Festa no arraial
O país está em festa. Por toda a parte, quadrilhas, fogueiras, quentões, foguetes e rojões. Balões, não mais – agora é proibido. Nunca mais teremos o espetáculo do céu de junho estrelado de balões. Quem é mais velho, lembra a canção: “olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo…” A beleza era do balão multicor. Quer dizer, muitos balões. Mas, tudo bem: a festa continua.
Quando alguém viaja para Portugal por esta época e depara com as festas dos santos, as danças, as celebrações nas ruas, um fato fica evidente – somos profundamente portugueses, sem saber. Foram eles que inventaram o nosso arraial.
A conexão profunda talvez ilumine uma outra noite: se Portugal presenteou o mundo com gênios literários arrebatadores, não ofereceu nunca, para a humanidade, um teatro de forte sucesso internacional. A vida de criação cênica lusitana se manteve sempre como um pequeno arraial de fronteiras locais.
A cena portuguesa, logo ali colada na espanhola, viveu sob a influência dos grandes fluxos europeus de invenção. Espanhóis, franceses, italianos, ingleses, alemães, provavelmente nesta ordem, se constituíram como as grandes referências do palco lusitano. E de lá, ora pois, estas modas e maneiras passaram para o Brasil.
De todo este inventário histórico ligeiro, estoura como uma bombinha de São João uma pergunta incandescente – será que gostamos verdadeiramente, cá e lá, de teatro? A pergunta não pode ter resposta fácil ou rápida, claro. Para quem gosta de teatro, acredita que o palco é uma forma de ginástica social das almas, portanto uma prática essencial para a saúde coletiva, de nada serviria a pressa na solução do enigma.
Uma pista interessante para o pensamento a respeito: é chocante constatar como o teatro brasileiro precisa de heróis. A conhecida frase de Brecht, lamentando a pobreza dos países que precisam de heróis, dimensiona o abismo. Quer dizer, quando algo, ainda que banal e corriqueiro, não acontece por si, “não rola”, é preciso chamar o super-homem. O herói chega e pá, resolve. Então, tristeza, a necessidade de recorrer a ele testemunha a falência da saúde social, atesta a fraqueza do coletivo.
Aí está uma identidade importante do teatro brasileiro: ele é heróico-dependente, até mesmo heroicida, quer dizer, homicida de heróis. Explico – para o palco nacional acontecer, um tanto sem uma adesão social profunda à arte, é necessário contar com a ação de figuras humanas gigantescas, obstinadas, empreendedoras. Por atuarem em larga escala, indo além de sua estatura humana, para resolver um problema pequeno, que deveria ser resolvido no coletivo, estas figuras geniais são apagadas, condenadas ao esquecimento.
A lista dos nomes absolutos que revolucionaram o teatro do país e fizeram com que ele efetivamente acontecesse não é muito longa. Mas desenha a espinha dorsal da história do teatro brasileiro. Obrigatoriamente, ela parte dos nomes de João Caetano, no século XIX, e Paschoal Carlos Magno, no século XX.
Se João Caetano cunhou um padrão nacional de ator realizador, a grande chave até hoje existente no país para manter a máquina teatral em movimento, Paschoal ousou ir mais longe. O diplomata lúcido percebeu a necessidade de ampliar as fronteiras da classe teatral e do teatro no país. Assim, arregaçou as mangas para levar novos contingentes de classe para a cena, em particular os estudantes. Ao mesmo tempo, tratou de buscar meios para a expansão do público, através da formação de plateia e do estímulo à renovação do repertório.
Paschoal não tinha medo da juventude e passou a vida favorecendo a formação dos jovens e a revelação de talentos. A sua ação alcançou limites tão estratégicos que ele construiu um teatrinho em sua casa – o Teatro Duse – ciente da necessidade de ampliação dos espaços teatrais na cidade.
Somos ingratos – ou, antes, heroicidas – não há nenhum teatro no Rio de Janeiro batizado com o nome do grande Paschoal. A bem da verdade, na Escola de Teatro da UNIRIO, o palco principal, palcão para os íntimos, registra uma homenagem singela ao guerreiro da cena no nome oficial do espaço: Sala Paschoal Carlos Magno.
Como e por que surgiu a homenagem? Nascido em 1938, contemporâneo do Teatro do Estudante do Brasil, o Conservatório de Teatro, origem da escola atual, acabou reunindo entre alunos e professores nomes que foram “crias” de Paschoal ou que descobriram a arte graças a ele. Para honrar a grandeza do mestre, concebeu-se o batismo.
Diante da crise teatral carioca, tristemente inclinada a se tornar uma condição permanente do palco da cidade, lembrar o nome de Paschoal Carlos Magno é natural. Deveríamos inventar uma oração ao São Paschoal para ver se o cenário muda de composição.
Provavelmente, estimulado pela reza, ele arranjaria um jeito para recuperar o Teatro Villa Lobos, em ruínas, uma casa que faz uma falta tremenda na vida teatral carioca. Após uma visita de inspeção para avaliar o estado da casa, o governo do Estado (FUNARJ) anunciou um plano para a recuperação do teatro. A proposta pretende ser dialógica – na ocasião, houve uma reunião dos representantes da FUNARJ com representantes das associações de moradores de Copacabana e do Leme, da Associação dos Produtores de Teatro (APTR) e com a deputada estadual Elika Takamoto (PT).
Abandonado desde 2011, uma condição inaceitável, o cálculo para a recuperação prevê a captação de recursos através da Lei Rouanet – quer dizer, é urgente invocar o São Paschoal. Paschoal Carlos Magno, sem a alavanca da Lei Rouanet, era especialista em captar dinheiro de personalidades da elite para custear obras, empreendimentos, projetos culturais.
Ao que tudo indica, de lá para cá, nada mudou muito profundamente, pois nem o Estado absorveu a necessidade de formular um projeto cultural consistente, estruturante, para a sociedade brasileira, nem as classes dominantes assumiram o seu papel obrigatório de matriz geradora de nova densidade cultural para a sociedade. Pois uma das incubadoras de heróis sociais nas sociedades violentas, desiguais e impregnadas de miséria humana, como a brasileira, é a falta de compromisso do capital com a qualidade de vida da sociedade. O dinheiro é uma produção social, tem que ter compromisso com a vida em sociedade. Quando o compromisso não é honrado, a sociedade precisa de heróis para se apresentar ao mundo com um mínimo de dignidade.
O herói Paschoal Carlos Magno, além de gerar capital vivo em moeda corrente, gerava também um impressionante capital humano. De suas iniciativas surgiram nomes de primeira linha dedicados ao teatro brasileiro, tanto artistas como grupos, coletivos, movimentos, escolas… Um dos grandes nomes que ele projetou se destacou como ator, crítico, empreendedor, empresário, diretor, professor, dono de teatro, líder de companhia – enfim, homem de teatro. E esta semana – quinta-feira, dia de S. Pedro – será comemorado o seu centenário de nascimento: Sergio Britto.
Portanto, comemoremos. Apesar da mania de apagamento dominante hoje no teatro brasileiro, a data não vai passar apenas com uma festa de São Pedro no limbo, onde, por tradição, ficariam plasmados os atores de teatro, grandes pecadores, após sua morte. Sergio Britto adorava festejar o seu aniversário, nem que fosse num pequeno jantar com amigos mais queridos. Agora a festa acontecerá numa outra casa que ele chamou de sua.
A festa será na CAL, escola que Sergio Britto ajudou a fundar e a movimentar como centro de ideais e de amor ao teatro. A celebração contará com a apresentação de um documentário sobre a sua vida, seguida de uma conversa com alguns convidados especais.
Sim, não se pode soltar balões. Pular fogueira significa que alguém cortou árvores. Dançar quadrilhas nas ruas pode não ser uma brincadeira segura. Então, deixemos as festas juninas de lado, em favor do teatro. E celebremos o centenário de Sergio Britto, um carioca da cepa de Paschoal, alguém que dedicou a vida a favor da grandeza do teatro brasileiro.
SERVIÇO:
Dia 29/06 . quinta-feira às 20h
Instituto CAL de Arte e Cultura
ESPAÇO SERGIO BRITTO
R. Santo Amaro, 44
Glória, Rio de Janeiro – RJ, 22211-230
Entrada Gratuita
*Sujeita à lotação. Senhas serão distribuídas 1h antes do início da sessão.
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