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Crítica de teatro: Narcisa

Com o sangue do coração

Mulheres, corram. Há uma peça em cartaz na Sala Multiuso do Sesc Copacabana que é programa obrigatório, banho de emoção, puro oxigênio poético para almas femininas: Narcisa. Não deixe de ver. Ela traça um delicado risco de bordado, capaz de explicar bastante a derrocada de nossas avós.

Sim, o programa vale também para homens revisados – aqueles que conseguiram sair do velho rascunho, superar a força castradora dos séculos e entender, afinal, o poder transformador da vida representado pelas mulheres… Com certeza irão adiante no caminho de sua libertação maior, política, humana e estética.

Exatamente, é este o alcance da cena. Vale destacar a grandeza da proposta. Há no palco um projeto teatral na extensão maior da expressão, da escolha do tema aos menores detalhes da teatralidade, assinado pela Cia Baú da Baronesa.

O ponto de partida do trabalho nasceu de uma pesquisa alentada a respeito da vida e da obra de Narcisa Amália de Campos (1852-1924). Ela foi uma mulher absolutamente revolucionária do século XIX, apagada da memória histórica nacional, apesar das dimensões de sua biografia.

Afinal, ela foi poeta, escritora, intelectual, a primeira mulher a se dedicar ao jornalismo profissional, emancipada, abolicionista, republicana, professora… Os seus versos causaram sensação, louvados por diversos intelectuais. E são belíssimos.

Portanto, a montagem obedece a traços bem peculiares. Trata-se de obra de autoria feminina, sobre uma autora de valor monumental suprimida do registro histórico, e gira em torno da estranha capacidade brasileira de liquidar a força e a grandeza das mulheres.

Contudo, o trabalho não se impõe apenas por causa de sua militância feminista, longe disto. Na verdade, a cena se move com uma vertigem poética teatral inebriante e se torna obrigatória também a partir desta qualidade. Está na pauta uma construção teatral muito inspirada, com linguagem e estética refinadas, de certa forma uma recuperação do que se pode chamar de linguagem cênica autoral de grupo. Vale observar como o fluxo de linguagem foi construído.

A Cia Baú da Baronesa, atualmente integrada pelas atrizes Cilene Guedes, Gabriela Estevão, Jacyara de Carvalho e Nina Pamplona, jovens de excelente perfil técnico e artístico, começou a encenar o trabalho durante a pandemia. As atrizes – como só pode acontecer em larga escala nos grupos – possuem forte protagonismo no processo de criação.

Cilene Guedes, foto de divulgação.

A dramaturgia, assinada por Cilene Guedes, garantiu a existência de uma partitura textual sofisticada: cenas de representação e de narração, construídas pela autora ou escolhidas nos vários documentos reunidos na pesquisa. Construída como um mosaico, a dramaturgia viabilizou, durante o período de isolamento, a criação pelas atrizes de solos narrativos, nos quais contação, apresentação e representação se misturaram.

Sob a direção ágil de Joana Lebreiro, os solos teceram a forma final, transformaram-se em jogral, muito embora cada atriz tenha uma linha interpretativa diferenciada. Enquanto Cilene Guedes e Jacyara de Carvalho cuidam de climas mais densos e dramáticos, Nina Pamplona e Gabriela Estevão se destacam nas insinuações mais cômicas e brejeiras.

Gabriela Estevão, Nina Pamplona, Jacyara de Carvalho e Cilene Guedes, foto de divulgação.

A forma jogral – tradicionalmente usada em poesia – surge como o grande achado da montagem: é jogral teatral. Ela viabiliza a expressão coletiva, a fala em bloco, solidária – indicação do imenso poder existente à disposição das mulheres. E dá enorme impacto aos desempenhos individuais, cercados sempre por uma atmosfera colaborativa, com o grupo se projetando como entidade de apoio, se materializando como sororidade.

A magia da feminilidade, então, se revela como a forma de ser por excelência da cena, está por toda a parte. A partir da interpretação, ela domina tudo o que acontece.

Na direção de arte, Marieta Spada concebeu um cenário letrado cativante, capaz de manter as atrizes flutuando entre letras, naquela que não seria a atmosfera de vida adequada às mulheres. O figurino, todo negro como o luto, é de uma inspiração que beira o indizível. Sobre roupas de base negras, quase masculinas, são vestidas saias em cascata, praticáveis, manuseadas para a caracterização de vários personagens, inclusive homens ilustres, como Machado de Assis e D. Pedro II. É genial.

A iluminação assinada por Ana Luiza de Simoni constrói tramas, famas, anonimatos, projeções e recolhimentos, num autêntico desenho de luz, espécie de bordado de energia no espaço.   A trilha sonora de Cláudia Castelo Branco consegue materializar dois vetores fundamentais – os ares da época e a pulsação feminina.

Ao jogar o foco sobre Narcisa, o Baú da Baronesa enfrenta a violência do tempo que a apagou e clama o melhor dos brados – daqui, do futuro, podemos dizer: você não está só, venha para o pódio, o lugar sempre foi seu. Para atingir esta dimensão, a peça chama todas as narcisas do século XIX para o palco, para que se possa tentar entender o tamanho da força de opressão de que foram vítimas.

Em cena, aparecem Amélia de Oliveira, Júlia Lopes de Almeida, Albertina Bertha, Maria Firmina dos Reis, Francisca Senhorinha Diniz, Josefina de Azevedo, Gilka Machado… Quer dizer, o gênio criador feminino não foi fogo fátuo ou meteoro, não foi acontecimento isolado, mas uma potência criativa verdadeiramente revolucionária.

Numa sociedade patriarcal violenta, escravista, racista, machista, classista, a voz feminina precisava ser contida, para a preservação de um antigo poder detestável e cínico. A encenação discute, discretamente, até mesmo a forma de aclamação recebida por Narcisa, poeta jovem publicada pela Garnier na flor dos vinte anos, uma efeméride assustadora. Nunca mais ela publicou outro livro de poesias, depois da festejada edição de Nebulosas, em 1872. Natural de São João da Barra, a escritora se transferiu para o Rio, continuou a atuar como jornalista e se tornou professora. Apesar das aclamações recebidas, morreu doente, cega e esquecida.

Portanto, o projeto do Baú da Baronesa merece não apenas ser visto e debatido pelas mulheres, por todas as mulheres – ele precisa circular na sociedade carioca e brasileira. As secretarias municipais e estaduais de educação e cultura, em particular as pastas ocupadas por mulheres, deveriam aderir à divulgação do espetáculo, considerando-o como obra de interesse prioritário e estratégico para o debate da situação da mulher na atualidade.

Vivemos índices brutais de feminicídio e de violência contra as mulheres na sociedade brasileira. A opressão feminina continua a ser uma prática torpe. As mulheres que estão no poder, estão esperando o quê, para agir? Corram, por favor – há uma peça de preciosa feminilidade no Sesc Copacabana, ela precisa de todo o apoio possível do mulherio para ecoar forte por aí. Sim, corram. O risco do bordado pertence a todas nós.

FICHA TÉCNICA

NARCISA

A partir da obra da poeta Narcisa Amália de Campos.

Dramaturgia: Cilene Guedes

Direção: Joana Lebreiro

Diretora assistente: Gabriela Estevão

Elenco: Cilene Guedes, Gabriela Estevão, Jacyara de Carvalho e Nina Pamplona

Diretora de arte (cenário e figurino): Marieta Spada

Trilha sonora: Cláudia Castelo Branco

Iluminação: Ana Luzia de Simoni

Pesquisa: Cia Baú da Baronesa (Cilene Guedes, Letícia Milena, Naiana Borges e Nina Pamplona)

Visagismo: Jacyara de Carvalho

Direção de Produção: Carolina Bellardi e Felipe Valle

Fotos: Daniel Barboza

Produção Executiva: Fernando Queiroz

Realização: Pagu Produções Culturais

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

ESTREIA: 19 de janeiro de 2023 (5ªf), às 19h

Teatro: Sala Multiuso do Sesc Copacabana

Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana / RJ   Tel: (21) 2547-0156

HORÁRIOS: 5ª a domingo às 19h

INGRESSOS: R$30, R$15 (meia) e R$7,50 (associados)

DURAÇÃO: 80 min

BILHETERIA: 3ª a 6ª das 9h às 20h; sab e dom das 13h às 20h

CAPACIDADE: 44 espectadores  

GÊNERO: drama, teatro documentário

CLASS. INDICATIVA: 12 anos

TEMPORADA: até 12 de fevereiro

PARA SABER MAIS:

A peça, o processo criativo e as poesias de Narcisa Amália de Campos estão em livro –

Para comprar o livro, basta acessar a página da Editora Funilaria –
https://www.editorafunilaria.com.br/product-page/um-palco-para-narcisa