stand in)
Pastor Fido Grégori Eckert
Narrador Luiz Fernando Lobo
Abian do Terreiro Caroline Gerhein
Zé Pilintra Mateus Pitanga
Pintura Mariana Pompeu
Indígena Tainá Baldez
Ninfas do banquete Karolyna Mendes e Mariana Pompeu
Mordomos Eduardo Cardoso e Felipe de Gois (mesa e clown)
Batuque na Cozinha Estêvão Miala
Coro de garçons, garçonetes, estátuas e povo de terreiro
Caroline Gerhein, Daniel de Mello, Eduardo Cardoso, Estêvão Miala, Felipe de Gois, Grégori Eckert, Ju Costa, Karolyna Mendes, Leonardo Hinckel, Mariana Pompeu, Mateus Pitanga, Miguel Kalahary, Tábata Porto, Tainá Baldez , Thaise Oliveira, Tom Freitas.
ASSESSORIA DE IMPRENSA LEAD Comunicação
Flávia Tenório
FOTOS E IMAGENS DE DIVULGAÇÃO Thiago Gouvea