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A cachaça da arte…

Você pensa que teatro é palco? Ora, teatro não é palco não. Palco é um lugar fixo, teatro é pura imaginação. Aliás, pode faltar tudo na roda do mundo, o vazio vai provocar apenas graça – não pode mesmo é faltar o teatro, pois, queiram ou não, ele está no sangue da humana raça.

Sim, raça, em todas as acepções não preconceituosas mais fortes. Ah, não estou falando dos gregos – para boa parte do ocidente, a invenção do teatro veio de lá. Tampouco estou falando do medievo, aquela turbulência da primeira crise do feudalismo, quando os campos começaram a ficar pontilhados de cidades. Por todos os lados pipocaram trovadores, atores, malabaristas, com ou sem tabladinhos. Às vezes, apenas por um naco de pão seco, davam as suas graças, viviam de poesia e liberdade. E fome, naturalmente. 

Pois então é bem isto: o pensamento aqui considera a cidade como uma condição primeira para o aparecimento do teatro. Parece que a dispersão rural dilui o diálogo, torna o encontro humano mais fluido, impõe a solidão às almas. Já a cidade, ao contrário, comprime as carnes, junta os espíritos,  impõe o diálogo.  Por isto é que se pode dizer sem hesitar que o teatro está no sangue da raça: quando chega a confusão urbana, ou o sangue vai ser burilado na poesia, ou vai jorrar na compressão das gentes, pois o sufoco vai atiçar a violência…

E foi assim que nasceu o teatro no Brasil – na verdade, um Brasil que ainda não era Brasil, apenas colônia de Portugal. O feito foi provocado pela mineração, primeira atividade econômica colonial a exigir a presença da estrutura urbana. Ela fez nascer cidades ou inchou os velhos arraiais de natureza administrativa ou militar.  Com o ouro, as cidades cresceram e as casas da ópera surgiram.

Casa da Ópera, Ouro Preto. Foto da autora.

Antes das casas da ópera, a colônia conheceu batuques de escravos, procissões, romarias, saraus de varandas. Seria uma jornada longa falar do teatro aí – mas estas manifestações eram eventuais, ocasionais, ditadas por rituais sociais diversos. Elas não nasciam do, digamos, atrito humano constante e, portanto, não se tornavam práticas sedimentadas. Não se tornavam necessárias.

Mas deixemos a História em benefício do presente, temos um ponto explosivo para tratar. O problema, urgente, é como esta necessidade social profunda prosperou nos séculos XIX e XX e começou a se tornar dispersa, desviante, no final deste último século.

Quer dizer – em algum momento a sociedade brasileira deixou de cultivar a sua necessidade coletiva de conviver em estado de representação, mesmo que este rito envolvesse parcelas recortadas do universo social. Tradução da frase longa: o teatro começou a ser fantasma. O teatro deixou de funcionar como exercício coletivo da imaginação. Quando as escavadeiras no seu furor demolidor deixavam, o teatro tornou-se palco, apenas um lugar, um espaço de pedra e tijolo na paisagem da cidade.

A situação é trágica no pior sentido do termo. Em primeiro lugar, significa a condenação dos artistas a uma vida de aguda instabilidade. Mas a questão não fica por aí. Não é só a urgente necessidade de ter políticas de fomento para combater a crise – não é só derrubar o veto das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. É óbvio que elas são urgentes e cruciais. Elas vão assegurar o apoio emergencial para a classe e a implantação de uma política cultural permanente de Estado. Mas muito mais precisa ser feito. A miséria da arte cobra um preço alto: significa miséria social generalizada. Crise de valores, embotamento do humanismo, violência, barbárie.

A rigor, o Brasil precisa de uma grande revolução teatral. No Rio de Janeiro, a revolução precisa implicar na implosão da geografia teatral carioca: é preciso acabar com a ideia de que o teatro é um nativo bronzeado da Zona Sul. A um custo relativamente baixo, tanto se poderia ampliar a proposta das lonas culturais, como se poderia retornar ao antigo costume de construção de barracões de teatro, prática que se espalhou pelos subúrbios, pelas Zonas Norte e Oeste, na primeira metade do século XX, construções entregues a grupos locais e receptivas para a circulação da arte.

Há um exemplo muito inspirador em São Paulo: o Retomada Arte em Construção, iniciativa do Grupo Pombas Urbanas, apoiado pela Secretaria de Cultura do Municipio. Associado a este projeto, o coletivo também está pondo em prática o Artivistas em Construção, projeto em parceria com o UNICEF. As atividades acontecem no bairro Cidade Tiradentes, na zona leste da cidade.

Mas o quê, afinal, está em jogo na proposta?  A rigor, há uma linha contínua de trabalho. O Grupo Pombas Urbanas surgiu em 1989, em São Miguel Paulista, sob a liderança do peruano Lino Rojas (1942-2005), após uma experiência prática de teatro com jovens do bairro. A partir daí, o grupo se estruturou com o objetivo de difusão do teatro e da cultura junto às camadas populares. A sua trajetória conta com 16 espetáculos, ampla circulação nacional e internacional, integração às rotinas de festivais e mostras e participação na Rede Brasileira de Teatro de Rua e a Rede Latinoamericana de Teatro em Comunidade.

Em 2002, o grupo criou o Instituto Pombas Urbanas, voltado para o compartilhamento de atividades artísticas, com sede no Centro Cultural Arte Em Construção, espaço que retoma as atividades presenciais neste mês de julho. Ali, num dos mais populosos bairros da periferia de São Paulo, talvez equivalente a Campo Grande, no Rio de Janeiro, o centro cultural ambiciona mudar a face social da comunidade ao redor. O caminho é a oferta diária de arte, cultura, diálogo, encontro, pertencimento.

Trata-se de uma outra chave de atuação, afastada das óticas de estruturação do mercado e de construção de celebridades. Uma proposta de ácida inteligência, diante das múltiplas crises que abalam a sociedade brasileira, atingem o todo do organismo social, com efeitos bastante negativos.

Ao mesmo tempo, por ironia, online e no teatro, São Paulo oferecerá aos amantes de teatro, a partir de amanhã, terça-feira, um espetáculo precioso para os tempos atuais: Testando a Srta. Moss, adaptação de Pictures, um dos contos magistrais de Katherine Mansfield (1888-1923). Quer dizer – uma peça em que o teatro é palco, mas é também acontecimento virtual. E, no tema tratado no texto, ele é social em grau incandescente.

A escritora desnuda, com aguda frieza, o estado de miséria de uma cantora, outrora empregada e confiante, diante da falta de perspectiva para sustentar-se a partir de sua profissão.  Enredada em dívidas, passando fome, a artista enfrenta situações humilhantes e cruéis, numa escala de degradação humana em tudo oposta ao ideal da arte. O projeto foi concebido pela atriz Luluh Pavarin, discípula de Antunes Filho (1929-2019), que conheceu a obra da escritora neozelandesa a partir de um presente do diretor, o livro Felicidade e outros contos.

Portanto, mais uma oscilação do lugar do teatro, dividido entre o palco e a literatura – a direção e a adaptação do conto foram assinadas por Ester Laccava. E o objetivo  da cena – a depuração do sentido do humano a partir da poesia – pretende atingir um alvo duplo. Tanto está sob a mira da atriz a rusticidade dos que não conseguem ver a profunda necessidade social da existência plena da arte, como a fragilidade dos artistas, frequentemente incapazes de impor a excelência do seu artesanato à indiferença social. Duas forças antagônicas se contrapõem, portanto, em prejuízo do culto dos valores maiores da vida: a sociedade sem visão da arte, a arte sem percepção de sua força social.

A partir do release, constata-se que a montagem tem uma estrutura poética de requintada elaboração: sob a inspiração de uma das maiores escritoras do mundo moderno, acontece o desempenho ao vivo de Luluh Pavarin, pontilhado por cenas pré-gravadas em que contracena com vários atores, dentre eles Flavia Pucci, Ondina Clais, Germano Melo e a cantora Adyel, assistidos por numerosa ficha técnica. A ousadia reafirma a importância, hoje, de constatar que o teatro, definitivamente, não é um palco.

No fundo, no fundo, o teatro pode ser até radio – duvidam? Então tratem de conferir. Um quarteto precioso para o debate de ideias teatrais decidiu lançar um podcast devotado a grandes correntes de pensamento a respeito do palco. A turma reúne  André Paes Leme, Helena Varvaki, Vitor Lemos e Zé Luiz Rinaldi. Atuantes na cena teatral e no ensino de teatro no Rio de Janeiro, eles têm muito para falar. Decidiram, então, soltar o verbo.

Eles assinam o Podcast Estudos Em Companhia. A primeira temporada vai balançar as tábuas das cenas com muitas verdades. Ou com muita fé cênica – serão episódios dedicados respectivamente a Stanislávski, Brecht, Grotowski, Eugenio Barba e Peter Brook. A escolha tem impacto para os estudos teatrais brasileiros.

De saída, Stanislávski  fundamentou muitos dos debates a respeito do teatro moderno no país. Brecht, que quase chegou por aqui junto com o russo, constitui referência básica para os grupos dedicados ao teatro político e foi a pedra de toque para a obra de Boal. Tanto Grotowski quanto Barba despontam como nomes estratégicos para a visão crítica do teatro moderno. E Peter Book, o grande diretor que acabou de falecer e deixou uma obra teatral de uma variedade impressionante, da maestria como encenador à teoria a respeito da cena, se tornou um nome de grande projeção no teatro brasileiro a partir da tradução dos seus livros.

A oportunidade precisa se tornar rotineira, integrar os hábitos teatrais da terrinha, pois sem dúvida irá ampliar o lugar do teatro na sociedade brasileira. Sim, ao fim e ao cabo, o teatro pode ser um lugar, porém numa acepção mais ampla do que o dizer concreto de um espaço objetivo.

O teatro pode se tornar um lugar social de encontro, troca, vivências culturais, invenção, amor ao próximo, culto à liberdade de ser e à livre imaginação. Uma cachaça. Um lugar fixo para a liberdade do verbo artistico. Neste caso, o teatro pode se tornar verdadeiramente palco, para uma fecunda identificação entre espaço concreto e espaço poético: isto acontece quando o palco se torna o espaço vibrante da voz do coletivo.

Retomada Centro Cultural Arte em Construção
SERVIÇO:
Várias atividades formativas em arte e cultura para a comunidade, jovens e interessados.
Espetáculo “Circomuns”
Com Circo Teatro Palombar         
Sinopse: Aqui circulam pessoas comuns, trabalhadores anônimos da cidade, cruzam histórias despercebidamente ao nosso olhar mas em uma dessas esquinas do bairro atravessam a sensibilidade de artistas de circo que não se enquadram na dureza cotidiana e buscam transformar instantes da vida em momentos de criação e potência.
Duração: 60 minutos
Classificação Livre 
Ingresso: Grátis
Datas: 09, 16 e 23 de julho de 2022 (Sábados)         
Horário: 19h30         
13, 20 e 27 de julho de 2022 (Quartas-feiras) –         
Horário: 19h30         
22 de julho de 2022 (Sexta-feira)         
Horário: 19h30
Local: Centro Cultural Arte em Construção
Av. dos Metalúrgicos, 2100 – Cidade Tiradentes, São Paulo – SP, 08471-000  Telefone: (11) 99901-0785 / (11) 2285-5699
Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini
Informações: GrupoPombasUrbanas
www.facebook.com/ e www.instagram.com/grupopombasurbanas  

Testando a Srta Moss
Ficha Técnica: 
Idealização: Luluh Pavarin
Roteiro Adaptado: Ester Laccava (do conto “Pictures” de Katherine Mansfield)
Direção Geral e Concepção: Ester Laccava
Direção de Fotografia: João Wainer
Direção de Produção: Emerson Mostacco
Direção de Set: Elzemann Neves
Direção de Arte e Cenografia: Camila Schmidt
Desenho de Luz: Mirella Brandi
Figurinos: Ana Luiza Fay
Caracterização: Bia Liberado
Elenco Transmissão ao Vivo: Luluh Pavarin
Elenco Filmagens: Adyel, Ariane Roveri, Ester Laccava, Fernanda Gonçalves, Flavia Pucci, Geraldo Mário da Silva (Geraldinho), Germano Melo, Ivan Capúa, Izabela Pimentel, Luluh Pavarin, Maria Manoella, Mário Bortolotto, Ondina Clais, Roseane Muniz
Trilha Sonora e Mixagem de Som: Cesar Gananian
Edição e Finalização:Cesar Gananian
Continuidade: Elzemann Neves
Animação: Pedro Lacava (lax.artt) 
Transmissão ao Vivo e Direção de Corte: Ícarus 
Direção de Fotografia em Transmissão ao Vivo: Ícaro Bueno Cinegrafistas em Transmissão ao Vivo: Rafael Torres, Vitor Domingues.
Operador de Corte: Felipe Lemes
Assistente de Direção de Transmissão ao Vivo: Lucas Mota Assistentes de Câmera Filmagens: Renato Nascimento, Helena Wainer, Uerlem Queiroz
Assistente de Direção: Ariane Roveri 
Assistentes de Produção: Camila Coltri e Fernando Felix
Assistente de Fotografia: Elzemann Neves
Assistente de Direção de Arte: Camila Siqueira 
Assistente de Figurinos: Jerry Gilli
Assistente e Operador de Luz: Alexandre Zullu
Técnico de Som: Uerlem Queiroz
Autor do Poema em off “O Retrato”: Guilherme Pavarin  
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany   
Gerenciamento de Mídia Sociais: Mostacco Produções
Projeto Gráfico: Laerte Késsimos 
Fotos de Cena e Still nas Filmagens: João Caldas
Assistente de Foto de Divulgação e Still: Andréia Machado Audiodescrição da Acessibilidade Criativa – Roteiro e narração: Paula Souza Lopez
Consultoria Audiodescrição: Cleber Tolini
Tradução em Libras: IBT Libras
Equipe de Montagem de Luz: Batystaka Terceirização De Serviços Especializados e Alexandre Zullu.
Adereços e Cenotécnico: Zé Valdir Albuquerque 
Costureira: Lande
Figurinos Modelista Tailleur: Aline Pagliares
Assessoria Administrativa: Emerson Mostacco 
Segurança nas Filmagens: Ronaldo Britto
Motorista da Van nas Filmagens: Orlando Aparecido da Silva Filho  Figuração: Alexandre Lavoura, Amanda Capelatto, Beatriz Pacheco, Carol Tello, Célia Brito, Felipe Carvalho, Fernanda Mazetti, Fernando Diniz, Gabi Alezopulos, Gabriel Cabal, Jiraia (Lucas Serrano), Guilherme Gomes de Oliveira, Heloysa Ramos, Janaina Mendes, Jordan Costa, Kelma Bitencourt, Larissa Fernandes Ferreira, Mufasa (Antonio Carneiro), Natália Pires, Paulo Veras, Talita Prado, Thainá Mendes.
Produtora Associada: Mostacco Produções
Correalização: Rede de Teatros e Produtores Independentes e Luluh Pavarin Produções Artísticas
Realização: Prêmio Zé Renato de Teatro, Secretaria Municipal de Cultura e a Prefeitura de São Paulo — Cultura   

Serviço:

ESTREIA: 05 de julho (3ªf), às 19h

Teatro: João Caetano SP

R. Borges Lagoa, 650 

Vila Clementino, São Paulo

Horário: de terça a sábado, 19h.

Para a transmissão  ONLINE E AO VIVO, grátis:

Ingresso:  https://www.sympla.com.br/testando-a-srta-moss__1634017

Serviço:

Podcast Estudos Em Companhia

https://open.spotify.com/show/2hBjQnWn40XJJoc7ZZeveT?si=_emOCKteSXa9zYcDdtz8qw&utm_source=copy-link

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