A salvação da Pátria: adeus, heróis
“Pobre do país que precisa de heróis” – a velha frase consegue ser ao mesmo tempo famosa e incômoda. Famosa, pois se espalhou como capim tiririca nas terras de donos descuidados. Incômoda, por deixar evidente a vil tendência humana de se omitir diante de grandes causas, se esconder do futuro, digamos.
No Brasil, estas letras soam fortes – parece que vivemos numa apatia colonial, estirados nas redes, indiferentes aos terremotos políticos, ruínas culturais e falências sociais. Precisamos sempre de heróis. De repente, alguém não suporta mais a miséria nacional, grita um basta, independência ou morte. E lá se vai mais um herói, uma estampa colorida para o pombal da pátria.
O problema é que os heróis, solitários, podem pouco. Ou nada. Os seus gestos se perdem solitários, sem eco. As forças que estrangulam a vida brasileira nascem de processos históricos, estruturais, muito densos. São nós difíceis de desatar, nós que demandam a ação de todos nós. Os heróis, sempre louváveis, se tornam apenas marcos vazios no deserto.
Amanhã, Dia da Pátria, segundo uma tradição iniciada faz tempo, apesar das discussões várias que renegam a escolha da data, pode ser um belo momento para cada um de nós se pensar diante deste ciclorama imenso chamado Brasil. Quais as nossas visões do país? Quais as demandas e expectativas que impregnam nossas vidas? Quais são os heróis que cultuamos? Temos heróis? O que escondemos atrás dos nossos heróis?
Já faz algum tempo que elegi o meu grande herói nacional. Um homem direto, simples, figura de ação, um sujeito decidido, com uma capacidade de trabalho espantosa, que mudou definitivamente o país. Sem ele, não seríamos o que somos, não teríamos boa parte de nosso ímpeto para ser-Brasil. Lamento que a sua obra não seja mais cultuada, ampliada, em benefício de uma sociedade brasileira melhor.
O meu herói foi homem de letras, mas as letras serviram mais para que lutasse por elas do que para promover a sua escrita. Foi produtor, líder, criador, inovador – mas suas produções, ideias e criações surgiram para transformar a vida de contemporâneos, despertar vocações, estimular carreiras.
Na verdade, precisaria estender este texto por uma infinidade de linhas para fixar as habilidades deste homem notável, distinguir os seus feitos e apontar a grandeza de sua vida, do tamanho do Brasil. Não vou sequer tentar fazê-lo, por uma razão muito simples: por mais detalhes que eu reunisse, com certeza muitas obras ficariam de fora. O retrato completo do herói me escaparia.
Com certeza adiei até aqui a revelação do nome na esperança de que a leitura estimule a sua descoberta. Sonhei com a possibilidade de alguém pensar – claro, ela só pode estar se referindo a Paschoal Carlos Magno (1906-1980).
Pois aí está. Este é, no meu entender, o maior herói da história do país. O principal motivo foi a sua compreensão de que, para chegarmos à realização das potências desta terra, só mesmo ampliando ao infinito o espaço de formação e de expressão para a juventude. Só mesmo apostando todas as fichas na cultura.
Bom, tem mais. O melhor de tudo: a sua ação incansável, percorrendo todo o território brasileiro, trocando correspondência com todos os rincões, deu resultado. Não há um ponto do país que não tenha sido atingido por sua obra. O veículo principal usado, de saída, foi o teatro, mas, para o final de sua vida, alargou a própria visão e passou a visar a força da cultura.
Assim nasceram teatros do estudante da Amazônia ao Rio Grande do Sul, teatros amadores, grupos de teatro, festivais de teatro, festivais de cultura, centros de cultura. Estimulados, comovidos com a possibilidade de fazer, animadores culturais se projetaram por toda a parte, ampliando muito o gesto do patrono.
Numa atitude rara neste Brasil de acumulação egoísta e perdulária, Paschoal Carlos Magno legou ao país a sua casa, em Santa Tereza, para uso cultural, e a inacreditável Aldeia de Arcozelo, uma cidade cultural de perfil inédito e revolucionário, atualmente em ruínas. Quer dizer – além da ação heróica de lutar para mudar a realidade, além de inspirar seguidores tão abnegados quanto ele, Paschoal legou os seus bens para a sociedade como herança, para manter a chama de transformação acesa.
Ingratos, ainda não temos clareza total a respeito do perfil do herói: o seu monumental arquivo, quase perdido por abandono em Arcozelo, ainda não foi estudado e analisado como merece, em toda a sua extensão. Ele repousa agora em estado de dúvida de sobrevivência no CEDOC/ Funarte, na expectativa de que sejamos compatriotas sérios o bastante para honrar tão fabuloso legado.
O heroísmo de Paschoal denuncia claramente a mesquinha condição concedida no Brasil à infância e à juventude. Não respeitamos as novas gerações, não abrimos caminhos para o futuro, não nos importamos com o famoso porvir cantado em tantos discursos: canta-se para calar. Convivemos indiferentes com crianças mortas de fome, até mesmo nas ruas, e com escolas de péssima qualidade.
Este parece ser um tom importante para a semana da pátria: pensar quais são os nossos valores diante dos nossos herois, o que temos feito de suas obras, o que levaremos adiante como projeto nacional. Os gestos dos heróis registram as vontades de um cérebro nacional ou nascem de desesperos? Existe um pensamento brasileiro? Ou ele precisa ser construído, a partir dos pioneiros nacionais?
Se a riqueza da terra foi sempre uma nota tocada com insistência nos textos da brasiliana desde Caminha, surgiu em tantos cronistas, viajantes e escritores que lançaram os olhares para a paisagem desta terra, parece fácil concluir que o nosso problema não é material. Fortuna, temos. Nosso problema é de ideias. Quer dizer, falta de ideias.
Ideias, como obtê-las? Elas não nascem por combustão espontânea. Como diria Paschoal, elas só podem surgir com estudo, com a formação a mais requintada possível da juventude. Assim, os pensamentos focados na pátria nos levam a concluir que o investimento na cultura é o mais necessário, urgente e crucial para resolver a crise brasileira.
Várias iniciativas apontam para este caminho. A difusão do saber precisa se tornar a nossa grande prioridade. Aliás, o palco sempre foi um lugar de excelência para este tipo de ação. E no teatro, esta semana, duas iniciativas associáveis a esta busca merecem destaque. De saída, vale destacar a nova estreia online e ao vivo, no dia 11 de setembro, da cia Os Satyros, Cabaret Dada, dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, direção de Rodolfo García Vázquez.
A montagem, a 15a. produção do conjunto na pandemia, uma marca impressionante, surpreende ao apontar os refletores para um dos grandes impasses da trama-Brasil, exatamente a difícil relação do país com o processo da modernidade. Talvez o grande estrangulamento do país tenha ocorrido aí, quando era preciso sair da sociedade de castas escravista e ingressar na sociedade de classes. A máquina traria liberdade e apagamento para o cidadão.
Pois a pergunta forte da cena é precisamente como cada sujeito, em particular o sujeito criador, se relaciona com um universo de crise instaurado com a modernidade? A pergunta esteve na pauta do movimento dadaísta, quando, em Zurique, há cerca de cem anos, os artistas buscavam no Cabaret Voltaire dimensionar os limites da vida diante de um cenário devastador – primeira guerra mundial, gripe espanhola, crise dos impérios coloniais, terceira revolução industrial.
Época do nascimento do moderno, o dadaísmo pensa o esfacelamento do sujeito, a derrubada e a reinvenção das instituições, a revisão dos valores humanos fundamentais, a derrocada do poder de expressão da arte. Transitar nos limites, de certa forma, seria um tema forte para dar conta do projeto dada, quem sabe uma sugestão inspiradora para um país colonial às voltas com a falência de velhos sonhos de grandeza e poder.
Há, contudo, um outro olhar. Um outro eixo de reflexão tratará também o tema do pensamento e da arte, mas sob uma orientação diversa. Neste caso, a incursão acontece no interior mesmo das tradições e convenções, para ampliar as matrizes racionais estabelecidas. A opção norteia a montagem de Helena Blavatsky, a voz do silêncio, de Lucia Helena Galvão, direção de Luiz Antônio Rocha, com a atriz Beth Zalcman. O monólogo volta ao cartaz ao vivo e on line depois de uma longa carreira de sucesso.
Na proposta, além da exposição de um recorte das ideias da pensadora Helena Blavatsky (1831-1891), nome central para a estruturação da Teosofia, há uma proposta de reflexão a respeito da construção da cena teatral. O espetáculo busca lidar com a construção da visualidade a partir do conceito de sfumato, de Leonardo da Vinci. Nesta visão, trabalha-se com a construção difusa dos volumes, com o apagamento de linhas e fronteiras.
Ao redor do conceito, indicativo de um olhar estético muito estruturado, a direção de cena, a direção de arte, o cenário e os figurinos foram um tanto adiante e buscaram referências nos quadros de Manet. Sob a luz de uma vela, um quarto simples no frio de Londres envolve o último dia de vida da escritora. Ela revê os seus caminhos e obras, as suas convicções e grandes encontros e convida a plateia a pensar o sentido de suas escolhas.
Em uma palavra, a cena convida a plateia para um mergulho interior, uma experiência de redimensionamento da vida. A rigor, a visão esfumada do mundo objetivo surge como uma ferramenta hábil para que se pergunte o quanto o sujeito pode participar da construção da vida. O quanto do mundo é construção, o quanto se pode mudar no que é pré-dado?
Alentador, não? Nada melhor se poderia desejar num mundo em crise: a âncora salva vidas do pensamento, lançada ao grande mar da plateia pelo teatro. Se a semana da pátria traz urgências mais racionais do que sentimentais diante deste desastre chamado Brasil, que a cena nos socorra com a sua generosidade e nos mostre que não precisamos de heróis, mas de pensamento a respeito do sentido do heroísmo. Precisamos, sim, saber quem são os nossos heróis, mas para nos tornarmos heróis de nós mesmos.
Cabaret Dada
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Direção: Rodolfo García Vázquez
Atuantes: Alessandra Nassi, Alex de Felix, Andre Lu, Anna Kuller, Beatriz Medina, Bruno de Paula, Cristian Silva, Dominique Brand, Elisa Barboza, Felipe Estevão, Guilherme Andrade, Heyde Sayama, Ícaro Gimenes, Ingrid Soares, Julia Francez, Karina Bastos, Luis Holiver, Vitor Lins
Participação em vídeo: Roberto Francisco
Assistência de Direção: Elisa Barboza
Diretora de Arte: Adriana Vaz
Assistência de Direção de Arte: Letícia Gomide
Produção de Vídeos: Maiara Cicutt
Fotografia: André Stefano
Designer: Diego Ribeiro
Produção Geral: Silvio Eduardo
Produção Executiva: Maiara Cicutt
Social Media: Isabella Garcia
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
ESTREIA: dia 11 de setembro (sábado), às 18h
INGRESSOS GRATUITOS
ONDE RETIRAR E ASSISTIR:
Espaço Satyros Digital – Sympla/Zoom www.sympla.com.br/espacodigitaldossatyros
HORÁRIOS: sábados e domingos, às 18h e segundas às 21h
GÊNERO: comédia
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 12 anos
DURAÇÃO: 70 min
TEMPORADA: até 31 de outubro
www.satyros.com.br | Facebook: Satyros | Twitter: @os_satyros | Instagram: @ossatyros | YouTube: Os Satyros Cia. de Teatro
Helena Blavatsky, a voz do silêncio
FICHA TÉCNICA
Texto original: Lucia Helena Galvão
Interpretação: Beth Zalcman
Encenação: Luiz Antônio Rocha
Cenário e Figurinos: Eduardo Albini
Iluminação: Ricardo Fujji
Assistente de Direção: Ilona Wirth
Visagismo: Mona Magalhães
Fotos: Daniel Castro
Consultoria de movimento (gestos): Toninho Lobo
Operador Técnico: Toninho Lobo
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação) Idealização: Beth Zalcman e Luiz Antônio Rocha
Parceria: Nova Acrópole
Realização: Espaço Cênico Produções Artísticas e Mímica em Trânsito Produções Artísticas.
SERVIÇO
Helena Blavatsky, a voz do silêncio
– Apresentações virtuais
Monólogo teatral inspirado na trajetória e na obra da escritora russa Helena Blavatsky
Temporada: De 22 de agosto a 28 de setembro.
Aos domingos, às 19h30, e às terças-feiras, às 20h.
Ingressos: a partir de R$ 30
Duração: 1h
Onde comprar e assistir: www.sympla.com.br/produtor/helenablavatskyavozdosilencio Classificação etária: 14 anos
Assessoria de imprensa: Racca Comunicação