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Ora, para quê afinal servem os atores?

 

Atores são descartáveis. São perecíveis. O teatro acontece, o prédio e a peça ficam, o resto vai embora. Às vezes, nem o prédio nem peça sobrevivem. Mas, de imediato, o resto morto sempre é o ator e o seu baú de truques e disfarces. Portanto, para quê servem os atores, este exagero vadio de humanidade? Para esquecer? Servem apenas para sumir nas voltas do tempo? Quem se interessa por essas pequenas partículas de sentimento e escassa razão?

 

Resumo com as minhas palavras delirantes a queixa de um aluno ator diante de uma velha crítica teatral, documento amarelado inscrito com rigor colegial num papel velho, fonte para o estudo de uma peça esquecida. O tempo arrastou todos para um porão mofado em ruínas – a peça, os atores, a intervenção crítica, por sinal muito malvada, cujo objetivo era este mesmo, apagar a obra.

 

Nas críticas, me dizia triste uma jovem amiga ainda outro dia, existe um formato congelado, velho. O ator fica dependurado lá no fim, em palavras rápidas, às vezes só citação, às vezes engolido na constatação lacônica de que o elenco estava bem, mal, péssimo.

 

E, no entanto, quem faz a força, a beleza e a magia do teatro brasileiro é o ator. Nas nossas críticas, não devíamos copiar o velho modelo francês, consagrado no século XIX, de origem acadêmica explícita. A fonte desta crítica-modelo era o résume, a apresentação condensada da intriga da peça. Ao redor deste coração, razão de ser do texto, orbitava a qualificação do autor, a fortuna de sua obra e do seu perfil. O espetáculo existia só para que as letras adquirissem vida.

 

A academia, olimpo das letras poderoso, paraíso desejado pelos jornalistas enredados nas miudezas da imprensa, devia ser vista como um padrão de qualidade normativo para os textos críticos. O jogo do mercado, o gosto do público, a capacidade artística específica de cada ator, nada disto podia contar para a análise da peça.

 

Ou melhor – contavam sim, contavam para que se apontasse como estes sensacionalismos esfumavam ou não a obra, quando ela possuía méritos acadêmicos de monta. Se a obra fosse um produto de ocasião, moldado para as correntes do mercado, para o perfil de um artista ou de um elenco, ou – a pior de todas as perfídias contra a arte – fosse um arranjo para cortejar o gosto do público, a saraivada do crítico era para derrubar o equívoco, o conjunto.

 

Não existe, assim, na tradição franco-lusitana que seguimos na crítica desde o século XIX, qualquer chance de valorização do trabalho do ator ou de destaque do jogo de cena. O que governa o olhar crítico neste filão acomodado é o fluxo ditado pelas letras, pelo texto. E se a cena rompe o texto, o defeito é da cena, ela está errada – a via é de mão única.

 

O mais notável na História do Teatro Brasileiro é a persistência deste modelo mesmo depois do advento do “teatro moderno”. Esta revolução teatral tão especial, consagradora da encenação como pedra de toque da arte do palco, obra do diretor capaz de moldar o trabalho de um elenco, não foi capaz de mover a chave de leitura crítica, do texto para a cena.

 

O paradoxo se torna ainda maior se atentarmos para um fato bastante prosaico: o teatro brasileiro tem ator, aliás foi iniciado, no século XIX, por um grande ator, João Caetano (1808-1863), mas não tem autor. O dramaturgo não existe no Brasil. Não é respeitado, não é reconhecido.

 

Bem, na verdade, é bem pior do que isto. A literatura dramática não existe no Brasil. Na escola, os brasileiros não estudam literatura dramática. Se os alunos chegam a saber da existência de José de Alencar ou Machado de Assis, por exemplo, eles não sabem que eles foram dramaturgos. Os professores de Português se formam sem ter aulas de Literatura Dramática. Aqui, Gil Vicente é um ilustre anônimo.

 

Portanto, é hilário pensar que a densidade do palco brasileiro é medida, nas críticas teatrais, através da aferição da voltagem literária da cena. O que isto significa? Significa ignorar a identidade da cena nacional, de saída. E significa também desconhecer a grande força produtiva, a extrema energia criativa que sustenta de pé o teatro do país – a força do ator.

 

Hoje, na cena brasileira, existe uma variedade impressionante de estilos, vertentes de trabalho, orientações profissionais, no que se refere à presença dos atores. Há uma força histórica original vibrante, minoritária, quase extinta, que ecoa em grandes atores como Ary Fontoura. Ou em Ana Lúcia Torres.

 

O texto é rápido, não permite grandes detalhamentos, ficará na observação geral. Sem considerar a grandeza histórica do ator nacional, é impossível pensar a força cênica deste ator no palco – temas como presença, percepção espaço-afetiva, expansão da aura são estratégicos e remontam à grande tradição.

 

Vale percorrer os tijolinhos de anúncio das peças e garimpar os valores expressivos correntes na cena brasileira hoje. Se os cartazes da temporada são considerados, o ponto de partida para pensar o ator pode ser estruturado ao redor de três vertentes independentes, além daquela acima, que se poderia definir como tradicional ou universal, por sua grande extensão estético-artística.Ela reune os atores absolutos, dedicados à abolição de si em cena, mas sintonizados com a imensidão histórica. Seria a vertente de Ary Fontoura, já citado, de monstros sagrados absolutos, como Antonio Fagundes.

 

As três vertentes que descrevo aqui são simples: o histrionismo imediato, a dimensão plástica e o ator sem corpo. É possível encontrar seres híbridos, cujos trabalhos mesclam as diferentes linhas. Mas sempre um tom define ou predomina em cada personalidade.

 

Há uma graduação técnica de uma para a outra vertente, mas tal não significa inferioridade ou superioridade, apenas diferença de procedimento. De certa forma, na primeira definição, o histrionismo imediato, devem ser situados atores de orientação racionalista, brechtianos, portanto, performers e “narratores”, contadores de histórias. São atores que se fazem conduzir pela palavra e por seus efeitos automáticos, ou por suas habilidades pessoais expressivas primárias: charme, bem dizer, empatia, simpatia.

 

Nesta primeira vertente estão situados também os atores mais jovens, menos experientes, e os profissionais que não conseguem, mesmo aclamados, sair de si, de sua forma pessoal, seu jeito de ser. São atores declamadores, ventríloquos, ainda que nem sempre senhores do texto apresentado. São sinceros e entregues, esforçados, mas contidos por sua incapacidade para vencer a sua própria forma pessoal, limite gerado por escolha, por vaidade ou por limitação de seu ímpeto interior. Isto não significa a apresentação de trabalhos ruins, mal teatro, mas um feitio específico de ocupar a cena. Em geral, os cômicos são filhos desta categoria.

 

Na segunda categoria, a dimensão plástica, concentram-se os atores de filiação moderna e pós-moderna, intérpretes dotados de aguda percepção do quadro da cena, senhores zelosos dos efeitos que podem acionar com o seu corpo. São atores de forte carisma, preocupados com a plasticidade física, atentos à sua integração ao conjunto da obra teatral.

 

Estes atores plásticos surpreendem graças à percepção aguda de sua aura: cuidam de sua dimensão, percebem o seu alcance e tecem um diálogo vigoroso entre o espaço, o conjunto da obra e o próprio corpo. Eles expandem a aura. Há pouco, um exemplo notável desta linha esteve em cena no CCBB, com a Cia dos Atores e o intrigante Insetos, trabalho em que a dimensão da construção física chegava a alcançar um impacto perturbador.

 

Finalmente, sobre a terceira vertente, a do ator sem corpo, se poderia observar que se trata de uma visão artaudiana e, portanto, de resto, inexistente. Não é verdade: ela está aí, mesmo que surja com frequência em fiapos, ocasião em que só pode ser denominada ator sem corpo por uma opção paradoxal. Pois o ator sem corpo é justamente aquele que consegue tornar o seu corpo metafísico, imaterial, apagado a favor da arte. É um corpo pungente e sublime, doado para transportar a plateia para um outro lugar que não o aqui-agora.

 

Não, não há malabarismo, acrobacia, contorcionismo – o ator constrói um fluxo de emoções em si, não apenas nas palavras e nos gestos, mas na totalidade da sua pessoa. Magnetiza, contamina a cena, um pouco como Rubens Corrêa conseguia fazer, José Wilker quando liberto de certos maneirismos. Ary Fontoura parte da grande tradição para chegar neste lugar em que o corpo é só instrumento, abolição de si. A palavra é um gatilho, usada para desencadear uma construção imaginária envolvente, induzir um estado de suspensão.

 

Muito do trabalho das jovens companhias – como o Armazém, com Patricia Selonk e Elisa Eiras – transita por esta busca. Diversas montagens da Cia dos Atores propuseram este lugar. Caio Blat, na montagem de Grandes Sertões – Veredas, direção de Bia Lessa, se afirmou com potencia absoluta no lugar do ator sem corpo, subsunção requintada do fluxo interior da literatura no espaço.

 

Um espetáculo em cartaz, singelo no seu despojamento, virulento na sua espiral de arte, exemplifica com rigor o debate – A vida ao lado, de Cristina Fagundes. Vale conferir – e rir muito. A montagem exige mais do que este comentário apressado, mas precisa ser citada por tudo o que representa em função do assunto da coluna. É para conferir como o corpo dos atores se torna trama, espaço, afeto e tempo.

 

A julgar por depoimentos, críticas, reportagens, Itália Fausta (1878?-1951) foi precisamente uma atriz sem corpo. Nunca vi um trabalho seu; até onde pesquisei, ela nunca foi filmada, e ela morreu antes do meu nascimento.

 

Alguns contemporâneos gostavam de falar do seu potente vozeirão, que estremecia as paredes dos velhos teatros ou se projetava ao redor do Campo de Santana no teatro ao ar livre. Nas fotos, mesmo quando ela está num conjunto, sua pose solene sempre catalisa a atenção, atrai o olhar; a dimensão dos gestos insinua conter em si a percepção do tamanho do palco.

 

E, no entanto, é difícil encontrar, mesmo na classe teatral, quem saiba quem foi Itália Fausta, a grande trágica brasileira, a dama absoluta da cena que sacudiu a República Velha. A conclusão é cristalina, como os brilhantes valiosos doados às grandes atrizes, no tempo em que elas eram rainhas fugazes: o ator é opaco para a posteridade, ele só é revelado ao mundo por terceiros, pelos seus contemporâneos.

 

Falar em brilhantes é falar em prêmios e hoje, no nosso jogo teatral, buscamos compensar a falta de projeção dos atores no tempo com as premiações. Vem aí nesta quarta a entrega dos Prêmios APTR de teatro 2017, no Teatro NET Rio, e o centro da festa será, como sempre, a celebração dos atores, estes mesmos que, embora laureados, vão morrer para a História. Assim como são transparentes nos textos críticos, pois devem deixar ver outra coisa que não eles próprios ou o seu trabalho.

 

Ao passar ao largo do trabalho do ator, ao não lançar um foco mais intenso sobre o seu trabalho, a crítica teatral presta um grande desserviço ao país – deixa de reconhecer os méritos, para o bem e para o mal, dos artistas responsáveis pela existência do teatro aqui. A maioria dos projetos encenados nos palcos do país é obra de atores.

 

Portanto, perguntar sobre a utilidade dos atores, perguntar para quê servem estes seres tão dependentes do outro, é perguntar francamente sobre a nossa ignorância. Está na tela algo simples, mas muito doloroso, o nosso fracasso para reconhecer os seres raros que trabalham para a nossa maior grandeza, a percepção do outro. quem não reconhece o outro, é indigente histórico: somos carentes de civilização.

SERVIÇO:
 
A VIDA AO LADO – (COMÉDIA)
Duração: 1h30min
Temporada: 03 a 26 de maio de 2018
Local: Teatro Municipal Serrador
Endereço: Rua Senador Dantas – 13 / Centro
Telefone: (21) 2220-5033
Dias: Quintas / Sextas e Sábados, às 19h30min
Ingressos: R$40 (inteira) / R$ 20,00 (meia entrada)
Classificação: 14 anos.

 
Indicados ao Prêmio APTR -2017
ESPETÁCULO
ADEUS, PALHAÇOS MORTOS
HAMLET
LOVE, LOVE, LOVE
SUASSUNA – O AUTO DO REINO DO SOL
TOM NA FAZENDA
ATOR EM PAPEL PROTAGONISTA
ADRÉN ALVES – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
ARMANDO BABAIOFF – Tom na Fazenda
ARY FONTOURA – Num Lago Dourado
GUSTAVO VAZ – Tom na Fazenda
RICARDO KOSOVSKI – Tripas
ATRIZ EM PAPEL PROTAGONISTA
ALINE DELUNA – Josephine Baker, A Vênus Negra
DÉBORA FALABELLA – Love, Love, Love
GUIDA VIANNA – Agosto
MONICA MARTELLI – Minha Vida em Marte
PATRÍCIA SELONK – Hamlet
YARA DE NOVAES – Love, Love, Love
ATOR EM PAPEL COADJUVANTE
CLAUDIO MENDES – Agosto
FÁBIO ENRIQUEZ – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
MÁRIO BORGES – Doce Pássaro da Juventude
RENATO LUCIANO – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
RODRIGO POCIDÔNIO – Adeus, Palhaços Mortos
ATRIZ EM PAPEL COADJUVANTE
CLAUDIA VENTURA – Agosto
HELOÍSA JORGE – O Jornal
KELZY ECARD – Tom na Fazenda
LETÍCIA ISNARD – Agosto
LISA EIRAS – Hamlet
AUTOR
BRÁULIO TAVARES – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
GUSTAVO GASPARANI – Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba
LUÍS ALBERTO DE ABREU – Pagliacci
MONICA MARTELLI – Minha Vida em Marte
PEDRO KOSOVSKI – Tripas
DIREÇÃO
ERIC LENATE – Love, Love, Love
JOSÉ ROBERTO JARDIM – Adeus, Palhaços Mortos
LUIZ CARLOS VASCONCELOS – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
PAULO DE MORAES – Hamlet
RODRIGO PORTELLA – Tom na Fazenda
CENOGRAFIA
AURORA DOS CAMPOS – Tom na Fazenda
BIJARI – Adeus, Palhaços Mortos
CARLA BERRI E PAULO DE MORAES – Hamlet
MARCOS ANDRÉ NUNES E MARCELO MARQUES – Guanabara Canibal
SÉRGIO MARIMBA – Monólogo Público
FIGURINO
ANTÔNIO GUEDES – Ubu Rei
JOÃO MARCELINO E CAROL LOBATO – Hamlet
KIKA LOPES E HELOISA STOCKLER – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
MARCELO OLINTO – Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba
ILUMINAÇÃO
ADRIANA ORTIZ – Monólogo Público
MANECO QUINDERÉ – Hamlet
PAULO CÉSAR MEDEIROS – O Jornal
RENATO MACHADO – Guanabara Canibal
TOMÁS RIBAS – Tom na Fazenda
MÚSICA
ALFREDO DEL PENHO, BETO LEMOS E CHICO CÉSAR – Suassuna – O Auto do Reino do Sol
FELIPE STORINO – Guanabara Canibal
JOÃO CALLADO – Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba
MARCELO ALONSO NEVES – Dançando no Escuro
CATEGORIA ESPECIAL
ANIELA JORDAN – pela gestão e programação do Centro Cultural João Nogueira – Imperator
IVAN SUGAHARA – pela curadoria da Sede das Cias
RENATO VIEIRA – direção de movimento e coreografias de “Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba”
SERGIO SABOYA – pelo Festival Cena Brasil Internacional
VERÍSSIMO JÚNIOR – pelo trabalho no Teatro da Laje
PRODUÇÃO
AGOSTO
SUASSUNA – O AUTO DO REINO DO SOL
TOM NA FAZENDA
UBU REI
UM BONDE CHAMADO DESEJO
VAMP, O MUSICAL
HOMENAGEM
Amir Haddad
Comissão julgadora do Prêmio APTR:
Bia Radunsky, Daniel Schenker, Lionel Fischer, Luiz Felipe Reis, Macksen Luiz, Maria Siman, Rafael Teixeira, Rodrigo Fonseca, Tania Brandão e Wagner Correa de Araújo.