O céu é o limite?
Tente fazer uma conta rápida: quantas religiões já existiram na face da Terra? E deuses, dá para ter uma ideia? Será que existe um céu para cada religião ou, apesar da alma humana tão volúvel, o céu é um só para todos nós? É universal?
E, na hipótese do céu único, sem congestionamento para cada qual achar o seu cantinho, todos por lá serão obrigados a conviver, juntos e misturados, gostem ou não de terços, figas, despachos, ebós, santidades, preces e orações? Tento imaginar o sofrimento dos ateus: para eles, o céu poderá ser um verdadeiro inferno…
E quem é devoto do teatro? Tem direito a algum recanto celeste especial ou se tornará nômade alado perdido no espaço, vagando de altar em altar? Na tribo do teatro, quem tiver dupla religião, terá que escolher uma? Ou, como a maior qualidade associável à alma parece ser a imaterialidade, a criatura ambígua se submeterá à sentença de Salomão e perderá de vista a metade rebelde?
Alguns projetos teatrais que surgem na temporada provocam este tipo de pensamento: por Dioniso, que benção é esta que estou recebendo? Como alguém deixou de lado as modinhas descabeladas da vez e mergulhou em palco, interpretação, personagens, trama e cena – e todos os apetrechos mais fundamentais para o sagrado culto dionisíaco – e promete nos levar ao céu?
Sim, pois deram de inventar um teatro do nosso tempo que – muito embora com frequência possa ser mais do que sublime – nas contas finais soa como mais do mesmo. O sujeito se aborrece o dia inteiro com as tranqueiras da vida moderna, esperneia afogado em miudezas, fecha o expediente, corre para o templo teatral em busca de um pouco de salvação e pá! Leva uma enxurrada de presente-mais-do-que-perfeito, isto é, recortes incandescentes do próprio tempo cotidiano, pela cara. Sopa de minudências vadias, da família daquelas que assombraram o seu dia. E o pobre queria só um pouco de transcendência, quer dizer, céu dionisíaco!
Neste teatro novo, super atual, até lixo de ensaio faz às vezes de bela criação. Explico – para chegar a encontrar a solução para determinado trecho de uma peça, se inspirar para a encenação ou resolver uma cena difícil, a equipe artística costuma viajar na poesia. De certa forma, pode-se recorrer a uma espécie de aquecimento, como os jogadores de futebol fazem antes de entrar no campo – passear por memórias, vivências, recitar versos, pular, rebolar, tirar a roupa, cantar músicas…
São, porém, apenas apoios para a criação, coisas para jogar fora. Nenhum craque do futebol cogita levar o exercício do aquecimento para a partida. E não é que alguns diretores pegaram a mania de ficar com o lixo e botar no palco, sem trazer a peça em si? Parece o céu de Quintana: é sempre domingo, não há o que fazer a não ser ouvir os chatos, e, lá no céu, fica pior do que aqui, pois são os chatos de todos os tempos. O teatro do lixo cênico é isto: suprema chatura.
Assim, muitas vezes o culto ao teatro não acontece. Acontece tudo no jardim, ali na pracinha, antes de entrar no templo. Para o elenco e para a equipe de arte, pode parecer um brinquedo divertido. Mas, para o cortejo de devotos do teatro, a experiência desconcerta a alma, é frustrante. E nem precisa ser amiga da Iolanda – como na piada teatral conhecida – para amargar a noite com a decepção.
Isto não significa qualificar este tipo de peça, tão moderna, como ruim, insípida ou inodora, ainda que ela esteja por toda a parte hoje como se fosse água. Tampouco vale bradar contra o mau teatro que estaria presente no palco. Na verdade, o problema é que a coisa está antes do teatro. Ele simplesmente não acontece.
A ficha técnica pode ser milionária – reunir estrelas da interpretação, sóis da direção, ases da criação cênica. Mas… o nome de Dioniso está sendo invocado em vão. Não há teatro ali. Há exibição estrelar, apenas. O que pode até ser um programa agradável, apesar da dor de dar, ao teatro, adeus.
Mas, porém, contudo, todavia, eis que um milagre acontece. Jovens sacerdotes cultores da cena escolhem um texto, seduzem um diretor obcecado pela carpintaria mais sagrada do palco, juntam uma equipe de bichos de teatro convictos e o culto solene se anuncia. Não, não haverá pecado-modinha, nenhuma transgressão se materializará contra os mandamentos profundos da arte, o teatro acontecerá como aquilo que ele é, sempre foi e será: representação.
Um alívio profundo percorre o espírito de todos os que ainda não sabem quando irão procurar abrigo nos céus (sim, melhor falar no plural!) para atingir um bem-estar teatral eterno, supondo-se, por confiança cega no além, que tal exista por lá. Condenados a vagar pela Terra de teatro em teatro, viciados em poesia destilada, e tantas vezes derrotados por uma busca em vão, os penitentes ouvem o anúncio da estreia, no Oi Futuro do Flamengo, de Órfãos, de Lyle Kessler, e celebram: ora, ora, um acontecimento cênico de grande repercussão.
Viva Dioniso. Oxigênio, enfim, respiram. E a esperança se torna regozijo quando os olhos percorrem a ficha técnica. Sim, lá vem teatro, ritual-raiz ditado pelo puro, autêntico e bom culto dionisíaco. Nada de arremedos, nenhuma enganação, extravio do lixo, absoluta entrega.
O projeto foi concebido pelo ator, roteirista e produtor Lucas Drummond, que se apaixonou pela força do texto de 1983, um fato natural para quem é crente da cena. A peça se tornou um imenso sucesso por todo o mundo, foi até transformada em filme. Para reger a montagem, ele convidou um sábio artesão de paixões, certeiro analista das palavras, Fernando Philbert, responsável pela excelente direção de Três mulheres altas, de Albee, cartaz do Teatro Copacabana Palace.
Ao contrário dos espaços de invenção dispersiva, o cenário necessário para a trama joga com uma possibilidade de combinação explosiva de realidade e imaginação. Há uma definição de lugar objetiva, essencial para que a teatralidade se faça. Isto quer dizer: uma área de criação na qual Natalia Lana tem se revelado perita. A cena solicita a materialização de um lar que é um interior claustrofóbico, mas que, de certa forma, contém o mundo.
A ideia de projeto de arte consequente se alonga nos figurinos de Rocio Moure, na luz de Vilmar Olos e na trilha sonora de Marcelo Alonso Neves – o cálculo coletivo caminha para garantir, para o texto, o efeito transcendental que move a ação. Afinal, a tradução da peça tem a assinatura de Diego Teza.
Em cena estão dois irmãos, Treat, o mais velho, e Phillip, criado por ele. Treat bate carteiras para ganhar a vida e mantem o irmão recluso, suspeito de alergia generalizada, inclusive ao mundo. Um terceiro elemento surge para turbinar a ação e as emoções, Harold. Os temas focalizados são tão eternos quanto a discussão a respeito da existência do céu – o amor, o papel da figura do pai, a relação entre sujeito e sociedade.
Os dois irmãos são defendidos por dois atores jovens interessados, em larga escala, no culto ao teatro – o idealizador do projeto, Lucas Drummond, e Rafael Queiroz. O terceiro ator, contudo, radicaliza a densidade teatral da proposta – é o veterano sacerdote Ernani Moraes, uma figura teatral icônica, nome histórico do Grupo Tapa, que não deveria permanecer longe da cena por tanto tempo.
Cada personagem da trama possui um sentido simbólico profundo, encerra valores básicos para o pensamento a respeito da existência. A trama, ao envolvê-los numa teia capaz de conectar o ritmo acelerado do século com o desabrigo, a intimidade e a necessidade eterna de amor, se infiltra profundamente na vida de todos. Um teatro de deuses humanos, portanto, um teatro feito para sugerir um compromisso mais e mais denso com o viver.
Gianni Ratto, o sublime cenógrafo e inspirado diretor, gostava de proclamar bem-humorado que a vida é arroz com feijão, ninguém consegue comer cordon bleu e caviar todos os dias. Seguramente a vanguarda e a invenção funcionam para jogar pimenta no PF, não existem por si e, definitivamente, não transitam no céu, por causa de sua inclinação para quebrar tudo e até cultuar lixo.
Talvez o grande teatro, ele sim, especialista em arrepiar almas e sacudir corações, seja o veículo perfeito para nos mostrar que existe um céu cênico no além; talvez ele seja comida de festa, uma espécie de caviar das almas. Diante dele, somos sempre órfãos, seres errantes que, à poesia, pedimos abrigo e proteção. O grande projeto de arte se torna essencial por existir em função deste jogo – inventamos a arte para nos salvar do pântano original, torcemos para que ela nos eleve ao céu.
Mas há o teatro do dia a dia, movido a trivial simples e PF, inclinado a ser algum exercício modesto, ainda que devoto, de potencialidades que se preparam para chegar, um dia, à suprema exaltação. De toda a forma, para ter impacto, não passar em branco como fantasmas anônimos, esta parte singela do culto também precisa acontecer como teatralidade intensa, fidelidade aos mandamentos da religião.
São delicadas peças demolidoras, inclinadas a perguntar incomodamente sobre o ser e a vida; discretas, elas andam espalhadas pela cidade, dedicadas a orações teatrais cotidianas. É importante vê-las: sem arrogâncias criativas, provavelmente elas sabem alguma coisa do caminho do céu, trazem formas humanas para questionar decididamente as invenções do mundo, como, claro, as razões do teatro e a invenção do céu.
Órfãos
FICHA TÉCNICA:
Idealização e coordenação do projeto: Lucas Drummond
Texto: Lyle Kessler
Tradução: Diego Teza
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Ernani Moraes – Harold / Lucas Drummond – Phillip / Rafael Queiroz – Treat
Figurino: Rocio Moure
Cenário: Natalia Lana
Iluminação: Vilmar Olos
Trilha Sonora: Marcelo Alonso Neves
Fotografia e Vídeo: Costa Blanca Films e Gaulia Filmes
Direção de produção: Bruno Mariozz
Direção de movimento: Toni Rodrigues
Produtora executiva: Angélica Lessa
Assistente de direção: Luisa Vianna
Assistente de direção de movimento: Monique Ottati
Assistente de produção: Priscila Fernandes
Assistente de comunicação: Rafael Prevot
Realização: Palavra Z Produções Culturais
Patrocínio: Oi e Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria
de Estado de Cultura e Economia Criativa, através da Lei Estadual de
Incentivo à Cultura
Perfil oficial no Instagram: @orfaosteatro
SERVIÇO:
Temporada: de 13 de outubro a 20 de novembro
Horários: de quinta a domingo, às 20h
Ingresso: R$ 60,00 (inteira) / R$ 30,00 (meia entrada)
Bilheteria: de quarta a domingo, das 11h às 19h30
Vendas online:www.sympla.com.br
Duração: 90min
Capacidade: 63 lugares
Classificação indicativa: 14 anos
Local: Centro Cultural Oi Futuro
Endereço: Rua Dois de Dezembro, 63 – Flamengo
Tel: (21) 3131-3060
Acesso para pessoas com necessidades especiais
Informações para a imprensa: Leila Grimming