O fim do ano chegou: você merece um presente. Não perca tempo, corra para desfrutar um banho inebriante de poesia. Acredite, uma revolução cênica extasiante varre o palco do Teatro Poeira – é Alaska, a estreia na direção do ator Rodrigo Pandolfo. A montagem esteve em São Paulo em 2022 e finalmente chega revisada ao Rio. Prepare o seu coração.
O programa teatral é de alto padrão, daqueles para ver a peça e mergulhar em animadas conversas ao redor dos desafios propostos pela cena. Afinal, o que está no palco é uma leitura ousada do denso texto de Cindy Lou Johnson, Brillant Traces, um original de 1989. Portanto, é dramaturgia contemporânea, construída em fina sintonia com a alma do mundo no presente. De certa maneira, trata-se de uma elegia ao massacre aos indivíduos que marca a sociedade de nossa época.
Fiel à tradição dramática norte-americana, a peça original pode ser definida como uma forma de drama psicológico sentimental. Contudo, na leitura de Pandolfo, os limites da forma mais tradicional foram rompidos a favor de uma visão simbólica de extrema delicadeza, capaz de falar de amor em estado de absoluta transcendência. A raiz maior do encantamento provocado pela montagem nasce desta escolha, a opção por uma requintada forma de realismo abstrato simbólico, alguns graus afastada do realismo mais direto norte-americano.
A visão do diretor aparece de imediato no próprio tratamento da trama. Com o apoio do belíssimo cenário de Miguel Pinto Guimarães e da luz sutil de Wagner Antonio, foi materializada uma cabana simplória despojada, desprovida de caracterização realista estreita, perdida na imensidão gélida do Alaska. As roupas, figurinos assinados por Jay Boggo, cobrem os corpos com discreção, são quase neutras, com exceção do vestido de noiva.
Henry, defendido por Rodrigo Pandolfo, passa sete semanas como chefe de cozinha numa plataforma de petróleo – uma opção radical de afastamento do mundo – e nas duas semanas de folga fica mais longe dos humanos encerrado na sua cabana no meio do gelo. Rosanah aparece vestida de noiva, depois de fugir da igreja e dirigir sem parar, sem qualquer descanso durante um longo tempo; ela surge de repente em busca de abrigo pois o seu carro acabou paralisado na nevasca.
Em vez de ser exposto o local da ação indicado no texto original, surge um belo lugar de emoção. O desenho geral da montagem obriga o olhar da plateia a reconhecer a força da ação em cena como ação interior. Vários traços de impossibilidade realista contidos no texto norte-americano foram realçados ou modificados, para fazer surgir duas pessoas machucadas pela vida, em busca da solidão, e de, talvez, viver a possibilidade de se reestruturar e encontrar o amor. O maior exemplo é o local de partida da jovem: Arizona, na versão original, Brasil para o texto em cartaz. Tais impossíveis – tantos e tantos – são recursos para definir arquétipos humanos, as solidões do nosso tempo.
Não se trata, aqui, de representar uma condição realista e plausível, mas sim de chegar à revelação de duas pessoas maltratadas pelo mundo a um tal ponto que se tornaram quase formas humanas abstratas de pura solidão. A cena constrói um teorema teatral contundente que não se torna piegas ou melodramático, mas, antes, se apresenta como um drama cortante em estado puro, ao qual não faltam doses elegantes de humor.
Na interpretação, Rodrigo Pandolfo buscou combinar com extrema sofisticação um estado de deserto interior tão bruto como a paisagem do Alaska (ele), em confronto com a mais ampla necessidade humana de amor e poesia, traduzível no desejo de voar (ela). Assim, Rodrigo Pandolfo e Louise D’Tuani ocupam o espaço com forte ímpeto, mas sob absoluta sutileza teatral. Há um contraponto permanente entre os dois, uma graduação emocionante de sentimentos, hábeis para falar de solidão, descrença na humanidade, desespero, vazio existencial…
Este rendilhado doloroso da alma adquire complexidade crescente – e atinge alguns momentos de puro êxtase – a partir da participação dos bailarinos Alexandre Maïa e Tayson Pio. A interpretação, então, se revela uma forma elaborada de teatro dança, como se fosse um caminho de libertação, um caminho para o encontrar-se; o andamento da cena conduz a energia da sala para uma apoteose do humano.
Diante do fluxo de beleza permanente da cena, impõe-se à lembrança o espetáculo histórico do Grupo Ponkã (SP), Pássaro do Poente, texto de Carlos Alberto Soffredini dirigido por Márcio Aurélio, em 1986. A proposta buscava o abstracionismo a partir da mescla de linguagens, sobretudo a combinação requintada entre teatro e dança. Seria, digamos, a terceira margem do rio cênico, o chão poético esboçado mas nunca explorado continuamente pelo teatro brasileiro. Existem outros espetáculos históricos que falam desta mesma trilha irresistível, mas sempre abandonada, esquecida: a senda que parte do realismo para chegar a espaços de pura imaginação livre. Ela estava presente no cenário deslumbrante de Santa Rosa para o Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943.
Talvez este teatro ousado, jorro de fantasia que reveste um coquetel de pura pele, nervos e imaginação, este teatro que estrutura a cena de Alaska, possa ser a verdadeira essência do teatro brasileiro. Isto, na verdade, se concordarmos que a alma do brasileiro é, antes de tudo, apenas poesia, único meio disponível para explicarmos a nossa imensa força de vida. Afinal, vivemos bombardeados por entraves históricos absurdos. E sobrevivemos.
Mas é provável que este dito seja apenas uma hipótese, talvez divagação banal, tese impossível de comprovar. Na dúvida, não hesite, acredite nos indícios que nos cercam: trate de fortalecer a sua alma, alimente-a com poesia. Não deixe de ver este nosso Alaska irresistível, um convite para brindar com gelo abstrato o licor mais sutil que constrói tudo o que é verdadeiramente humano…
FICHA TÉCNICA
Autor: Cindy Lou Johnson
Tradução: Luiza Vilela
Direção: Rodrigo Pandolfo
Elenco: Louise D’Tuani e Rodrigo Pandolfo
Bailarines/Performers: Alexandre Maïa e Tayson Pio
Cenografia: Miguel Pinto Guimarães
Figurino: Jay Boggo
Designer de luz: Wagner Antonio
Direção de Movimento: Lavinia Bizzotto
Trilha sonora: Azullllllll
Assistência de Direção: Rael Barja e Jean Machado
Assistência e Operação de Luz: Walace Furtado
Operação de Som: Gabriel Fomm
Assessoria de Comunicação: Fuga Produções e Comunicação – Ricardo Oliveira
Identidade Visual: Pat Cividanes
Fotografia: Pat Cividanes e André Nicolau
Redes sociais/Mídias Digitais – Rafael Gandra
Cenotécnico: André Salles Cenografia e LC Cenografia
Camareiro/Contrarregra: James Simão
Produção Executiva: Bárbara Montes Claros
Diretor de Produção: Celso Lemos
Captação: Touche Entretenimento
Administração: D’ Tuani Produções Artísticas e Realejo Produções Artísticas
SERVIÇO
‘ALASKA’
Temporada: de 3 de outubro a 15 de dezembro
Ensaios abertos: de 3 a 6 de outubro
Teatro
Poeira (Rua São João Batista, 104 – Botafogo)
Telefone: (21) 2537-8053
Horário:
Quinta a sábado, às 20h | Domingo, às 19h
Ingresso:R$ 80,00 (inteira) | R$ 40,00 (meia)
Valores dos ingressos de 3 a 6 de outubro (ensaios abertos) – R$ 30,00
Capacidade:
171 lugares
Duração: 80 minutos
Classificação: 14 anos
Bilheteria:
terça a sábado, das 15h às 21h | domingo, das 15h às 19h
Vendas pela plataforma Sympla a partir de 29 de agosto
Vendas na bilheteria do teatro Poeira a partir do dia 29 de agosto
https://www.teatropoeira.com.br/
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