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Ei, Você aí! Um milionário chamado teatro

“Existe uma superstição teatral curiosa: ela reza que não se deve propalar a falta de sucesso. Para este modo de exorcizar a maré baixa quando ela já está acontecendo, vale sempre afirmar a potência da bilheteria. Por exemplo, falar que está dando meia casa, mais ou menos, algo por aí, ainda que a sala esteja às moscas.

 

Pois bem: gosto desta superstição e quero sugerir a criação de uma outra. O ponto a considerar é simples – toda obra de arte contem força para encontrar o seu público. A força está em latência na obra, irradia para o espaço ao redor e os que têm identidade seguem ao encontro, enfeitiçados, para conferir. Não estou desmerecendo a propaganda, ela ajuda, mas não é a alma do negócio. A alma do negócio-teatro é a força da obra, em potência e, em contato com o público, em estado de expressão.

 

A superstição que eu decidi criar é simples: toda obra de teatro, para acontecer, precisa ter dinheiro de teatro, ou então… a força da obra encrua, não acontece, não abraça o público. E, aí, adeus plateia. Não, não estou falando daquelas cédulas de mentirinha, adoradas pelas crianças. Estou falando de dinheiro vivo, de verdade, gerado pelo próprio teatro, pela bilheteria.

 

Para os iniciantes, marinheiros de primeira viagem, uma outra superstição seria criada, a dos padrinhos de camarins. Profissionais ou grupos mais experientes, felizes com a renovação da arte, investiriam um valor bom para viabilizar a produção de estreia de novatos, sem dinheiros de teatro ainda. Haveria até uma festa de batismo.

 

Qual o sentido desta superstição, os jovens mais inquietos logo perguntariam? Simples como água: tornar a classe mais definida enquanto categoria produtiva, mais unida e mais independente dos poderosos e dos donos do dinheiro social. Seria, de certa maneira, uma guinada para completar, afinal, a obra iniciada (e sonhada) por Mozart.

 

A prática já existe – em parte. Muita gente de teatro reinveste em teatro os lucros e mesmo a riqueza pessoal, as economias, a poupança. Já vi gente vender tudo – carro, apartamento, bens móveis – para conseguir a dotação necessária para uma produção. E existem as vaquinhas virtuais, crowdfounding, das quais participam a categoria, amigos, familiares.

 

Mas o que considero necessário é um outro foco. A ordem agora seria profissionalizar, profissionalizar a um ponto que passasse a existir, com expressão econômica forte, o dinheiro teatral. O tema não é local, exclusivamente brasileiro. E pelo andar da estrutura do showbiz, vale pensar a hipótese de que uma configuração internacional de mercado nova pode surgir.Um diálogo novo palco-plateia, em especial ali onde o Estado não faz caso da arte, como é tradição no Brasil

 

Na França, acabou de ser lançada a obra Financement participatif: une voie d’avenir pour la culture?, publicada pelo Departamento de Estudos da Previsão e das Estatísticas, do Ministério da Cultura da França, e Presses de Sciences Po. Vale assinalar a função deste departamento: a análise dos futuros globais possíveis, setoriais e temáticos, a partir de estudos e pesquisas, com o objetivo estratégico de determinar a ação pública. Vale dizer que o ministério não faz apenas contas para repartir mesadas, mas ele pensa a arte e planeja as estruturas essenciais para a sua prática.

 

A obra é muito oportuna. Ela parte da constatação de que o financiamento participativo não é novo, se for considerado o caso de Mozart. Já no século XVIII, reza a lenda, o compositor teria recorrido à prática, ansioso para ter o direito à livre expressão de sua arte, frente aos mecenas e patronos. Lenda ou verdade, de toda forma, o mercado de arte ocidental começou a se estruturar no século XVIII e, a partir do século XIX, efetivamente se constituiu como mercado.O artista se tornou livre para se vender na praça, para quem se dispuser a lhe dar um dinheiro em troca de sua arte. Em tese, o artista se libertou. Deveria se tornar realidade de mercado por sua capacidade de criar…

 

Hoje, com a internet e os computadores, o financiamento participativo se tornou uma força econômica respeitável, segundo os autores do livro. Tornou-se fácil colocar um projeto no ar, à disposição de uma comunidade de internautas, para ser analisado. Após um pouco mais do que um decênio, numerosos projetos artísticos e culturais foram beneficiados por este procedimento. Os fundos coletados por esta modalidade de produção reuniram, segundo os autores, para a cultura, 45 milhões de euros. Financiamento participativo e autoprodução são práticas em expansão, cresceram muito nos últimos dez anos.

 

Os autores, François Moreau e Yann Nicolas, se perguntam a respeito das modalidades e dos efeitos deste procedimento, a partir de dados apurados nos sites Ulule, KissKissBankBank e Touscoprod. Uma das surpresas proporcionadas pela análise do perfil dos contribuintes foi a revelação da conexão, talvez inesperada, entre proximidade geográfica e contribuição.

 

Uma das perguntas de importância no texto consiste em dimensionar o que, afinal,os produtores anônimos financiam – o tema importa para o planejamento cultural e para o pensamento a respeito do futuro da cultura. A preocupação, no caso, era definir se eles engrossam as mesmas tendências favorecidas pelos setores profissionais e institucionais, tradicionais, ou se contribuem para fazer surgir uma diversidade maior no mapa dos projetos artísticos.

 

Levando adiante o pensamento sugerido pelo livro, há um raciocínio provocativo importante.A linha de raciocínio conduz a duas constatações de impacto – em primeiro lugar, a necessidade vital de que cada arte assuma a sua potência econômica, governe a sua estrutura de produção. Urge, portanto, tomar iniciativas capazes de fazer com que o teatro constitua o seu capital – o controle do processo de produção precisa ser assumido pelos artistas, inclusive na geração do capital.

 

Em segundo lugar, é possível deduzir com muita clareza a função inteligente que um Ministério da Cultura pode – e deve – ter junto à sociedade. O Ministério da Cultura precisa pensar a cultura e se dedicar à estruturação do lugar social das práticas culturais. Isto se considerarmos, ao menos em parte, a experiência francesa – lá, em lugar da Revolução Industrial, aconteceu uma Revolução Cultural e a indústria da cultura francesa se tornou senhora do mundo. Se os ingleses dominavam os corpos, a França passou a dominar as almas.

 

No caso francês, se o ministério foi uma câmara normativa e produtiva, tal se deu até o século XVIII – daí o desespero de Mozart, ainda que ele não fosse francês. Para o bem e para o mal, o artista precisa escutar os mecenas e os gerentes da política da vez. A partir da estruturação progressiva do mercado, o ministério manteve instâncias de produção/criação, tais como a Comédie Française, mas a sua função de instância estruturante se revelou mais importante. A arte cresceu ao redor. Portanto, em lugar de financiar a produção, cabe ao estado contribuir para afiar a estrutura de produção.

 

A rigor, a percepção de que a cultura necessita ser instituição, de que valores clássicos, canônicos, precisam ser trabalhados para que sobrevivam como patrimônio comum e possam, assim, gerar o campo da cultura, integra a própria definição de ação cultural do Estado, ao menos no caso francês. Há, por exemplo, uma junção admirável de educação e cultura a favor do teatro na França.

 

É o caso da escola Théâtre Molière Sorbonne, fundada em 2017 sob a direção de Georges Forestier. Ligada à universidade e à academia de formação superior de professores e de profissionais da educação de Paris, a iniciativa promove um estudo histórico vivo de Molière. Em dezembro será apresentado o espetáculo Les Facheux, primeira comédia balé do autor, acompanhado com a música original e interpretação historicamente informada.

 

O projeto pretende pesquisar e divulgar o espetáculo teatral em sintonia com a sua historicidade. Seria um pouco como se, no Brasil, a Escola de Teatro da UNRIO criasse um Teatro Martins Pena. A partir de pesquisas históricas minuciosas, a instituição ofereceria, com a parceria do Instituto de Educação ou uma Faculdade de Educação pública, montagens dos textos de Martins Pena orientadas para a sua historicidade. Em Paris, os ingressos custam um preço acessível e são ainda mais baratos para estudantes abaixo dos 18 anos.

 

Estes casos ilustram um pouco o que se tenta falar aqui a respeito de estruturação do mercado. A suposição é a de que seria a fórmula ideal. De um lado, o capital, a prática, o teatro acontecendo, com bastante autonomia econômica e remota dependência do governo e do Capital Social. Do outro lado, o Estado e o seu cortejo de ações para garantir a infraestrutura produtiva, a formação de plateia, os alicerces da cena teatral maior. A construção de novos teatros, por exemplo, seria uma das prioridades deste formato do Estado.

 

Não é difícil definir um Estado estruturante, diferente do Estado paternalista que age nas intervenções imediatas. Uma política editorial consistente, por exemplo, precisa ser prática efetiva do Estado. Caso existisse esta concepção da cultura no Brasil, a carnavalesca Rosa Magalhães, cenógrafa, figurinista, diretora de arte, não teria esperado tanto tempo para publicar o livro E vai rolar a festa…, uma obra preciosa para a cena cultural brasileira.

 

Trata-se de um livro documentário, algo que se poderia chamar de doculivro. A obra reúne material da festa de encerramento das Olimpíadas Rio 2016 e das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro. A rigor, o projeto do livro surgiu lá atrás, no trabalho de arquivamento do material de 2007. Mas não houve chance qualquer de encontrar um patrocinador. A referência ilustra a dificuldade para a produção de livros de cultura no país, em particular no caso do teatro.

 

Mas, afinal, o resultado deste trabalho de tanto impacto pode ser reunido e publicado, para efetivar o registro histórico e para constituir fonte de pesquisa para estudiosos em geral. Foram selecionados e editados desenhos, plantas, croquis, perspectivas, fotos do making off e dos espetáculos. Uma festa para o olhar. Uma oportunidade para comemorar a imensa capacidade criativa do brasileiro, da qual Rosa Magalhães é prova inconteste.

 

Portanto, capacidade de criação, inventividade, garra, disposição estética e disposição contemplativa não faltam por aqui. Falta dinheiro. Não adianta chorar e querer colo quando a mãe, no caso brasileiro, é uma viúva alegre, que já abdicou faz tempo da gerência da prole. Então, não há dúvida, é preciso produzir o dinheiro. Vale arregaçar as mangas e partir para o trabalho, mas com um rumo diferente, capaz, quem sabe, de transformar os sucessos de retórica em sucessos efetivos, fazer nascer um teatro aclamado pelo público como ato sonante de cultura, no qual o público vê, em cena, o resultado emocional do seu dinheiro. Neste espaço, a arte do teatro se torna ato social pleno e efetivo.

 

SERVIÇOS

Financement participatif : une voie d’avenir pour la culture ?
François Moreau, Yann Nicolas
Presses de Sciences Po | Coéditions
Brochura- 18,00 €


Les Fâcheux de Molière
Jeudi 20 décembre à 19h45
Amphithéâtre Richelieu, Sorbonne Université
(17 rue de la Sorbonne, 75005 Paris)
Entrée : 10 € / 5 € (étudiants et lycéens, moins de 18 ans)
Réservations uniquement en ligne, avant le 19 décembre (pas de vente sur place) : https://www.billetweb.fr/facheux


Rosa Magalhães
E vai rolar a festa… (Ed. Nova Terra, 180 pág., R$ 80)
Foto: Fernando Tribiño / Divulgação.
LANÇAMENTOS
Restaurante La Fiorentina
Endereço – Avenida Atlântica, 458 A, Leme.
Data – Terça-feira, 27 de novembro, 19h.
Telefone – 2543-8395.
Cidade do Samba
Endereço – Rua Rivadávia Correia 60, Gamboa, Zona Portuária.
Data – Terça-feira, 11 dezembro, 17h.