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Chama a tribo e vai!

A hora é agora – nem pense em hesitar. Não tema o voo. Simplesmente, se lance. O caminho não tem volta. Chegou o momento de criar um pensamento teatral brasileiro.

Duvida? Utopia? Impossibilidade? Pois é melhor sair do seu conforto remoto e ir à luta, no bloco, pois não existe outra opção. Trata-se de uma crise de amadurecimento.

Portanto, apesar do pandemônio generalizado, a hora é positiva. Além do mais,  pensar coletivo é pensar revolução – revolução-flor, de paz, de construção. A única coisa que será demolida será a torre de marfim de cada um.

Talvez o texto dê a impressão de estar escrito em grego ou em qualquer sub-linguagem tatibitate de autoajuda. Não, não se trata disto, não se engane, não fuja da raia. Preste atenção no grande encontro da classe teatral que está acontecendo – por toda a parte, lives, debates, cursos, apresentações, encontros.

Nada disto acontece na indiferença de si. Além da difusão de identidades, propostas, projetos, há uma difusão de pensamento inédita, um encontro de arte absolutamente novo. Este ponto de convergência não pode ser ignorado, precisa ser registrado em profundidade, sem pena de fazer uma marca profunda na carne do teatro.

Vale frisar este ponto: importa registrar o acontecimento em formato digital, virtual, em suporte sonoro ou em papel. E em suporte cerebral. Ir além na sensibilidade, fixar bem o que acontece.  O fenômeno é mundial, é verdade, contudo, por aqui, a dimensão se tornou bem maior, e não apenas por conta da imensa crise política que varre o país.

Estávamos convivendo com um teatro feito no automático, uma espécie de teatro-cemitério, no qual o índice de mortalidade dos projetos era muito superior aos projetos vivos, verdadeiros projetos-zumbis que escapavam das trevas. Portanto, a sacudidela traz o cruel reconhecimento do vazio em que já vivíamos.

Assim, registrar a efervescência teatral virtual, em qualquer suporte que seja, não é o bastante. Tal providência importa, mas não basta. A necessidade maior não é a de abastecer os arquivos, mas sim impregnar corações e mentes para gerar um pensamento livre e pleno a respeito destes dados. Por isto, a advertência: chegou o momento de criar um pensamento teatral brasileiro. Um pensamento-ação.

O que seria isto? Não se trata de reduzir as visões da arte a um foco único, não é o caso de instaurar censuras ou camisas de força – nada disto. A primeira constatação que se impõe, contrariando estas reduções, é o reconhecimento da vastíssima multiplicidade da cena brasileira. Um amplo continente apinhado de criadores eloquentes.

Quer dizer – pensar teatro brasileiro equivale a pensar o múltiplo, o multifacetado, o fragmentado, o vasto e o devastado. Esta é a nossa base comum, uma espécie de caos criativo delirante.

Pode parecer um pouco frustrante, mas em geral esta massa criativa vive na ignorância das obras dos pares. Quem está no sudeste, dificilmente conhece as teatralidades do vasto interior – e interior já é um substantivo expressivo no debate. Nos desconhecemos coletivamente. O teatro brasileiro é uma forma de ignorância de si.

Assumir esta amplidão criativa surge como decorrência natural desta primeira  constatação. Mas como assumir? Vale debater as formas eficientes para fazê-lo. A segunda constatação surge naturalmente aqui – como fazer para o Brazil teatral conhecer o Brasil teatral? Não tenho resposta, nem sei se ela é fácil. Mas não é o caso de ignorar as formas dominantes ou – se a nomenclatura causar estranheza – as formas praticadas nos centros maiores.

Centros de poder continuarão a ser centros de poder, é cínico tentar mascarar uma relação de poder determinada pelo processo histórico. A existência de uma engrenagem de produção e de uma formatação de linguagem também é parte da identidade do país. Rio de Janeiro e São Paulo são áreas de potência consolidada.

Portanto, o desafio é o de pensar o encontro. E eu não sei de ninguém que esteja acompanhando o momento virtual do teatro brasileiro em todos os rincões do país. Ao que parece, o debate está acontecendo setorizado; os eventos propostos em São Paulo e no Rio de Janeiro têm obtido alcance nacional, e os acontecimentos locais, regionais, fluem sem repercussão expressiva além das fronteiras aldeãs. Vale a busca.

Assim mesmo, tudo indica que a terceira constatação que pode ser extraída dos debates teatrais do momento tem escala nacional. Parece ser uma realidade muito cristalina – o teatro brasileiro vive um momento de urgências radicais nacionais, ditado pela sociedade brasileira. E isto porque o teatro brasileiro vegeta, absolutamente carente de autoconhecimento.

E quais seriam estas urgências nacionais? O rol é imenso. Em primeiro lugar, o teatro precisa de políticas públicas claras e objetivas. Estas políticas devem ser formuladas município por município, a partir das negociações diretas dos integrantes da classe teatral com os dirigentes locais.

É preciso criar comissões, comitês locais de representação teatral, para ir aos prefeitos e aos vereadores propor ações efetivas imediatas para o teatro. Muitas necessidades são locais. Porém, algumas urgências percorrem todo o território, ainda que necessitem ser solucionadas localmente.

Uma urgência nacional é a implantação do ensino de artes na educação básica, conforme instituído pela Lei 13.278/2016 , aprovada pelo Senado em 03/05/2016. A lei alterou a LDB de 1996 e estabeleceu o prazo de cinco anos para a formação de professores habilitados para a prática, no ensino infantil, fundamental e médio. Portanto, o prazo está no final e as escolas devem seguir a determinação legal.

O ensino de artes nas escolas é prioritário para a construção da identidade cidadã contemporânea. Deve acontecer necessariamente ao lado de uma política cultural local consistente, para ampliar esta formação. Os municípios devem ter um programa complementar voltado para esta dinâmica: se não houver edital de apoio às artes, o ingresso subsidiado já muda bastante o panorama teatral de cada localidade.

Nesta linha de raciocínio, cada município, então, precisa contar com um teatro. Em cidades enormes como o Rio ou São Paulo, cada bairro deveria ter o seu teatro. A casa se obriga a ter uma pauta de teatro-escola, compatível com uma programação regular. A existência de teatros municipais ou de bairro viabiliza a construção de redes teatrais locais e nacionais, estrutura básica para a expansão do exercício regular do teatro.

Outras urgências nacionais precisam ser consideradas. A difusão da dramaturgia clássica e contemporânea figura como item de destaque a seguir. À programação cultural local importa reconhecer este valor. O estímulo à formação de dramaturgos deveria partir dos governos locais. Cada aldeia precisa estimular o aparecimento de vozes que falem de sua realidade, para o debate coletivo.

O tema a seguir, espinhoso, remete à preservação e ao estudo da memória artística teatral – local e nacional. A afirmação pode soar surpreendente, mas ainda temos pouquíssimo conhecimento do teatro brasileiro. Vastos temas e personalidades imponentes seguem relegados à sombra, condição inaceitável para um país que deseja ser senhor de sua identidade. A situação é inaceitável: a realidade histórica não pode continuar a ser uma massacrante interrogação.

As novas ferramentas nascidas com a crise não resolvem o nosso desconhecimento do passado, que depende de pesquisa formal especializada. Contudo, elas trazem uma conquista peculiar: uma parte imensa da produção atual pode ser acessada por via remota. Aqui reside um momento novo do teatro muito intrigante, mesmo que se possa debater que, afinal, teatro congelado em tela não é exatamente teatro.

Este dado certamente mudará, e de forma radical, a comunicação teatral nacional. Um exemplo? Pois bem. Estive certa vez numa banca de concurso no interior do país e descobri, chocada, que a maioria absoluta dos candidatos a professor de teatro, hábeis debatedores do texto de Hans-Thies Lehmann sobre o pós-dramático, jamais tinha visto uma peça dramática no palco. É isto mesmo: eles tratavam de desvendar um texto altamente especializado em teatro sem nunca terem visto… teatro!

Quer dizer, os jovens professores se candidatavam a ensinar um teatro não visto. Iam debater o palco, seus conceitos, suas radicalidades, mas eles jamais viram em cena Nathalia Timberg ou Gerald Thomas, ou qualquer montagem de Beckett. Não conheciam o Armazém, ou o Tapa, ou Gabriel Vilela ou Antônio Fagundes.

Este argumento final aflorou no texto como finalização explosiva deste debate acerca dos limites do nosso teatro. Todo o conjunto deste texto nasceu da necessidade de reconhecer a vivência de uma crise monumental, partindo, porém do reconhecimento de que esta crise não é de agora, não é recente nem superficial. A crise teatral que enfrentamos não nasceu da quarentena, nem da covid-19. O nosso problema é bem mais complexo. Estamos lidando com estruturas históricas cristalizadas herdeiras da não resolução do nosso passado colonial.

Vivemos num sistema arquicolonial – o melhor nome seria este? Não é pós-colonial, pois, neste caso, parece, de alguma forma, que o colonial passou. E não passou. Preservamos a sociedade de castas, a realidade escravista, a economia predatória… a nossa lista de sobrevivências e de afloramentos coloniais é imensa. Temos, em forma aguda, bem presente, todo um extenso rol de dinâmicas do passado  remoto.

Arquicolonial funciona como uma definição eficiente por todos os sentidos de “arqui(e)” – remete à arquitetura, ao remoto, ao antigo, ao poder, ao superlativo. Sugiro a leitura das acepções fixadas no dicionário Houaiss, decisivas para a escolha. A rigor, significa dizer que de lá não saímos, mas com a passagem do tempo agudizamos as mazelas.  

A colônia é aqui e dói fundo no corpo nacional. Para a colônia de nós que somos, o teatro como instrumento de sofisticação da sensibilidade é indesejável. Não queremos cidadãos plenos, democracia pulsante, pensamento livre. Quem faz teatro aqui luta contra a História e precisa ter esta consciência muito clara.

Por tudo isto e contra tudo isto, importa pensar teatro, construir um pensamento teatral brasileiro, perguntar a respeito das estruturas dos nossos sentimentos, sensibilidades, raciocínios. Assim, quem sabe, um dia seremos o Brasil. Quer dizer, o recado é simples: faça a sua parte, aja para que esta hora, que agora se anuncia, possa  acontecer.

SERVIÇO:

Veja Teatro Brasileiro Online – indicações:

 portal Espetáculos Online

Cennarium.

Ingresso Solidário e Teatro Online:

https://www.teatropetragold.com.br/

Grupos históricos:

https://www.armazemciadeteatro.com.br/#

Grupo Galpão – Os Gigantes da Montanha