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Escapitalismo brasileiro

Chega de rodeios. A hora mais grave soou, vamos direto ao ponto: vivemos sob o regime de escapitalismo. Parece um nome estranho? Pois é bem simples.

Simples assim: é o  escravismo que absorveu o capitalismo. A rigor, o país não se tornou capitalista. De saída, isto significa dizer algo bastante grave, as relações de trabalho por aqui  acontecem sob uma forma de embrutecimento radical do trabalhador, não reconhecido como pessoa humana. Logo, embrutecimento da sociedade.

Isto acontece porque o trabalho não é visto como um meio para a produção de riquezas sociais, mas, antes, uma ferramenta para a acumulação desenfreada de fortuna. Para chegar a tanto, é preciso que o ato de trabalhar exista como uma prática brutal, sob remuneração reduzida, insuficiente para garantir a reposição da força de trabalho.

Assim, o trabalho se transforma num meio para a aviltar a existência daqueles que necessitam (e conseguem) conquistar um emprego. Quem trabalha, no Brasil, participa de uma forma de existência inferior, é sub-gente. Mas, se existe tamanha opressão, ela supõe uma malha social cerrada, complexa. Existe algo acima e algo abaixo.

Quem é gente de verdade, está acima. Integra a turma do sabe-com-quem-você…? ou olha-o-meu-sobrenome!  ou peraí- sou-doutor!. São os bem nascidos ou os abençoados, escaparam do trabalho brutal e vivem de renda ou, por sorte ou esforço, conquistaram funções nobres, acima da plebe. São privilegiados. A maioria dos artistas e dos produtores de cultura está nesta facha.

Mas existe um mar de almas – variantes vivas das almas mortas russas descritas por Gogol – abaixo, no porão social desta construção. São os que nasceram sem bens, não conseguem trabalho estável, não conseguiram estudar, não figuram com nitidez no jogo social dominante.

Isto significa reconhecer a existência de uma lógica radical de liquidação da pessoa humana na sociedade brasileira. Na verdade, para os valores do século XXI, ninguém neste caldo é verdadeiramente gente.

Afinal, vivemos uma ordem socioeconômica e política mais brutal do que aquela da sociedade escravista ou mesmo da colonial, pois, nelas, a situação de miséria social não era dissimulada. A ordem de desqualificação e de estruturação em castas ou estamentos era explícita. Agora, a degradação atinge toda a sociedade, ninguém está imune, mas o jogo é velado.

No escapitalismo, fingimos a existência de uma realidade democrática, simulamos a vigência de igualdade de direitos, acenamos com o acesso universal à saúde, à vida digna, ao saneamento básico ou à escola, mas nada disto existe. A falta de saneamento, por exemplo, faz com que o esgoto vivo das periferias miseráveis jorre nos rios e chegue às torneiras da Zona Sul, para ficar num exemplo só.

Estamos sob a plena vigência de castas e estamentos, mas sob uma forma pantanosa. Convivemos com o analfabetismo, convivemos com a oferta negativa de empregos, convivemos com a falta de escolas para todos. Se todos quiserem trabalhar ou estudar, no Brasil, não teremos vagas para os postulantes.

Uma larga fatia da sociedade brasileira está condenada a ser marginal. Uma parte considerável da sociedade brasileira vive à deriva, entregue à própria sorte. As análises da economia brasileira simulam saber a dimensão do objeto sob o foco, mas escondem a nossa grande parcela de impossível: desconhecemos como a sociedade consegue sobreviver sob a precariedade que a governa.  

Há aqui um vasto porão de sustentação da vida chamado economia informal – ou, digamos, em linguagem direta, “vire-se”. Ou “morra”. Ou “dê seu jeito”. A força impressionante do povo faz com que as pessoas se desdobrem para sobreviver – a expressão “viver de trampo” diz muito da realidade humana destas terras.

Esta reflexão é urgente. E crucial. Ela explica a realidade cultural precária vivida em nossa sociedade. Aponta, com objetividade, porque a cultura acontece no país ao sabor do acaso, das subjetividades e da anarquia.

No escapitalismo, a cultura não apenas não interessa para o jogo social. Ela não presta, não serve para nada, pois o horizonte necessário é a indiferença e a selvageria. A cultura é, portanto, uma força perigosa, pois ameaça revelar o vazio social que envolve a vida das pessoas.

Portanto, a prática da cultura necessita acontecer numa escala micro-cósmica, localizada e restritiva. A cultura não pode nem deve ser universal. Os temas ocidentais básicos, tais como a estruturação simbólica da vida em sociedade, a difusão de valores coletivos gerais e a instituição de procedimentos e padrões coletivos, são desnecessários. Interessa disseminar a selvageria.

Portanto, na verdade, a necessidade é bem outra: para uma ordem econômica violenta, interessa uma ordem (des)cultural de violência, boçalidade e ignorância. A institucionalização de preconceitos e da brutalidade surge, assim, como condição básica para a dinâmica social. A expectativa, a aposta, é que a prática cultural se reduza, se torne oca, superficial. E que os artistas assumam a culpa de não viverem sob a ordem da boçalidade – para este descalabro social, o artista não trabalha, a cultura não é trabalho. A própria cultura precisa ter culpa de ser cultura.

Assim, a expectativa dominante é a de que as formas de manifestação cultural possam ser conduzidas a acontecer sob procedimentos de linguagem simples, até bem elementares, como se a cultura fosse apenas um meio imediato de expressão sensível. Superficial. Cultura rarefeita. Se os artistas podem não se dobrar, a situação, contudo, influencia a trama da sociedade. Para os que nascem com talento, em especial quando nascem pobres, o acesso ao mundo da cultura se torna um caminho penoso.

Aprender uma arte, dominar o alfabeto, as tradições e a fortuna do mundo cultural se tornam desafios imensos, às vezes intransponíveis. Não é raro encontrar grandes talentos perdidos na vida, carentes de meios de formação e de informação, pois o acesso ao mundo artístico-cultural permanece bloqueado para a maior parte da sociedade.

Como a cultura, sob a ordem econômica precária, não se torna uma necessidade social positiva em nenhum grau, assim como a escolaridade densa não surge proclamada como valor social básico, a sociedade atribui a este mundo da cultura uma definição desqualificada, avaliações negativas. A visão da cultura e da arte sucumbe sob a ordem do preconceito.

Supõe-se, assim, que a arte e a cultura são transparências, filigranas ociosas,  formas espertas para fugir do mundo do trabalho. Portanto, quem se ocupa da prática da cultura precisa ser demonizado, rotulado como malandro, vagabundo, pária social, quer dizer, um tipo de existência maléfica para a sociedade.

Há uma história negativa, pejorativa, da arte e do artista na sociedade brasileira, herança colonial. No dicionário de Antonio Moraes (1813) já existe a acepção da palavra artista, como adjetivo, para arteiro (o que sabe as artes de viver), manhoso.

Mas, no nosso tempo, o dicionário Houaiss (2001), entre outras acepções, registra o substantivo como brasileirismo informal, com o sentido de indivíduo, enganador, finório, que nada leva a sério. Também como brasileirismo informal, pode significar indivíduo distraído, desligado, sonhador. Como adjetivo, pode indicar um ser astuto, artificioso, manhoso.

Portanto, há uma atmosfera negativa contra a arte e o artista. Os dicionários registram as falas sociais do seu tempo. É fundamental, nesta abordagem, ressaltar o grau de distorção profunda da questão da arte e da cultura sob o escapitalismo.

O tema apresenta uma grande complexidade, pois a realidade da escravidão, legalmente em vigor até 1888, mas persistente até o século XX e sobrevivente em vários pontos do país até hoje, comportou a possibilidade de uma produção cultural forte por parte da população negra escravizada.

Por serem vistos como inferiores, aos escravos era permitida certa liberdade de expressão, nas horas de não trabalho, e estas frestas determinaram a criação de um universo cultural denso, autônomo, importante para a definição da cultura popular brasileira.

A dinâmica gerou usinas de produção cultural peculiares. Entregues à própria sorte e à expressão dos seus talentos, as camadas populares mais oprimidas criaram, nas periferias, nas favelas e em diversos pontos da sociedade, manifestações culturais de extrema força histórica – o samba, as escolas de samba, o frevo, as folias, diversos tipos de cortejos e de celebrações.

Dois universos culturais coexistem no Brasil, portanto, nem sempre em diálogo, sempre sob formas sociais oficiais de opressão ou de liquidação ou de indiferença, sempre sem quaisquer políticas oficiais consistentes, de Estado, de apoio. Simplificando, se pode falar numa cultura urbana ocidental e numa cultura popular, urbana e rural.

Uma rede complexa de relações estrutura a existência dos dois universos – de um lado, nos grandes centros urbanos, sob o ritmo de um mercado de arte instável, precário, acontece aquela que se poderia chamar de arte formal. Sem formação de plateia e sob uma dinâmica social de negação da importância da arte, ela acontece a partir do esforço empreendedor dos artistas. É uma forma impressionante de solidão cultural urbana, profissional.

Do outro lado, nos recônditos das cidades ou em recantos rurais, acontece o que se poderia cogitar classificar como arte popular brasileira, denominação bastante polêmica nesta altura do século XXI. Sujeita aos calendários festivos, portanto intermitente, ela guarda um perfil amador ou de mercado incipiente, mesmo no caso do carnaval das grandes escolas de samba, precariamente apoiado pelos governos.

O que o escapitalismo, interessado em se perpetuar e garantir a sua sobrevivência e, logo, os seus meios de cegueira social, busca ignorar, sempre, está indicado com alguma clareza acima, no subtexto da descrição da rede estruturante destes universos culturais. É a existência de uma pulsão criativa intensa, inovadora, espontânea, muito peculiar – uma pulsão que deveria ser vista como a forma ideal brasileira de ser. Ela é o grande poder revolucionário do país.

À margem de toda a indiferença histórica dos diversos poderes diante desta potência criativa, parece urgente, diante da crise profunda que se avizinha, a união da capacidade artística brasileira para a ultrapassagem do nosso abismo social. Trata-se sim de um enfrentamento, uma luta direta contra o escapitalismo.

E não faltam seres de luz e de boa vontade capazes de perceber o tamanho da urgência social implicada aí. Durante mais de um século nos iludiram, nos acenaram com a promessa de que seríamos o país do futuro. O futuro chegou e está vazio. Pior, ele ameaça ser uma queda para trás.

Então, arteiros, artífices, arteiremos todos – cresçamos, multipliquemos, ampliemos ao máximo a produção de arte e o pensamento a respeito da arte no Brasil. A arte é o que nos resta. Um belo exemplo do caminho urgente a tomar? Examinem o caso do 6° Festival Midrash de Teatro, já em cartaz, de 1 a 12 de novembro, online e ao vivo, com debate após as apresentações.

O conceito do festival não poderia ser mais adequado às grandes urgências do momento. Segundo a divulgação do evento, o Midrash Centro Cultural, diante do cenário assustador atual, que interrompeu a vida cultural do país, optou, coerente com a sua prática de promover reflexões e pensar a sociedade contemporânea, por trazer temáticas importantes para o momento. E trazer o máximo de arte possível.

Assim, o temário em pauta não podia ser mais oportuno.  As peças programadas lidam com a condição social do negro no Brasil, a luta feminina, a transexualidade, a hipocrisia social, as problemáticas filosóficas atuais urgentes, a busca pelo Ser e outros temas propícios para pensar a condição humana e o nosso país.

Então, veja bem, os fatos e as ideias são estes. A hora soou. Mexa-se. Entre em sintonia, corra para conferir, se a sua pele e a sua alma contam, de verdade, para você.

SERVIÇO

6° Festival Midrash de Teatro

 de 1 a 12 de novembro   (online e ao vivo)

  • debates após as apresentações

A renda do Festival será 100% revertida para as produções participantes.

HORÁRIOS: de 01 a 12 de novembro, de segunda a quinta, duas peças por dia, às 18h e às 20h30

aos domingos, três apresentações às 15h, às 17h e às 20h Ingressos – Ingresso Colaborativo – R$ 20,00; Ingresso Solidário – R$ 30,00 e Ingresso Amigo – R$ 40,00.

Acesso: www.midrash.org.br  para a programação completa do Festival.

FOTO: divulgação – NEGRA PALAVRA | SOLANO TRINDADE

Direção Orlando Caldeira e Renato Farias

Coletivo Preto e Cia. de Teatro Íntimo

04 de novembro | quarta | 18h