LUCIA CAMARGO
Vai o nome assim solto no ar. Para iluminar a página. Sim, Lucia quer dizer luz. A constatação foi rápida, imediata mesmo, bem pouco tempo depois que eu conheci Lucia Camargo e comecei a trabalhar com ela. Que pessoa incrível, pensei, logo depois da primeira reunião. E depois de tantos anos, quase duas décadas, a certeza de que tive a honra de conviver com alguém muito especial só aumentou.
Fizemos juntas durante alguns anos a curadoria do Festival de Curitiba – com o inefável Celso Curi, formamos um trio alucinado por teatro, o trio tornou-se um caldeirão de ideias memorável. Como era isto? A definição pode ser feita de maneira bem simples. Foi sempre um grande encontro de teatro, um encontro total, pleno, radioso, divertido, intenso. Ficamos amigos.
Que prazer, varar horas em torno de uma mesa pensando e debatendo teatro brasileiro, criações magistrais, montagens fracassadas, projetos mirabolantes, equívocos redondos, propostas cotidianas, invenções radicais, arte sideral e siderada, arte de sobrevivência, grandezas e misérias do palco nacional. Tudo de tudo passava por ali. Trabalho pesado, dedicado, extenuante. E no entanto…
Ríamos muito. Lucia Camargo tinha um humor muito requintado, um sentido crítico cortante, uma elegância de ideias imbatível. Conversar, debater, era sempre troca, encontro, descobertas, estudo. E risadas, muitas risadas. A sensação, gratificante, era a de navegar num mar de ideias.
Pois é, ideias, só ideias, sem gente no sentido pequeno que a palavra gente pode conter. Como isto acontece? Nenhuma disputa de ego, nenhuma jogada exibicionista, nenhuma busca narcisista rasteira. Nada ofuscava a decisão de encontrar o teatro, o teatro pulsante do momento, situar as suas formas e tentar dimensionar o que se poderia fazer diante do que estava ali. Simples assim. O tom surpreendente do seu desempenho logo se mostrava claro, sem reservas: o prazer de trabalhar e de jogar toda a energia possível a favor da cultura brasileira.
Ao conhecê-la, vi diante de mim pela primeira vez uma grande mulher do mundo das ideias, mas perfeitamente à vontade no mundo imediato da ação. Descobri uma personalidade dedicada à cultura brasileira em tom maior, quer dizer, em sintonia não apenas com o saber, mas, sobretudo, com o realizar, como nenhuma outra pessoa que eu tenha encontrado na vida.
E que fôlego! Ela não se cansava nunca. Depois de horas de reunião, pilhas de propostas de montagens teatrais examinadas e debatidas, por vezes vídeos ou dvds analisados, ela permanecia com disposição para seguir adiante, mergulhar no que mais fosse lançado à mesa. E nós devíamos tratar de correr, para acompanhar o passo acelerado.
Explique-se um pouco mais. O seu sentido de respeito à razão de ser do trabalho de arte, a convicção férrea de que a arte é urgente e precisa seguir o seu destino, ir ao público, fazia com que Lucia Camargo tivesse um perfil muito peculiar. Tanto ela debatia ideias e conceitos sofisticados, como ela sabia qual era a luz ideal para tal cena, quais eram as limitações técnicas deste ou daquele teatro, quem seria o cenotécnico capaz de levantar tal cenário naquele outro palco. Ela circulava do fosso da orquestra ao gabinete do ministro no mesmo andamento. Falava todos os jargões e se fazia ouvir. Erguia pontes, demolia barricadas.
Antenada, farejava longe as propostas que necessitavam de visibilidade, buscava dar a mão ao trabalho íntegro carente de espaço e não sentia constrangimento em reconhecer os grandes, os mestres, aqueles cuja obra acontecia por si. O seu olhar não era segmentado, não obedecia a igrejinhas e não aceitava antolhos ditados por preconceitos, fossem quais fossem.
Apesar de seu trânsito por todo o Brasil, da intimidade que construiu com São Paulo e Belo Horizonte, Curitiba era a palma de sua mão – a mão esquerda, do coração. Depois de uma seção de trabalho, sair pelas ruas de Curitiba em companhia de Lucia Camargo era um pouco como andar no meio do povo com uma estrela do rock à tiracolo.
A situação por vezes chegava a ser esdrúxula e eu sempre brincava chamando-a de vereadora, surpresa com a procissão ao seu redor, pessoas que se aproximavam para cumprimentá-la, dar notícias de algum monumento ou relíquia da cidade, abraçá-la ou apenas matar saudades. Gentil, generosa, ela não economizava carinho e seguia, sempre solícita, risonha, divertida com cada interrupção, com aquele ar típico das pessoas que gostam muito de gente. Lucia Camargo era gente no sentido nobre da palavra, muito gente, e era um sucesso.
Ela se tornou o meu nome para o Ministério da Cultura. De verdade, bem lá no fundo, professorinha que sou e serei sempre, nem sei se acho o tal ministério necessário. Tenho dúvidas. Mas tinha uma certeza cristalina, inabalável: seria uma redenção para o Brasil ter Lucia Camargo no Ministério da Cultura. Acordaríamos, neste berço nem tão esplêndido, outras pessoas. Seria uma revolução.
No entanto… Este ano não tivemos Festival de Curitiba. Eu planejei ir a São Paulo, cidade em que ela passou a viver e em que se dedicava à SP Escola de Teatro, assinando lá um trabalho educacional e cultural de grande envergadura, mas o céu fechou. Nos falamos, esperávamos a quarentena passar para botar a vida em dia. O nome Lucia Camargo, no dicionário profundo da existência, era também sinônimo de planos, projetos, vamos fazer, quer dizer, otimismo deslavado.
Apesar da carência de teatro, apesar da incerteza e da ameaça de trevas gerais, Lucia não parava e não estava quietinha, anestesiada, entregue a crochês de quarentena. Turbilhão criativo, ela não deixava nunca de buscar respostas, soluções, para o novo anormal do recolhimento. E tinha certeza de que tudo iria passar e a luz, como no teatro, acenderia feérica no final. Mas ela não esperou. Um AVC hemorrágico derrubou-a. Perdi uma amiga muito especial.
Não me lembro de nenhum outro encontro de trabalho, na minha vida, comparável a este. Não. Nunca vi um rosto que se iluminasse assim, como o rosto de Lucia, incendiado pelas ideias, decidido a fazer o melhor para que o palco, a galeria, o espaço cultural florescesse. O resultado natural logo se deduz: trabalhar com Lúcia Camargo não era trabalho, era alegria, felicidade, iluminação, aprendizado.
Ao lado do perfil intelectual brilhante, da personalidade naturalmente culta, sem afetação ou esnobismo, havia a ingenuidade típica daqueles que acreditam na vida e no ser humano. Ela transbordava uma curiosidade infantil surpreendente, sempre disposta a buscar saber, conhecer, descobrir o novo, enfrentar desafios.
Sim, a criança estava lá sempre. Surgia no riso largo, liberto e libertador. A risada cristalina contagiosa ecoava como um presente, um convite vigoroso para brindar a graça maior da vida. A risada nascia da gentileza – dando forma àquela humanidade rara, a inteligência fazia imperar sempre uma gentileza transbordante, inclinada a concluir que, afinal, nada é tão sério. Viver era flertar com a vida, namorar os encantos do mundo, com a sensibilidade afiada pelas artimanhas do palco.
Agora, ela se foi. Importa celebrar a sua obra humana, mais do que tudo. Deverá se tornar nome de rua, nome de teatro, quem sabe nome de alguma lei especialmente revolucionária para o palco, saiba-se lá quantas homenagens, sempre tão justas, receberá. Mas o mais importante precisa ser inscrito na carne do teatro. Ou, quem sabe, na alma do Brasil. Precisa figurar no fundo das pessoas. O mais importante legado de Lucia Camargo, evidente na sua forma humana de ser luz, é a lição mais cândida, a um só tempo simples e absoluta: a lição plena de ser. Apenas isto, ser.
BREVE CURRÍCULO DE LUCIA CAMARGO
(a partir do site da SP Escola de Teatro)
Trabalho mais recente – coordenadora de extensão cultural da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, SP. Integrante da Comissão do Prêmio Shell de Teatro (SP).
Formação:
Bacharel em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), do Paraná, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialização em Produção para Televisão Educativa – Centro Brasileiro de Televisão Educativa/BBC e em História do Brasil na UFPR.
Trajetória profissional:
- Assessora de programação da Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA);
- diretora presidente do Instituto Cultural Orquestra Sinfônica de Minas Gerais;
- presidente da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte, responsável pela gestão do Palácio das Artes (Belo Horizonte)
- diretora do Centro de Referência Audiovisual da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte
- direção artística e técnica do Theatro Municipal de São Paulo (anos de 2001 2004); organização do calendário artístico dos corpos estáveis do Municipal; reestruturação das escolas de música e bailado do Municipal; desenvolvimento de política de ocupação para as salas de espetáculo do Governo do Estado de São Paulo (Secretaria Estadual da Cultura de SP)
- desde 1995, curadora do Festival de Teatro de Curitiba (seleção dos espetáculos da Mostra Oficial do festival, eventos paralelos e outras atividades artísticas)
- em 2010, foi uma das curadoras do Festival de Teatro de Belo Horizonte (FIT/BH).
- Secretária de Estado da Cultura do Paraná (1998). Neste período, criou e desenvolveu projetos como a sala de exposições Andrade Muricy; o “Comboio Cultural”, com sete ônibus preparados para percorrer os 400 municípios do Paraná, com espetáculos de música popular e clássica, teatro e dança clássica e moderna; a implantação de uma política de cultura com a criação do Fórum Municipal de Cultura, com representantes de todas as regiões do Paraná;
- diretora artística e de programação da Fundação Teatro Guaíra (1987) e dois anos depois assumiu a Secretária Municipal de Cultura e a presidência da Fundação Cultural de Curitiba.
- direção do escritório regional da Fundação Nacional de Artes (Funarte), na região sul; 1983 a 1987, promoveu a política de integração de ações culturais em artes visuais, música e folclore, nas áreas de atuação da Funarte/Minc, e assessoria técnica, como consultora dos projetos de ação cultural integrada.
- diretora executiva da Fundação Cultural de Curitiba, (criação e execução da política cultural da cidade, entre os anos de 1979 e 1983)
- conselheira da Fundação Teatro Guaíra
- membro titular do Conselho de Arte da Fundação Guaíra
- docente e coordenadora na Universidade Federal e da PUC, do Paraná