O teatro e a arte de amar
O mundo existe graças a uma grande certeza, nem sempre reconhecida por estes estranhos animais racionais que o habitam: a lei humana é o amor. Ok, parece uma constatação cafona ou um ataque de religiosidade vulgar? Sessão barata de autoajuda? Cuidado, não se apresse em julgar. Pense bem antes de fechar a sua opinião a respeito.
Um primeiro dado importa reconhecer de saída: sem o outro, não vivemos. Somos inteiramente dependentes dos humanos ao redor. E até mesmo dos distantes, agora, quando a vida anda cercada pela China por todos os lados.
Um exercício simples parece muito saudável: sente-se e medite. Não, não precisa respirar fundo ou levitar. Apenas tente recensear quantas pessoas podem ter sido necessárias para a sua pausa meditativa. Uma avaliação honesta levará a um resultado espantoso – você não sabe de quantas pessoas você depende, quantas pessoas estão ali, ao seu redor, segurando a sua cadeira.
A vida no mundo industrializado tem a sua graça, pois já a cadeira usada por nós carrega, em si, uma multidão. Quer dizer, sentamos no colo de uma multidão… invisível! Da madeira aos pregos e à cola, do ferro, do couro ou do tecido, do plástico e assemelhados, passando por todo o comércio e todo o transporte, um batalhão de mãos se empenhou, no serviço atento, em seu benefício.
E veja: estamos só no simples ato de sentar, nem inventaríamos as roupas, a casa, a comida, todo o resto. É muita gente. Na verdade, eles nem sabiam que era para você, sabiam apenas que um ser humano estaria ali, entregue ao resultado de seu belo trabalho. O amor é cego.
Trata-se de um pacto, um nobre acordo de cavalheiros ou de damas ou, bem melhor, de humanos apenas humanos. Sinto um mal estar brutal quando vejo nos jornais os anúncios, agora frequentes demais, de recall de automóveis.
Lá nos anos oitenta, um amigo muito próximo comprou um lindíssimo carro esporte zero e, protegido pelos deuses, não morreu. A série saíra de fábrica com um grave erro na barra de direção, fatal. O recall salvou a sua vida. Mas isto era um acontecimento raro.
Agora, marcas que considerávamos acima de qualquer discussão de qualidade anunciam recalls. O que está acontecendo? É só aqui, nas terras tropicais, onde não existe pecado? Existe este turbilhão de recalls lá fora? Em resumo, é falta de escola, nossa falta, ou de amor, traço temível da humanidade nesta altura dos tempos?
O sentimento brotou forte, tomou a minha percepção, diante da necessidade de pensar os novos formatos teatrais. De repente, apesar da solidão humana que é o Português, o teatro acontece agora online como uma forma de humanidade profunda e apaga as fronteiras antigas, até fronteiras de guerra. Estamos entregues ao amor universal. Teatro-on.
Não sei se todos os que contemplam este novo teatro sentem esta onda de amor. Passei cerca de um mês recebendo declarações irresistíveis de belos sentimentos de Reynaldo Gianecchini – gente, que voz – e esta apresentação de Amor de Quarentena, um texto de excelente fatura poética, do argentino Santiago Loza, reforçou os meus sentimentos recentes.
Assim, gostaria de conclamar a todos para aderir a um feito bem especial – estamos no amanhecer de um mundo novo, um mundo de encontro e delicadeza, um mundo em que se pode viver outra realidade cotidiana. Na verdade, temos apenas um esboço de um caminho possível. Quer dizer, temos boas intenções, porém nem sabemos ao certo se há de verdade um caminho. A vida humana tem sido uma aventura difícil…
Contudo, convenhamos, chega de ficar olhando a guerra passar pela janela. Chega de ficar com os braços cruzados. Um sentido novo para a vida precisa ser traçado e está ao alcance de cada um contribuir para reforçar este pacto. Não dá para envenenar as cervejas, sabotar as linhas de produção, distribuir agrotóxicos à mão cheia, investir no cinismo.
No teatro, as lições de amor constituem o ponto de partida da carreira – ou existe doação ou nada acontece. Um ator no palco, um autor diante do teclado, um diretor ou um profissional diante da cena vazia estão buscando o melhor de si para expor ao público. As doações criativas são o eixo-motor da arte. Vale conferir. Eles são usinas de amor. Sempre foram. Vivem disso.
Um parêntese precisa ser feito. Apesar desta prática de doação e da certeza deste amor, a sociedade nem sempre olhou a arte, em particular o teatro, como algo positivo. Afinal, uma doação realizada a partir do corpo, da presença, evoca não o espírito elevado transcendental, mas a pulsação inferior da carne. Assim, o teatro tem uma história ainda muito curta de bendição social.
A realidade objetiva da cena, a maior parte da História, foi uma realidade de transgressão, banimento e até mesmo de maldição. Molière, quase um nosso contemporâneo, não recebeu extrema-unção. Naqueles tempos, nem o direito ao cemitério era reconhecido para os profissionais do teatro. Eles realmente não tinham onde cair mortos… Então…
Houve uma trajetória social de crescimento, com a mudança do estatuto da arte e dos artistas. Portanto, não se pode compreender como, hoje, no século XXI, ainda persistam ideias tacanhas a respeito da importância da arte e dos artistas, a propósito da função da arte no jogo social. São ideias bolorentas.
Assim, reconhecer a grandeza sensível dos artistas, dimensionar a riqueza humana que representam, valorizar e proteger a produção de arte são ações fundamentais para a inteligência social. Atitudes hostis à arte ou desligadas deste programa básico não possuem qualquer identidade com a marcha do mundo e estão desconectadas das profundas necessidades sociais do nosso tempo.
Em tempos difíceis para a atividade regular do teatro, sufocados por uma pandemia de contorno imprevisível, a sociedade precisa reconhecer a relevância da arte, a importância de mantê-la viva. A Lei Aldir Blanc traz este selo e precisa ser ativada plenamente, para ao bem geral. A APTR está anunciando novos horários para cadastramento de artistas e propostas. Iniciativas deste tipo precisam ser apoiadas e divulgadas. Empresários e políticos ilustrados precisam entrar em estado de mobilização permanente.
Dá para manter, em paralelo, a arte em ponto de efervescência – um belo exemplo está disponível na Plataforma Sympla, é o musical As 4 faces do Amor, uma espécie de brincadeira romântica irresistível. A montagem original, de 2011, alcançou bastante sucesso. Agora, ela retorna, com filmagem de Paulo Severo. Não dá para perder.
O formato é muito ágil – explora a potência cênica das músicas de Ivan Lins, a partir de texto inspirado de Eduardo Bakr. Estão no palco os quatro atores do projeto original – Gottsha, Cristiano Gualda, Mauricio Baduh e Adriana Quadros.
Eles se alternam nos personagens Duda e Cacau, quer dizer, traduzem a multiplicidade do amor nos nossos tempos, pois são Eduardo e Cláudia ou Cláudio e Eduarda, ou ainda Cláudia e Eduarda ou Eduardo e Cláudio. A atividade integra um festival, com várias produções da empresa Estamos Aqui Produções Artísticas.
Vale frisar o tom amoroso forte que reveste a promoção. Além de oferecer diversão de qualidade em casa, online, a renda obtida com os sucessos apresentados reverterá para as equipes e para a Campanha APTR ao Lado do Trabalhador de Teatro. A classe teatral está desde março impedida de exercer o seu ofício e muita gente está com dificuldades sérias para sobreviver.
Portanto, não titubeie. É tempo de amar. Siga a lei da vida, a lei do mundo… e ame! Em caso de alguma dificuldade para amar, é fácil resolver qualquer problema: não há problema. Não se entregue à pandemia ou aos arautos do fim do mundo. Entregue-se ao teatro. O teatro, que só acontece diante do outro, para o outro, com o outro, pode ajudar muito, ele é um excelente professor de amor.
SERVIÇO
INFORME APTR
Novo horário para cadastramento de projeto dos editais da Lei Aldir Blanc:
Atenção! As datas continuam as mesmas, mas em vez de 18h, as inscrições serão encerradas às 23h59.
Não perca os prazos!
- Retomada Cultural RJ e Juntos Pelo Circo RJ: encerramento hoje!
- Cultura Viva RJ, Cultura Presente RJ e Fomenta Festival RJ: até 20/10.
- Passaporte Cultural RJ: até 21/10.
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#CulturaPresente #LeiAldirBlancRJ
SERVIÇO
4 FACES DO AMOR (primeira montagem)
21 de outubro de 2020, 19h45>21h40
Evento online via Inaclive
Ingressos de
- R$ 20,00 (+ R$ 2,50 taxa) – em até 4x R$ 6,12 – Vendas até 21/10/2020
até
- Ingresso Apoiador – R$ 200,00 (+ R$ 20,00 taxa) em até 12x R$ 22,75 – Vendas até 21/10/2020
EVENTO ONLINE VIA INACLIVE
Este evento acontecerá via Inaclive: As instruções de acesso serão fornecidas pela organização próximo ao início do evento.