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Nos braços do povo…

O Brasil nos ilude. O tempo, por aqui, não passa. Ou melhor – como, afinal, de verdade, o tempo não para nunca, somos vítimas de uma estranha alucinação temporal. O tempo passa de forma estranha, como se fosse uma permanência.

Esta ideia surge implacável quando se estuda teatro brasileiro. Em qualquer época teatral do país, é batata – o teatro está lá, firme e forte, mergulhado em crise. A coisa acontece de tal jeito que não dá para escapar: é preciso reconhecer que a crise do teatro brasileiro é a forma de existência do palco nacional.

Se olhamos o século XIX, logo deparamos com a tal moça, aflita, descabelada. Nervosa, ela envolve todas as figuras do século da independência. Surge tão forte que logo derrota carreiras, demole talentos, amargura biografias. Se a literatura não dava casaca, ao menos não dava rasteira: nomes como José de Alencar e Machado de Assis tentaram se tornar dramaturgos, mas desistiram… mergulharam nas letras e se tornaram gigantes. Artur Azevedo insistiu na cena e hoje já é quase um ilustre desconhecido.

Bom, o estudante dominado pela esperança pensa: era o século de nascimento do país, naturalmente se pode explicar a crise. Caminhemos – vamos adiante, avante. Porém, ledo engano, no século XX, a página não muda. Com um detalhe realçado: apesar das inteligências nativas, notáveis, um fato se agrava no novo século. Ninguém se entende quando o assunto é a crise do palco! Ninguém explica de forma convincente a anemia teatral do país.

Para uns, a fraqueza congênita do teatro brotou da influência portuguesa. Outros apontam o dedo mais adiante: a França teria sido a opressora. Mentes mais objetivas desviam o foco para a própria cena do país e, aí, a brigalhada fica bem interessante. Os intelectuais culpam o gosto rude do povo inculto, que teria seduzido os talentos elevados, jogando-os na vala deplorável da arte de expressão baixa.

Os populares, ávidos por sucesso mas nem sempre abençoados por cifrões, miram o esnobismo dos colonizados autores prisioneiros de suas torres de marfim. A seu ver, a cegueira deles criou um teatro insípido e excomungou o que era saboroso. E, ao final, ninguém se entende, uma pancadaria típica do teatro de cordel do século XVII…

Em vários locais – livros, artigos de jornais, declarações em entrevistas – ao longo de todos os tempos se pode encontrar as mesmas constatações surpreendentes. A crise grassa. O palco é um moribundo. Tudo tira público do teatro. O vilão muda de nome, mas ataca sempre. Há o circo, a procissão, a chuva, as ruas mal calçadas, os cavalinhos, a censura, a política, o governo, os assaltos, os transportes ruins, a praia, o cinema, a televisão, a internet…

Uma constatação imediata parece óbvia: nunca surgiu um movimento efetivo de análise e – quem sabe? – de diagnóstico, mais ou menos preciso, desta zica monumental. E também nunca se conseguiu definir, como política cultural de impacto, o enfrentamento da sempre presente crise do palco nacional. Soluções paliativas pontilham toda a trajetória deste calvário.

Um dos maiores intelectuais do teatro brasileiro, se não foi o maior de todos, Anatol Rosenfeld, escreveu um texto muito curioso a  respeito: Teatro em Crise, em 1973. Logo de saída o artigo surpreende ao considerar dados do censo para pensar o tema da falta ou não de público, da existência ou não de interesse da população pelo teatro.

Fica evidente, nas suas considerações, a existência de um interesse social por teatro na época – em particular por parte dos estudantes, com certeza o público que hoje figura nas plateias como as senhorinhas das vans. A televisão e o cinema, na sua análise, não afetam a integridade do palco. Apesar da fatia pequena, existe interesse social por teatro, ainda que a arte esteja longe da saúde.

Ele situa, ao mesmo tempo, a tendência de alguns pensadores da época, inclinados a ver o teatro como uma arte ultrapassada, presa à expressão do ator, do ser humano, da presença, quando a palavra e a imagem se inclinariam a impactar muito mais a percepção de um mundo que se tornara “planetário”.  Um exemplo hábil da cinematografia seria Antonioni, em particular o final de O Eclipse, vazio de humanidade. Segundo esta corrente, o teatro seria uma arte acabada, morta.

Para o ensaísta, tais visões pessimistas não se justificam, estão descoladas das necessidades da sensibilidade humana. Apesar das dificuldades, Anatol Rosenfeld indica a existência de pontos altos do teatro brasileiro da época – o teatro de Guarnieri, o teatro do Oficina e de José Celso antes de Gracias Señor… Note-se, aliás: estes exemplos eram sucessos junto ao público estudantil.

Quer dizer – mesmo para um pensador de alta voltagem, ainda que este seu texto seja um texto rápido, o grande tema do encontro entre o teatro e as grandes plateias não aparece como um desafio para pensar caminhos para a crise. Por sinal, as linhas dedicadas ao novo teatro ritualístico proposto por José Celso são divertidíssimas e, com certeza, muito lúcidas, denunciam o abismo criado com a ruptura da distância entre palco e plateia. Seus comentários demonstram por quê uma parte considerável da plateia teatral da época desistiu da arte. Mas…

Importa destacar: o autor mantém uma visão do fato teatral em que há uma forte estratificação valorativa da arte. Ele cita João Bethencourt, as inquietações do autor num congresso de 1964. Mas não aborda o ponto central de tensão indicado pelo comediógrafo, a fragmentação (litigiosa!) do meio teatral. Ele também não aborda o mercado de comédias, ainda estável nos anos 1970, nem considera pensar algo a respeito do valor da obra de Bethencourt, este que é um dos maiores autores nacionais. 

Naqueles tempos, nós, estudantes, plateia de teatro, junto com os intelectuais, torcíamos o nariz para o teatro comercial. Lamentávamos a “queda” de José Renato, fundador do Arena, entregue a comediazinhas popularescas do Teatro Mesbla, aliás uma das moradas de João Bethencourt. Ríamos com a genialidade de Bethencourt, mas apagávamos rapidamente das ideias o pecado de virar o mundo de cabeça para baixo graças a ele.

Quer dizer, assim como no século XIX, há sempre um grande excluído do raciocínio: o povo. Ele é o suspeito-mor da ruína do teatro nacional, uma arte requintada que ele sempre insistiu em arrastar para a sarjeta. O teatro seguiu assim, dividido, na tensão e em caminhos estanques, até o momento em que o povo, finalmente sem oferta de um teatro para chamar de seu, resolveu fazer outra coisa… e deixou o teatro entregue às suas preciosidades.

No texto, fica evidente que o tema teatro e povo não se impõe. E, no entanto, esta era uma vertente importante do tempo, logo derrotada por causa da projeção de um teatro de ambição intelectualizante. Desde o final dos anos cinquenta começou a surgir uma vertente de dramaturgia, em especial no Nordeste, em que nomes fundamentais da cena nacional militaram com resultados sensacionais.

Uma lista rápida reúne Hermilo Borba Filho, Luiz Marinho, Lourdes Ramalho, Luiz Mendonça, Altimar Pimentel, Aldomar Conrado, Ariano Suassuna. Tais autores, apesar de suas poéticas particulares, trazem para a cena em diferentes graus a plenitude da questão popular, numa visão direta, palpitante – ditos, rituais, tradições, folguedos, personagens, formas criativas, crendices…

Ver uma montagem de Viva o Cordão Encarnado, de Luiz Marinho, no Teatro João Caetano lotado, foi uma das experiências teatrais mais emocionantes que já vivi. A energia da cena, o sabor intenso do texto, a pulsação do jogo palco-plateia, a euforia do publico na saída – tudo, enfim, fala de um teatro popular que não tivemos por aqui como tradição contínua.

O tema transborda dos fatos atuais: fecha-se o ciclo da pandemia, os teatros começam a reabrir e a pergunta que não quer calar pula de todos os lábios – o público vem? Existe esta figura, o público? Alguém gosta deste teatro que está em cena, além da própria classe teatral?

Quais as razões que levam uma classe teatral como a nossa, tão politicamente engajada, a se devotar a fazer um teatro encerrado sobre si, tão preso a valores intelectuais, experimentais e herméticos, tão inacessíveis (e desinteressantes!) para o público em geral? O que leva a classe teatral a casar com a academia a qualquer preço?

A pergunta nasce natural do anúncio de volta à cena de A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong, de Clarice Niskier, com músicas de Zeca Baleiro.  A peça é, sem dúvida, um dos cartazes mais intrigantes da cena brasileira recente. Estreia de marco de 2020, ela foi derrubada do palco pela covid-19. 

Trata-se de uma colagem de textos, costurada pela atriz autora, alinhavados por uma pergunta ácida – é possível amar o Brasil? Agora, quando tantos partem, quais as razões para ficar? Qual a ligação possível com esta terra, esta cultura, o jeito de ser daqui? O que é ser brasileiro?

Sozinha em cena, a atriz encontrou um fio condutor de grande impacto para nortear a sua apresentação – a música de Zeca Baleiro. A escolha importa muito para o debate acerca do teatro enquanto arte popular. Sim, as perguntas de fundo são as perguntas de uma artista da classe média carioca. Talvez no universo popular elas alcancem um perímetro restrito, apesar dos números crescentes de brasileiros pobres dispostos a fugir nas mãos de qualquer coiote.

Mas a ressonância conquistada a partir da música importa muito aqui. Há uma inversão notável da equação antiga do teatro popular brasileiro, berço esplêndido de acalanto da música popular. A MPB, sinto muito dizer, nasceu nos palcos dos teatros revisteiros da Praça Tiradentes, se emancipou e, filha ingrata, abandonou a casa. Portanto, há muito para considerar ao redor desta encenação.

E dá para pensar muito. A vasta obra de Zeca Baleiro é impressionante. Trata-se de uma arte profundamente ligada ao universo de criação de viés nordestino, no sentido da dramaturgia comentada acima, em que o poeta não se vê como estranho diante do território da feira popular.

Clarice Niskier optou por criar esperanças – em cena, ela rememora o seu ato infantil de tentar criar esperanças, o bichinho, numa caixa de armazenar cartuchos de chicletes. A imagem é comovente, na linha daqueles fluxos puros de emoção típicos da arte de origem popular.

Então, o recado é direto para as almas de hoje – se o tempo, na verdade, não espera, criemos, então, as nossas esperanças. Tomara que esteja aqui um sinal de que um novo tempo é possível para o teatro brasileiro. Um tempo novo, distante da velha mania de viver em crise.

A ESPERANÇA NA CAIXA DE CHICLETES PING PONG

FICHA TÉCNICA

Texto, Interpretação, Direção Geral: Clarice Niskier 

 Supervisão de Direção: Amir Haddad 

 Direção Musical: Zeca Baleiro 

 Assistente de Direção: Maria Eugenia Tita (SP)

Criação, Confecção e Ressignificação do Manto Vermelho de Zeca Baleiro: Xarlô 

Iluminação: Aurélio de Simoni

 Figurino: Kika Lopes

Cenário: Jose Dias 

 Preparação da Voz Falada: Rose Gonçalves (Rio)

Preparação da Voz Cantada: Carlos Nascimento (SP) 

Preparação Corporal: Mary Kunha 

Adereçamento dos Instrumentos: Xarlô 

Confecção da Esperança: Fernando Santana 

Pesquisa de Sonoridades Instrumentais: Simone Sou (SP), Bethi Albano (Rio) 

Pesquisa Coreográfica (Dança Charme): Marcus Azevedo 

Direção de Cena, Operação de Luz e Som: Carlos Henrique Pereira 

Arte Gráfica: Carol Vasconcellos  

Cenotécnico: André Boneco

Assistente de Figurino: Sassá Magalhaes 

Assistente de Iluminação: Guiga Ensá 

 Fotos: Zé Rendeiro 

Assessoria Jurídica: Luciana Arruda (SP) 

Apoio Cultural: Plano Consultoria 

Direção de Produção: José Maria Braga 

Realização: Niska Produções Culturais 

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

SERVIÇO:

Estreia: dia 03 de novembro (4ªf), às 20h

Dias 3, 4, 10, 11, 17 e 18 de novembro. Quartas e Quintas às 20h
Ingressos: R$ 50.

Teatro Casagrande 

Shopping Leblon – R. Afrânio de Melo Franco nº 290 Leblon (estacionamento no local)