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A prefeitura e o teatro da cidade

Nasci no Distrito Federal, capital cultural do país, capital do país. Durante a infância, me afeiçoei à ideia, por obra e graça do poder, hábil, naquela época, na arte de implantar em nós um profundo civismo. Quando decidiram mudar a capital, eu ainda era criança, mas não gostei nada, esbravejei. A vida seguiu de perda em perda, e foram retumbantes os meus furores domésticos contra o esvaziamento total da importância da cidade. Contudo, ela permanecia linda. E culta. Recentemente…

 

Bom, por conta da doutrinação insana que eu sofri no inicio da vida, uma cariocagem desvairada, detesto quando maltratam o Rio de Janeiro. Sou Distrito Federal, sou Guanabara, sou Rio de Janeiro. Sou esta pequena partícula de terra bronzeada incrustada nas montanhas cansadas deste litoral velho ao sul. Mexeu com o Rio, mexeu comigo.

 

Portanto, não desisto de lutar pelo Rio e penso que neste descalabro total em que vivemos agora só há uma saída: teatralizar a cidade. Transformar o Rio num grande fluxo de teatro a céu aberto, Teatro de Janeiro. O plano é diabólico, proponho que a arte do palco envolva tudo e todos, num reformismo mais avançado do que aquele que moveu um dos meus grandes inspiradores, Lima Barreto, carioca também, Distrito Federal destilado. Nada de Pereira Passos, a coisa tem que ser mais adiante! Cariocas, avante!

 

Começaria assim – faríamos uma intervenção decidida na gerência urbana mais ampla. Exigiríamos do alcaide que estivesse no cargo a adoção de um Plano Diretor de Vitalidade Urbana – o PDVU. O PDVU imporia uma visão teatral para cada recanto da cidade, detalhadamente, ao ponto que se pudesse ter uma cidade-poema cênico, uma instalação de arte coletiva capaz de deslumbrar todo o ocidente. Sim, a ação aconteceria por bairros e de bairro em bairro ergueríamos uma cidade-arte inédita, nunca vista no mundo, quiçá na Via Láctea ou mesmo em todo o universo. Seria uma teatralização moderna, construída a partir da realidade cotidiana aqui e agora, e não uma enxurrada de voos metafísicos.

 

É evidente que o lugar número um da proposta do PDVU seria Copacabana. A Princesinha do Mar seria transformada de maneira descarada no bairro trans, no bairro fantasia, no bairro sonho. Por todas as esquinas seria estimulada a implantação de lojas de fantasias. O traje típico de Copacabana seria “à fantasia”. Os salões de beleza – você sabem que Copacabana tem uma inflação de salões de beleza, não? – seriam estimulados, com redução de impostos, para que organizassem desfiles, mostras, encontros de Fantasia de Si. Quer dizer, além de andar metido em fantasia, o transeunte poderia usar os salões para transformar face, cabelos, superfícies maquiáveis.

 

As lojas de fantasias seriam (ou poderiam ser) verdadeiros ateliês de criação – fantasia encalhada, fantasia reciclada. Imaginação pediu, fantasia surgiu – qualquer um poderia encomendar aquela fantasia esquisita desejada por toda a vida sem esperança de realização. No Carnaval, seria permitido usar fantasia de gente comum, para surpreender os turistas desavisados que estivessem muito exaltados buscando adrenalina nas ruas do bairro. E Copacabana continuaria a ser assim a nossa maior referência universal. A trilha sonora seria o bolero e a marchinha, a chuva seria confete, as cortinas puras serpentinas.

 

Ipanema seria outra coisa – seria o bairro intelectual, suprema ambição de seus moradores célebres, e teria livros por toda a parte. Além de livrarias, teria praçatecas, digamos, praças com estantes para o acesso universal e pleno aos livros. E para organizar a brincadeira festiva solene do bairro, tão agradável, do livro-esquecido e do livro-revelação. O jogo teria regras simples: todo ipanemense teria que, uma vez por mês, abandonar um livro amado, importante para as letras do mundo, no santuário-mor do bairro, a Praça Nossa Senhora da Paz. E teria também que “achar” um livro para ler, dentre aqueles deixados pelos concidadãos. A teatralização seria o ato de ler – e mesmo quem não gostasse seria convidado a vestir o figurino, andar com páginas ao redor da alma. Ler em voz alta, em público, seria a suprema manifestação de amor e civilidade.

 

Alguns bares e esquinas seriam nomeados como academias ipanemenses. O assunto em suas mesas seria necessariamente a vida intelectual do bairro, da cidade, do país e do mundo, jamais trivialidades, fofocas ou besteirol. Uma ou duas esquinas seriam transformadas em locus poeticus – assim mesmo, em latim macarrônico – tribunas livres para a recitação de poesias. E a roupa ipanemense seria esta mesma que muitos deles usam, um misto de panos enviesados, fardão acadêmico, invenção e informalidade – aquela coisa de: veja, estou na moda. Ou: eu sou a moda! A música seria a Bossa Nova, claro.

 

E por aí seguiria o plano reformador, conduzindo as almas a outros lugares: distantes das agruras de hoje, eles se tornariam lugares maravilhosos. Mas as vocações destes lugares não seriam arbitrárias, seriam ditadas pela tradição local, nada seria imposto por ato de autoritarismo. A população seria ouvida duplamente, através da escuta refinada da tradição, a qual todo bom carioca conhece bem, e através de eleição popular, bairro a bairro, em assembleias públicas bem barulhentas e sem os riscos e os custos de modernices fantasiosas como as urnas eletrônicas.

 

Não vou expor todo o plano diretor aqui – não quero correr o risco de algum aventureiro dele lançar mão. Porém, alguns exemplos mais, bem eloquentes, podem ser expostos. No caso do barulho, vejamos. Reza a tradição carioca que o bairro da Urca, talvez por ser tão novo, ter idade ao redor de um século, se tornou notável por ser um paraíso de silêncio e tranquilidade, mesmo com as tsunamis tradicionais de suburbanos que varrem o recanto nos fins de semana de verão – afinal, isto faz parte da rotina do Rio.

 

No entanto, um belo dia inventaram a mureta e a pobreta e, tchibum, adeus silêncio. Em particular no verão, há um bafafá noturno de assustar sentinela distraído. Pois bem, considerando a tradição de quietude, o plano pretende propor para o bairro a situação de oásis da pesca. Aos jovens mureteiros e pobreteiros seria oferecida requintada formação em pesca. Por todos os cantos possíveis seriam abertas lojas de equipamento de pesca e os militares do bairro, nas horas aquarteladas ociosas nas matas, providenciariam belas minhocas nativas para refinar a qualidade da atividade. A Urca permaneceria pululando juventude à beira mar, mas haveria um grande silêncio, pois ninguém consegue pescar com barulheira. E note-se: a amurada da Urca é um ponto tradicional de pesca da cidade, nada seria feito contra o que já está na essência do que é.

 

Pois o plano não torceria nunca a vocação de um lugar. Exemplos? Pois bem – Cascadura poderia se tornar um bairro de comércio de pedras preciosas, em honra ao nome. A música? Chá-chá-chá – um som bom para casos calientes de amor alimentados tantas vezes por belas pedras. No entanto, a arte de tecer sapatos artesanais sofisticados, inclusive para fantasias de luxo e para bailados de qualidade, muito bem exercitada no bairro, seria mantida, pois seria também um ato precioso.

 

O bairro do samba seria, claro, Madureira. Mas a macumba e o bate tambor dividiriam morada, pois são parentes muito chegados e afins. Embaixo do viaduto continuaria a ter a festa dos ritmos urbanos da hora. A roupa ia juntar o branco ritual, as baianas e os shortinhos, com alguma ostentação nas beiradas. Vila Isabel não se aborreceria com o samba sediado lá para o meião da linha da Central, pois se tornaria morada da seresta e da vida de bar. As modinhas românticas embalariam as noites, em contracanto com todo o cancioneiro de Noel.

 

Para o Méier migraria toda a moda, mesmo com o jeans continuando com a sua sede em Vilar dos Teles. Sim, ok, Vilar dos Teles pertence a outro município, São João de Meriti, o plano diretor não vai se atrever a gerar conflitos intermunicipais, vale só o exemplo, para tornar mais clara a coisa. Veja-se bem um outro exemplo – Botafogo, outrora um bom reduto de lojas de produtos de macumba, se tornaria o abrigo das ervas, todas as ervas, com as fantasias de folhas nativas liberadas para os moradores. Chapéus de embaúba serão acessório banal, espanadores do calor sob o ritmo de polcas e lundus.

 

E isto sem conflitos com São Cristóvão, senhor das flores, embalado com o xaxado e todos os ritmos nordestinos comendo solto. Para a Tijuca iriam os médicos, hospitais, clínicas e assemelhados, toda a população junto, aderindo aos higienizados uniformes. A música sem dúvida seria a valsa. O rock dominaria Laranjeiras, pois lá estaria o bairro hippie, pazeamor e zen. Enfim, a geografia toda se tornaria ato de arte, a partir dos matizes da própria vida cotidiana, local, como se o gosto pela performance fosse a razão de ser da polis. Os teatros brotariam do chão como uma espécie de cogumelo ávido, pois seria preciso ter muitas assembleias e muitas representações das artes locais.

 

Parece delírio de quem já está desesperado diante da crise carioca sem fim? Devaneio louco de quem não aceita a situação patética de abandono da cidade maravilhosa? Encosto de alta voltagem das almas de dois dos cariocas mais profundos, o maranhense Artur Azevedo e o nativo de estirpe Lima Barreto?

 

Sei não. Pois desconfio que a coisa está nos ares, traduz o descontentamento abissal com as omissões governativas do momento. Podem me refutar, se eu estiver errada, mas achei tudo coerente, depois do meu delírio, quando li o release da deliciosa ópera Bastien und Bastienne, de Mozart, que será apresentada no Rio neste fim de semana.

 

Justamente ela estará em cartaz nos dias 14 e 15 de Julho, na Cidade das Artes, aquele insano monumento ao desperdício que a cidade foi obrigada a engolir. No PDVU a Barra da Tijuca, por razões muito evidentes, será o bairro da ópera, com grandiloquências urbanas novas prolongando as grandiloquências inacreditáveis locais. A Barra vai se assumir em veludo, véus, bordados preciosos, rococós. Portanto, o espetáculo é mais do que bem vindo, é precioso.

 

E basta uma olhada rápida nos detalhes da proposta para que se perceba a sua beleza e a oportunidade de tudo. A ópera foi composta por Mozart aos 12 anos, razão pela qual a versão apresentada irá incorporar a figura de um narrador menino que sonha uma visita ao Rio no futuro, uma visita a uma exposição do pintor Pieter Godfred Bertichem. Deslumbrado, ao acordar ele escreve a ópera. As cenas irão surgir aos poucos, enquanto ele escreve a música.

 

O artifício dramatúrgico permitiu à concepção da montagem incorporar imagens do Rio dos séculos XVIII e XIX – verdade, aquele Rio arrebatador que virou a cabeça de tantos artistas e estrangeiros – sugerindo, hoje, um passeio visual por uma cidade apagada no tempo, desconhecida de verdade para nós, na atualidade. Um ato de magia teatral, não há dúvida, imperdível – o enredo de Bastien und Bastienne traz exatamente este colorido. A história – um Singspiel – conta as desventuras de Bastienne, jovem camponesa que perde o amado, Bastien, para uma mulher nobre. Desesperada, louca para recuperar o amor perdido, ela recorre ao mago Colas, que aconselha ao jovem casal o que fazer.

 

O diretor Manuel Thomas, em boa hora para as dores do Rio, optou projetar em cena reproduções gigantes de artistas das missões francesa e austríaca – e este procedimento ofecerá ao público a rara chance de mergulhar num túnel do tempo peculiar, de banho de amor à cidade, um banho teatral restaurador da esfrangalhada auto-estima carioca.

 

Vê-se muito bem, portanto, que está em pauta um ciclo de celebração muito especial. O foco é a recuperação da cidade. Em sintonia com este movimento, o PDVU tem larga perspectiva de sucesso. Você, carioca, fiel devoto da mais bela cidade entre todas (nenhum carioca de verdade descrê deste dogma, mesmo que não o confesse publicamente), precisa começar a agir. Pois se o Rio de Janeiro é mesmo o coração do carioca, corra, antes que o seu órgão vital seja esmigalhado, depois de arrancado brutalmente do seu peito. Nos ensinaram a amar, agora querem nos levar ao ódio. Então, lembre-se: imposições do poder à parte, o Rio merece todo o seu amor. Precisa dele. Inventaram o carioca, acreditamos: não vamos abrir mão da velha fantasia.

 

SERVIÇO:
Datas: 14/07 a 15/07
Horários: – Sábado:20h; Domingo: 19h
Duração: 60 Minutos em média
Local: Cidade das Artes
Sala: Teatro de Câmara
Classificação etária: Livre
Preços: Inteira : R$ 70,00/ Meia: R$ 35,00

 

FICHA TÉCNICA:
Direção Musical e Regência: Evandro Rodriguese
Direção Cênica: Manuel Thomas
Pianista Preparadora: Eliara Puggina
Elenco
Bastien: Rodrigo Sammarco,
Bastienne: Chiara Santoro
Mago Colas: Rafael Siano
Mozart: Vittório Gava
Atlantis Opera Orchestra
I Violino: Kelly Davis Moura
II Violino: Sarah Cesário
Viola: João Reis
Violoncelo: Diogo Moura
Contrabaixo: Matheus Tabosa
Oboé: Ruan Pablo Ribeiro
Trompas: Jhonatas Oliveira, Felipe Alves.
Produção: Kether Arts
Imagem: Hospício de D. Pedro II, Praia Vermelha,Pieter Godfred Bertichem.