O cidadão e o nada
A nossa era é revolucionária – ela inventou o cidadão. Há pouco tempo, pessoas sem sangue nobre, sem vínculos profundos com o poder, jamais poderiam cogitar ter voz ou voto na vida social. Na verdade, estas espécies de arremedos humanos, nem eram gente: eram formas animadas do nada.
Há alguns séculos, os avós remotos daqueles que vieram do povo podiam até mesmo não ter nomes, sobrenomes. A maioria absoluta sequer tinha o direito de saber ler ou escrever. Formas nominais tais como “zé”, “zémané”, “zépovinho”, “jacques” apontam para estas existências anônimas, condenadas a sobreviver como máquinas de produzir, sem direito a ideias ou expressão.
Na longa história da opressão humana, alguns universos foram mais castigados. As mulheres formaram por longo tempo um continente à parte na sociedade, tuteladas e vistas como inferiores. Sim, algumas chegavam ao poder. Mas sempre achei bem curioso, na democrática Atenas, o fato da mulher de Péricles, Aspásia, por vezes ser definida como prostituta. As mulheres que andavam nos banquetes políticos e filosóficos eram hetaíras, mulheres honestas viviam no gineceu…
O elenco de problemas é vasto. Outras barbaridades profundas nos importam. Negros escravizados viveram um lugar de violência absurda, eram definidos sem constrangimento como ferramentas com alma. Esta inaceitável redução existencial deixou sequelas estruturais profundas na sociedade brasileira, até hoje não superadas. A partir dela, se podia considerar pessoas como objetos, desumanizadas, um processo de aniquilamento profundo, difícil de combater.
Indígenas, aqui mesmo no Brasil, foram tão massacrados, ignorados e renegados que custaram a figurar como etnia nos censos. Quando se tenta apurar os números oficiais da população indígena brasileira a partir dos censos, se verifica o tamanho da ruína: os indígenas não eram considerados nas apurações, ficavam diluídos sob terminologias tais como “caboclos” ou “pardos”.
O que estas constatações determinam para a cidadania hoje? É fundamental olhar de frente a nossa história humana, ter a dimensão objetiva das vitórias obtidas, avaliar as perdas e perceber o longo caminho ainda a percorrer para que possamos cogitar falar de nossas vidas como humanidade plena.
A atitude precisa deixar clara a importância da ruptura com toda e qualquer ótica de violência – ela lança uma luz intensa sobre ensinamentos de alguns grandes líderes. Trata-se de uma forma de luta-em-paz. Nesta partitura, nenhum saber, de Cristo a Martin Luther King, passando por Buda, Gandhi e um imenso rol de poetas, pode ser relegado a um plano secundário. Agora que somos todos cidadãos do mundo e encaramos de frente o direito à vida, vale agregar. Tudo precisa ser posto sob o foco, para que um dia, afinal, se complete a obra.
Sim, o caminho passa pelas escolas. No Brasil, a revolução escolar precisa ser a prioridade número um, absoluta, se quisermos deter nossa descida em direção à barbárie, caminho lamentável que o país começou a percorrer e do qual não demonstra desejar afastar-se. Se à educação for associada a arte, resultados mais efetivos poderão ser alcançados.
Há no Rio de Janeiro uma iniciativa importante neste campo: a implantação dos núcleos de arte, centros dedicados à formação básica em artes especialmente voltados para os alunos da rede municipal de educação. Os dados ainda são tímidos – para um total de 1063 escolas municipais, segundo pesquisa na internet, a rede municipal conta apenas com doze núcleos, segundo se pode apurar na página da Secretaria Municipal de Educação.
Eles são, ainda assim, lugares privilegiados de transformação humana. Nesta terça-feira, no Núcleo de Arte Dr. Dilson Francisco de Alvarenga Menezes, acontecerá uma tarde de atividades formativas dedicada ao estudo da Semana de Arte Moderna de 1922. A iniciativa promove a difusão de conhecimentos associada à formação – além de ter acesso a conteúdos importantes da história da arte nacional, os jovens alunos aplicam tais conhecimentos nos seus estudos de dança, teatro, artes plásticas, música e esportes.
Este tipo de reflexão fundamental – como levar o futuro a ser uma renovação humana e não uma derrota – frequenta a cabeça de educadores e pais. Trata-se de uma força que precisa ser ativada para que se chegue a um resultado novo. Não existe instrumento de mudança humana e social mais profundo do que a educação.
O limite a superar – convenhamos – é enorme. A dor social gerada por antigos e consolidados grilhões acaba por obrigar as mentes a estranhos exercícios de sobrevivência. Ela alcança um triste destaque no caso das mães negras, preocupadas em garantir a mera sobrevivência dos filhos, antes de qualquer outro valor: é preciso orientar um filho para que ele não seja brutalmente assassinado só por ser negro? É aceitável que se tenha que praticar uma educação de autocontenção para conseguir sobreviver?
Sim, a pressão da violência social brasileira, do preconceito, é tão absurda que chega a transformar a prática educativa das mães. O tema devastador está em cena na montagem Ninguém Sabe Meu Nome, estreia da semana na Sala Multiuso do Sesc Copacabana.
Com texto e atuação da excelente atriz Ana Carbatti, intérprete dotada de uma força telúrica admirável, o cartaz revela com maestria a dimensão social extensa do problema. Afinal, abordar o preconceito e a opressão não é um ato que demonstre um problema da população negra, mas é, antes de tudo, fazer um inventário de uma doença social inaceitável. Ela transforma a todos em aberrações humanas, põe à mostra mecanismos opressores vinculados a um velho tempo histórico.
Uma outra estreia no Mezanino do Sesc Copacabana, também do próximo dia 16, Amor e outras Revoluções, texto teatral de estreia da multiartista Tati Villela, amplia o debate acerca do tema humanidade e negritude. Em cena, o casamento de duas mulheres negras evidencia o imenso rol de aniquilações gerado pelo racismo estrutural no interior das pessoas.
Na linha de frente do debate está a dificuldade para o amor, evidenciada pela frase de bell hooks, mote para a concepção do texto: “Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor”. A reflexão, portanto, explora a introjeção dos procedimentos de opressão, toca fundo na ferida imposta, a dificuldade para amar a si mesmo.
O que se pretende é abrir caminho para o fluxo livre do amor. O amor, para a artista, figura como a saída mais legítima para o processo de miséria existencial imposto a todos pelo racismo estrutural. Em cena, Tati Villela atua ao lado de Mariana Nunes, sob a direção de Wallace Lino, e afirma a versatilidade do trabalho: a proposta envolve teatro, audiovisual, performance e música. O objetivo soa revolucionário, pois pretende lidar com um vasto universo de referências, dos afetos aos limites sociais e econômicos, implícitos na escolha de amar uma mulher negra, sendo uma mulher negra, hoje.
A questão formulada bate de frente com as resistências da sociedade atual, cimentadas para garantir a estabilidade do mal estar coletivo. A coesão do edifício funciona para impedir a expansão do amor e, logo, inviabilizar a difusão do humanismo. Visto por este prisma, o ideário poético revela a sua magnitude, a sua importância universal. Aqui, também, o que está em pauta não é um conflito localizado, pontual, estratégico para um grupo: ele é parte da inteireza do humanismo e, consequentemente, se impõe como necessidade coletiva.
E mais: a fala lúcida ecoa numa outra encenação, estreia também da semana, neste caso no Teatro Firjan SESI Centro. Sob a direção de Guilherme Weber, o Rio recebe a reflexão a um só tempo ácida e humorada do argentino Rafael Spregelburd, um dos mais hábeis dramaturgos pensadores do presente.
Tudo, como o nome denuncia, transporta o debate a respeito da relação indivíduo-sociedade no nosso tempo para a esfera mais ampla possível de implicações. O texto se compõe de três fábulas morais – quer dizer, relatos inventivos dirigidos ao indivíduo para que pense o seu lugar no mundo – escritas a partir de um desafio histórico muito objetivo. Quer dizer, tudo.
O autor recebeu o convite, formulado por um festival de teatro alemão, para escrever o texto em 2009, ocasião em que eram celebrados os vinte anos da queda do muro de Berlim. A solicitação foi feita sob um desenho bastante objetivo: discorrer a respeito de um problema ácido de nossa era, o colapso das ideologias e o questionamento das identidades. De certa forma, portanto, muito do leito que embalou o nascimento do indivíduo contemporâneo, ao lado da radiografia de sua orfandade.
O Estado protetor sonhado por muitos para formar e abrigar o indivíduo-cidadão construtor de uma nova época desmoronara; a maioria dos sonhos acalentados nesta velha luta se desfez como fumaça; a possibilidade de se mover neste espaço histórico novo como parcela pensante significativa demandava que tipo de energia humana, algo tomado a velhos paradigmas ou uma visão renovada?
A saída apresentada por Spregelburd caminha em direção à avaliação da transformação ideológica da sociedade, acredita na potência do indivíduo-sujeito. Assim, a primeira fábula aborda o tema da burocracia a partir da pergunta: por que todo Estado vira burocracia? Em cena, funcionários burocráticos começam a questionar valores e comportamentos absurdos de sua rotina.
Na segunda fábula, o inefável campo da arte é o destaque, com a abordagem da sensível relação entre arte e negócio, encruzilhada que acena com a possibilidade de redução do poder da arte. Na cena, convidados para um jantar de Natal adiam o início da refeição, envolvidos num debate acalorado ao redor do pós-modernismo. As palavras, portanto, flertam com o tema candente da salvação humana – e a última fábula trata das tessituras oferecidas pela religião, com um casal às voltas com a doença do filho recém nascido, numa noite de tempestade.
Perguntas densas – mas também coloridas por um humor corrosivo – percorrem o texto argentino. Formuladas por elenco de alta voltagem criativa – Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito – elas se tornam convites envolventes. Despertam a paixão mais profunda pela vida. Paixão, aqui, significa perguntar, ou melhor, vontade de entender. Não se trata de simples busca de sentido lógico, vontade de consertar as existências, ajustar o rumo da louca nau do mundo. O que acontece em cena é apenas teatro.
Teatro, afinal, não é uma ferramenta prática, não pode mais ser uma cantilena moral entediante cortesã. Num sentido amplo, teatro é uma fábrica de humanidade. Logo, formação de pessoas. Mas, ainda que sob as leis do mercado, a formação é dialógica.
A formação da pessoa, então, passa a ser a sugestão de perguntas – índice de questões coerentes com o ritmo da vida hoje, sintonizadas com a marcha do mundo. Este é o grande segredo de nossa revolução – oferecer armas, tanto ligadas às lágrimas, como ao riso – para que cada um possa fazer, dentro de si, a sua transformação, a grande revolução do tempo presente, sensível, interior.
FOTO: ANA CANAVARRO, Tudo. Dani Barros e Vladimir Brichta.
NÚCLEOS DE ARTE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
NINGUÉM SABE MEU NOME
Ficha técnica:
FICHA TÉCNICA
Idealização: Ana Carbatti
Texto: Ana Carbatti
Dramaturgia: Inez Viana e Mônica Santana
Direção: Inez Viana e Isabel Cavalcanti
Direção de Movimento: Cátia Costa
Cenário: Tuca Mariana
Figurino: Flávio Souza
Desenho de Luz: Lara Negalara e Fernanda Mantovani
Direção Musical: Vidal Assis
Fotografia: Estúdio Códigos
Vídeo/Foto: Helena Bielinsk
Direção de Produção: Aliny Ulbricht
Produção Executiva: Raissa Imani
Direção de Comunicação: Daniel Barboza
Estágio de Produção: Karen Sofia
Coprodução: Kawaida Cultural
Realização: Sesc Rio
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
Serviço:
ESTREIA: dia 16 de junho (5ªf), às 18h
Teatro: Sala Multiuso do Sesc Copacabana
Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana
Tel: (21) 2547-0156
HORÁRIOS: quinta a domingo às 18h
INGRESSOS: R$30 e R$15 (meia)
DURAÇÃO: 50 min
CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 12 anos
GÊNERO: drama
CAPACIDADE: 48 espectadores
TEMPORADA: até 10 de julho
AMOR E OUTRAS REVOLUÇOES
Ficha técnica:
Dramaturgia: Tati Villela
Elenco: Tati Villela e Mariana Nunes
Direção: Wallace Lino
Produção Executiva: Ana Beatriz Silva
Direção de Movimento: Camila Rocha
Assistente de Direção: Desiree Santos
Iluminação: Tainã Miranda
Figurinos: Raphael Elias e Gabriel Alves
Cenografia: Raphael Elias
Trilha sonora e Direção Musical: Ana Magalhães
VJ: Andressa Nubia
Fotógrafo e Designer gráfico: Charles Pereira
Social media: Aline Fornel
Assistência de produção: Priscila Manfredini
Cenotécnico: Uirá Clemente
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Assessoria
Coordenação de Produção: Rafael Fernandes
Realização: Quafá Produções
Serviço:
Temporada: 16 de Junho a 10 de Julho
Dias da semana: Quinta a domingo
Horário: 20h
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Local: Mezanino do Sesc Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Informações: (21) 2547-0156
Bilheteria – Horário de funcionamento:
Terça a sexta – de 9h às 20h; Sábados, domingos e feriados – de 13h às 20h.
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 80 minutos
TUDO
Ficha Técnica:
De: Rafael Spregelburd
Direção: Guilherme Weber
Elenco: Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito
Cenografia: Dina Salem Levy
Figurino: Kika Lopes
Iluminação Renato Machado
Preparador corporal: Toni Rodrigues
Diretora-assistente: Verônica Prates.
Produção: Quintal Produções
Direção geral: Verônica Prates
Coordenação artística: Valencia Losada
Produtor executivo: Thiago Miyamoto
Assessoria de Imprensa: Pedro Neves.
Serviço:
Teatro Firjan SESI Centro
Av. Graça Aranha, 01 – Centro – Rio de Janeiro
Temporada: 16 de junho a 17 de julho de 2022
Quintas e sextas, 19h
Sábados e domingos, 18h
Ingressos à venda pela plataforma Sympla e na bilheteria do teatro
Valores: 40,00 (inteira) – 20,00 (meia)
Desconto de 20% para funcionários da Eletrobras
Classificação: 14 anos
Duração: 1h30
Patrocínio: Eletrobras
Apoio cultural: Firjan Sesi