Felicidade, teu nome é teatro
Vou contar um pouco aqui, mas não sei se eu consigo relatar fielmente a emoção – ou o emaranhado de emoções – que assolou, nesta semana carioca, o coração de quem é de teatro. Foi uma onda de felicidade inebriante, daquelas bravas, capazes de confirmar, ali, na batata, que o teatro é o lugar do amor. Amor ao humano absoluto.
Primeiro, foi o encontro Sesc, SESI, Oi Futuro e APTR, online, uma conversa importante ao revelar gestores da área da cultura que sabem muito bem a importância do teatro – e da cultura – no mundo de hoje. Portanto, foi um encontro cultural na plena expressão dos termos, ninguém estava ali falando de si ou de seus interesses miúdos, mas de grandezas sociais fundamentais para a existência humana no século XXI. A cultura – a indústria criativa – o teatro bem aí no meio – é o oxigênio do nosso tempo.
O bate-papo informal, mas denso, foi conduzido com maestria por Marcia Rodrigues, do Sesc. A ideia foi a de trocar vivências e dar a conhecer as expertises dos gestores, gestores com G maiúsculo, diante da crise fabulosa que envolve a sociedade brasileira e, em particular, a carioca. Antenor Oliveira, do SESI, Eduardo Barata, da APTR e Roberto Guimarães, do Oi Futuro apresentaram os seus cenários institucionais e indicaram caminhos, perguntas, inquietudes. O resultado foi tão bom que a prática deve ser continuada, pois o pensamento coletivo amplia a capacidade de ação de cada um e ilumina o diálogo social.
A conversa levou a uma constatação importante. A pandemia acabou fazendo aflorar algo que estava por aí, pairando, sem que percebêssemos com nitidez. O ponto central é um novo pensamento a respeito da cultura e um interesse revigorado pelas práticas culturais. Espera-se que o tema tenha chegado para ficar. É como se a produção cultural afinal se mostrasse como bússola das vidas, sempre libertadora em algum grau, pois eleva a percepção humana para um plano deslocado da materialidade cotidiana.
A conversa do quarteto não foi exatamente esta, não era um encontro para debater teoria, mas sem dúvida a prática da gerência da cultura apresentada deve ser lida nesta direção. O século XXI chegou e ninguém está mais disponível para visões mecanicistas da questão social da arte, mesmo diante do jogo do mercado. Hoje ficou evidente que não se pode transpor o conceito de mercadoria para a definição de arte de uma forma mecânica: a cultura está efetivamente em outro lugar.
Já vai longe a conversa de outrora sobre indústria cultural, alienação e arte burguesa. A densidade do imaginário, a dinâmica dos processos criativos, as formas de construção da informação sensível precisam ser consideradas como realidades fundantes da vida. O velho grito abaixo a arte burguesa se apresenta, agora, como uma espécie de mal entendido. Mas este é um papo longo e corre o risco de nos levar para longe do que importa, a felicidade do presente.
Felicidade sob a peste, no ritmo de uma pandemia vergonhosamente ignorada por governantes incompetentes, desprovidos de capacidade mínima para gerir a realidade do país? Pois é, é possível, acontece, aconteceu. Felicidade assim simples, assim sincera, assim plena, com todas as letras e muita emoção: o choro andou livre.
O motor de tanta felicidade foi a constatação de que existe uma inteligência vital no nosso teatro, uma forma de ser intensa, capaz de garantir a força necessária para a travessia de tempos tão sombrios. Há uma energia capaz de unir as pessoas, da vanguarda mais descabelada ao teatrão mais engomado – se é que ainda temos estes opostos antigos. A constatação simples que arrebatou a todos foi a de que existe uma família teatral, ela é um abrigo efetivo e ela se ama.
O principal resultado desta situação surgiu acachapante. Se você pensou que o teatro iria se acovardar ou sumir, lamento informar, o show não para. E não vai parar. O teatro é a arte de manter a vida viva, simples assim. Enquanto existir vida, teremos teatro. E será feito o teatro que puder ser feito – ainda que não tenhamos até agora a visão clara de como este teatro possível, virtual ou real, irá viabilizar a sobrevivência de quem o fizer.
O teatro é uma arte e é uma ocupação profissional. O teatro movimenta uma máquina econômica séria – representa 3% do PIB e emprega 5 milhões de pessoas. Como manter esta máquina em funcionamento? Tanto mercantilizar as transmissões online como atrair o público quando os teatros abrirem são desafios que permanecem irresolutos.
Portanto, importa frisar sempre que a arte não se resume ao fato da cena e do palco – assim como as atividades econômicas e produtivas envolvidas na cena ultrapassam o palco, o teatro é um estado de ser, uma forma de existir, persiste ecoando por toda a parte quando a cortina se fecha, depois que a cena se vai. Uma situação de isolamento como a que está sendo vivida é algo ameaçador, mas é apenas uma gota num vastíssimo oceano de criação, se a classe teatral possui a consciência de seus profundos significados.
Esta foi a conclusão natural extraída dos dois principais eventos teatrais da semana. Além do encontro comentado, reunião de três dos principais gestores de instituições de fomento do teatro carioca com a principal liderança da classe, o centro da semana abrigou a cerimônia de entrega virtual do Prêmio APTR/Temporada 2019, a 14a edição do prêmio.
Enquanto o debate no youtube trouxe uma forte sensação de gerência inteligente da crise, o prêmio APTR arrasou os corações com uma torrente de emoção-família. Nunca houve uma entrega de prêmio igual a esta e talvez seja impossível conseguir alguma outra que se iguale. Foi um momento de encontro, de entrega e de renovação de energia.
Nesta quarta-feira, o júri se reuniu pela manhã online e a cerimônia, à noite, um show de organização regido por Fernando Libonati, foi transmitida a partir de um estúdio organizado na Gamboa. Todos os protocolos de segurança foram seguidos, e os mestres de cerimônias se excederam na eficiência.
Maria Padilha e Miguel Falabella atuaram com precisão, sobriedade, mas irradiando a grandeza do encontro, o significado político profundo do evento. Uma conexão em rede com os indicados de cada categoria permitiu que, anunciado o vencedor, a fala de cada artista contemplado pudesse ir ao ar. A sensação de vitória contra o isolamento ecoou sob as diversas manifestações. Logicamente, o mar de emoção se instalou num crescendo irrefreável.
Difícil falar de tantas emoções em sequência. Eduardo Barata fez o pronunciamento oficial de abertura sem vergonha de ser sentimental. O apoio do Itau Cultural motivou agradecimentos sinceros e o registro da fala da Gestora de Artes Cênicas, Galeana Brasil. A campanha da APTR em prol dos trabalhadores do teatro, com o pedido de doações em benefício dos profissionais sem renda ameaçados de sérios riscos sociais, permaneceu na tela o tempo todo.
Enfim, a noite aconteceu como um encanto sem retoques – pouquíssimos imprevistos técnicos, sempre perfeitamente contornados, discursos emocionados mas diretos, sem surtos desenfreados de eloquência, demonstrações apaixonadas de amor ao teatro, eloquentes afirmações da arte, límpidos sentidos de equipe.
O homenageado da noite, Ney Latorraca, uma figura sempre exuberante, demonstrou sem timidez todo o seu magnetismo, mas se apresentou sob uma atmosfera densa de sensibilidade, diante da gravidade do drama do país. Respeitoso, com extrema elegância registrou a crise sanitária nacional através da convocação de todos para um minuto de silêncio em honra das vítimas da covid-19.
E assim foi a cadência da noite, de emoção em emoção. Ao mesmo tempo que havia um profundo respeito pela realidade dilacerante, extravasava-se o prazer de reconhecer a beleza dos trabalhos realizados. E irrompia, pura e singela, a gratidão pelo reconhecimento dos méritos de cada realização.
A bem da verdade, as reações foram, numa visão geral, incendiárias, tocaram fogo nas almas. Alguns vencedores fizeram história. A euforia de Alan Rocha, soterrado num carnaval com os filhos ao se saber contemplado, fez com que ele inundasse a tela com um imenso sorriso. Iluminado de felicidade, o seu rosto vai ficar nas memórias para sempre como dos momentos inesquecíveis da noite.
Nada disto, contudo, aconteceu sem razão. O intrincado nó de emoção nasceu de um problema muito grave, vale frisar, um momento surpresa logo na abertura da cerimônia, que fez o show começar num tom sentimental muito elevado, agudo, de arrasar. A APTR, a pedido e em acordo com a família da jovem Manoela Pinto Guimarães, decidiu criar uma categoria nova no prêmio, dedicada a um jovem talento de destaque, a cada edição.
Manoela Guimarães foi uma jovem muito especial, uma turbina de alegria. Desde muito cedo se revelou uma fã apaixonada do palco, em especial do teatro musical – e estreou em 2008, aos dez anos, na montagem carioca de A Noviça Rebelde, de Charles Möeller & Claudio Botelho, integrando a Familia Von Trapp no papel de Marta. Traída pela saúde, a jovem faleceu cedo demais, aos 21 anos – portanto, o simples fato desta homenagem já desencadearia um vendaval de emoção.
Mas a coisa não ficou por aí. Para acelerar o andamento da ciranda sentimental, a APTR convidou a atriz Fernanda Montenegro para apresentar a história da jovem atriz. No seu isolamento, a grande matriarca do teatro brasileiro gravou um relato feito com extremo carinho, traçou um desenho tocante do perfil da jovem, no ponto exato para a plateia, mesmo que fosse de pedra, começar a chorar.
Como se não bastasse, o turbilhão seguiu ainda muito adiante. O ator Rafael Telles, gratíssima revelação da remontagem de O Despertar da Primavera, também de Charles Möeller & Claudio Botelho, recebeu um convite para comentar o significado do prêmio para os jovens. E soube assim, de estalo, na hora, no ar, que ele era o indicado neste primeiro ano do prêmio, por ter feito o papel de Melchior Gabor, numa peça que foi, justamente, adorada por Manoela Guimaraes, na primeira versão. Nesta versão, houve uma récita especial em honra da jovem, por causa de seu falecimento…
Em resumo, o tom da noite começou nas alturas, na abertura, com um painel de emoções monumental, capaz de derreter estátuas de gelo. A emoção do jovem ator Rafael Telles – um nome para gravar, pois possui uma potência artística notável – arrebatou decididamente quem estava ali, diante da tela, acompanhando a vertiginosa sucessão de viradas emocionais.
O que podemos dizer? Obrigada, parabéns? Parece pouco. Talvez importe mesmo afirmar o pacto, a fidelidade a este fluxo sentimental surpreendente e tão adequado ao momento de terra arrasada vivido aqui. Sob a pandemia da covid-19, desassistidos de tudo na administração deste impasse sanitário abissal, testemunhas impotentes da ruína de um grande país, sem um movimento político efetivo de união nacional, só nos resta mesmo confiar na arte, na cultura, estes abrigos calorosos para a alma órfã que nos tornamos.
Portanto, viva o teatro. Vida longa para o teatro. E por estar vivo, uma ideia luminosa chegou de Belo Horizonte – lá, foi criado em 2003 o Instituto UNIMED-BH, para desenvolver projetos de ampliação do acesso à cultura, estimular o bem estar e a qualidade de vida das pessoas, valorizar os espaços públicos e o meio ambiente. Graças às leis de incentivo à cultura municipais e federais, o instituto reúne recursos de médicos cooperados e de colaboradores e emprega os valores em projetos culturais.
A proposta parece ter um alcance bastante inovador: o seu motor central consiste em compreender a importância da cultura para a saúde do indivíduo e da sociedade. O formato é excelente, pode perfeitamente ser copiado pelo segmento de planos e seguros de saúde, para não falar nas farmácias, laboratórios e assemelhados. A sinalização soa objetiva, ressalta a necessidade de mudar a compreensão da cultura na sociedade brasileira.
O projeto do Instituto em pauta agora, na crise, é a gravação e a transmissão ao vivo de espetáculos teatrais. São três montagens em apresentação, com transmissão direta pelo Youtube, nos canais do Sesc em Minas, do Teatro Claro Rio e pelo Canal 500 da Claro. Vale frisar: são montagens teatrais. Portanto, os espetáculos buscam manter a excelência das apresentações presenciais, com sistemas técnicos especiais para garantir a qualidade da experiência ao vivo.
Foram produzidas as peças Os Vilões de Shakespeare, protagonizada por Marcelo Serrado, apresentada no dia 27 de junho, E foram quase felizes para sempre, de Heloisa Périssé, e Não sou feliz, mas tenho marido, com Zezé Polessa. As duas últimas serão apresentadas nos dias 11 e 25 de julho, às 2030h, respectivamente.
O acesso será gratuito, mas em sintonia com as urgências sociais imensas vividas no país. Por isto, durante as apresentações, o público poderá fazer doações (via QR Code) para o programa de combate à fome “Mesa Brasil Sesc”, e para as campanhas “APTR ao Lado do Trabalhador de Teatro” e “Salve a Graxa BH” de apoio ao sustento de profissionais do setor teatral impedidos de exercer suas funções por causa da pandemia. Há tradução simultânea de libras e há áudio transcrição, para garantir o acesso às obras para pessoas com deficiências auditivas e visuais.
Enfim, como disse Miguel Falabella na cerimônia de entrega do Prêmio APTR, 2020 será o ano que nunca esqueceremos, marcado pelo estrondo sem tamanho da crise sanitária brasileira e pela obscura visão oficial da cultura. Mas ele será um pouco mais: será também um ano de reinvenção, um ano em que nos deixamos mover livres pelo nosso desejo mais profundo de adesão ao teatro.
A consciência de ser teatro também será uma marca histórica. Será, então, construído pela classe teatral, um ano de saúde teatral e de saúde cultural e artística, um ano de teatro vivo e pulsante, por acreditar em si. Um teatro de verdade humana, quer dizer, felicidade. Sobreviveremos e o teatro seguirá conosco.
SERVIÇO:
VENCEDORES DO 14O. PREMIO APTR (Temporada 2019)
Atriz:
Empate entre Analu Prestes (“As crianças”) e Letícia Soares (“A cor púrpura, o musical”)
Ator:
Gilberto Gawronski (“A ira de Narciso”)
Jovem talento (Troféu Manoela Pinto Guimarães):
Rafael Telles (“O despertar da primavera”)
Direção:
Empate entre Miwa Yanagizawa (“Nastácia”) e Rodrigo Portella (“As crianças”)
Autor:
Leonardo Netto (“3 maneiras de tocar no assunto”)
Atriz coadjuvante:
Patrícia Selonk (“Angels in America”)
Ator coadjuvante:
Alan Rocha (“A cor púrpura, o musical”)
Cenografia:
Ronaldo Fraga (“Nastácia”)
Figurino:
Gabriel Villela (“Estado de sítio”)
Direção de movimento:
Empate entre Sueli Guerra (“A cor púrpura, o musical”) e Valéria Monã (“Oboró – Masculinidades negras”)
Iluminação:
Empate entre Anna Turra, Camila Schmidt e Rogério Velloso (“Merlin e Arthur: Um Sonho de Liberdade”) e Renato Machado (“3 maneiras de tocar o assunto”)
Música:
César Lira e André Muato (“Oboró – Masculinidades negras”)
Especial:
Movimento teatro negro do Rio de Janeiro
Produção:
“A cor púrpura, o musical”
Espetáculo:
Empate entre “A cor púrpura, o musical” e “Estado de sítio”
Composição do júri: Bia Radunsky, Carmen Luz, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Maria Siman, Rafael Teixeira, Rodrigo Fonseca, Tania Brandão, Wagner Corrêa e colegiado da APTR.