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         Os laços e os embaraços

Faltam palavras. A expressão resume bem a reação diante de uma situação surpreendente.  Não, não estou falando do esforço para tentar definir a realidade brasileira hoje. O foco é antes, é o século XIX brasileiro. Andei às voltas com estes tempos tão próximos e tão esquecidos. E fiz um exercício de espanto.

Precisamos pensar o nosso século XIX não só por conta dos belos bicentenários que teremos no ano que vem. A necessidade aparece clara porque, lá, criamos laços e embaraços impressionantes. Difíceis de lidar…

É claro que o mais forte de todos é a escravidão. Nas pesquisas, diante dos jornais daquele tempo, não consigo superar o choque violento que recebo ao deparar com os anúncios de escravos. Compra, venda, leilões, escravos fugidos…

Tenho uma profunda dificuldade para entender como as pessoas lidavam com uma realidade tão brutal. E o choque, tenho certeza, nasce por uma razão simples – foi ontem, o século XIX está perto demais.

A minha curiosidade, então, segue caminhos objetivos e logo nasce a pergunta corrosiva: como o pensamento social era conduzido para que os indivíduos acatassem, em larga extensão, esta aberração hedionda? Como o índice de repulsa, de rebelião social, era tão passível de controle ao ponto de termos conquistado a lamentável marca de sermos o último país das Américas a abolir a escravidão?

Desconfio que há algo muito errado com o senso comum brasileiro; ainda hoje, convivemos indiferentes com a miséria absoluta de crianças, que rolam pelas ruas sem despertar um clamor social. Não há dúvida de que esta nossa miséria humana de hoje nasce da nossa longa prática da escravidão.

Então, para a sobrevivência e a manutenção destas práticas, parece fundamental que existamos como uma sociedade profundamente autoritária, prepotente, preconceituosa. Ao olhar o século XIX, um fato importante para o teatro – e para a construção do pensamento social – sempre chama a minha atenção, é a criação do Conservatório Dramático (1843-1864).

Apesar do nome induzir a erro, o Conservatório foi, em resumo, nada mais nada menos do que a censura teatral da época. Sim, concorria com a polícia, que também julgava a qualidade das peças – ainda que a polícia não examinasse a “qualidade literária”.

Os censores do conservatório precisavam analisar e comentar a qualidade literária, mas iam muito além, olhavam com afinco o efeito da peça na sociedade. E os seus titulares – quer dizer, os censores em exercício – eram os literatos, intelectuais e dramaturgos.

Isto significa dizer que os autores teatrais proibiam as peças consideradas nocivas à moral, aos costumes, à estabilidade do poder e da família. Logicamente, as peças com recorte contundente contra a escravidão eram proibidas.

E uma das penas de destaque neste triste ofício esteve na mão de Machado de Assis. Alguns dos seus pareceres censórios são chocantes peças de reacionarismo, em especial em casos em que o assunto era a escravidão.

Na segunda época de existência do Conservatório (1871- 1897), o grande caso escandaloso de censura foi a proibição de O Escravocrata, de Artur Azevedo e  Urbano Duarte. Portanto, o exame do simples exemplo do Conservatório Dramático já anuncia a trama complexa que estrutura a sociedade brasileira. Há um intrincado de linhas e nós percorrendo a história nacional, há uma teia de contenção da expressão humana plena, liberta, limites rigorosos para a plasticidade da sociedade.

A história importa. A partir dela, os números da miséria nacional ganham sentido e denunciam os limites estruturais para mudanças: logo se vê a extensão do desafio que é desejar transformar o país. Quer dizer, a inteligência da história explica o panorama social que nos cerca. Pois a partir dela é que podemos constatar o quanto existimos como cidadãos indiferentes.

Por isto, estão nos jornais de hoje a ameaça direta contra as vozes indígenas, o  horror dos números da liquidação negra e da opressão das mulheres, o volume imenso do preconceito contra as minorias e contra as liberdades individuais, o quadro lamentável dos parcos direitos infantis. Por que estes problemas persistem em cartaz?

As perguntas afloram em borbotão. Talvez possamos dizer que somos um tanto autômatos sociais? Muitos de nós até frequentam passeatas, assembleias, alteiam as vozes nos protestos, mas estas ações se bastam, se fecham em si, não se desdobram, apenas apaziguam as inquietudes e a vida segue? O clamor passa e o poder segue o seu curso de sempre? Qual é a nossa vida cidadã? Ela é como se dispuséssemos de formas públicas de esperneio, mas acabássemos seguindo as vidinhas de sempre?

Não é só do século XIX que nasce esta vertigem de perguntas. Dois novos trabalhos de dramaturgia – obras de uma dramaturgia livre, entregue em plenitude ao ofício – surgem esta semana como obras fundamentais para pensar, exatamente, a forma de ser, de existir, brasileira.  São obras filhas da inteligência da História, digamos.

No Teatro II do CCBB, uma festa teatral vai permitir comemorar os quinze anos da Cia Teatro Independente. A celebração vai acontecer em cena, com Pá de Cal (Ray-lux), um novo texto de Jô Bilac, sob a direção de Paulo Verlings.

O tema é ácido, cortante: fala precisamente da morte social em vida. Quer dizer, a capacidade de semiviver os fatos, estar presente em acontecimentos decisivos a partir do envio de um representante. Portanto, não–estar, não ser.

O ponto de partida é a morte de um familiar, algo que exige a presença dos parentes próximos, mas o problema aparece contornado graças à terceirização da presença. Em lugar de aparecer no encontro, digamos, enfadonho, cada um envia um representante… E não vai!

No título, já há referência explicita ao tema – a pá de cal é usada para a despedida de quem morre, é um último aceno,  ray-lux é o nome de uma urna funerária de altíssimo luxo. A escolha desloca a discussão para o tema social.

Para reforçar o tom de debate acerca das condições existenciais brasileiras, foi escalado um elenco bem miscigenado, imagem precisa do Brasil. Estão no palco Carolina Pismel, Isaac Bernat, Kênia Bárbara, Orlando Caldeira e Pedro Henrique França. A linha de interpretação é naturalista, com intensidade de trabalho físico.
A fisicalidade dos atores sublinha, no caso, a ausência dos parentes. Afinal, na trama, para abordar a supressão espontânea de si, recorreu-se à escalação de um múltiplo de si. E assim  a peça remete a outro plano de debate, uma outra forma de ausência existencial.

Ela importa muito para que se possa desenhar um panorama da cidadania brasileira. É  a liquidação direta da voz dissidente, o assassinato da oposição, a morte objetiva do outro. A violência brasileira é tão grande que temos uma sólida tradição de assassinar os discordantes.

Este é o tema de outro texto, o drama Onde está Liz dos Santos?, da dramaturga estreante Beatriz Malcher, próximo cartaz do Teatro Firjan SESI Centro. Neste caso, além do espetáculo presencial, haverá transmissão online.

Vale conferir. Ao lado do tema relevante, urgente mesmo para as inquietudes que marcam a dinâmica sócio-política  e a história do país,  a proposta apresenta uma densidade teatral  muito particular.

A iniciativa contribui para consolidar a força da dramaturgia nacional, pois a peça foi escrita durante a 6ª turma do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI, coordenado por Diogo Liberano. Em consequência, uma forma inovadora de estruturação do texto fundamenta o desejo de se perguntar sobre a estrutura arcaica da sociedade.

Sob a direção de Tatiana Tiburcio, a trama focaliza uma cidade dominada por milicianos, onde a posse de armas está liberada. A linha central do enredo aborda a saga de Maria das Graças, uma mulher dedicada à busca da filha, Liz. Figura questionadora, ela desapareceu após ser levada a uma delegacia local.

Em paralelo com a realidade brasileira, a encenação conta uma história de perseguições, desaparecimentos e submissões.  A trama de violência contra os direitos básicos do indivíduo envolve não apenas o Estado, mas a elite e a igreja, um cenário solene de omissões.

A inspiração da autora surgiu de entrevistas realizadas com pessoas que moram no Rio, em regiões dominadas por milícias, e até mesmo de um episódio específico. Numa fila de banco, uma senhora lhe contou que perdeu um filho, a casa e o negócio de que vivia, quando deixou de pagar as taxas exigidas por um grupo clandestino.

Vale frisar que o conceito teatral explorado na montagem não é o docudrama nem o teatro documentário. Há um desejo explícito de ir um tanto adiante. Para atingir este objetivo, há um cálculo ambicioso, a criação de um fluxo cênico capaz de favorecer a reflexão a respeito de um ambiente dominado por ações fascistas, posturas autoritárias, violentas.

Ou seja, o que se quer é conduzir a plateia ao entendimento do dispositivo social de morte cidadã, típico do país  – um processo explícito de desumanização. Sob o foco, está o trabalho com o pensamento social.

Desta forma, para pretender chegar a tanto, a dramaturgia se inclina a romper com os padrões convencionais. Há uma nova escritura cênica – em lugar de fotografar o real ou de simular um retrato do real, os dados surgem como retalhos de vida, recortes ou estilhaços de fatos, para sugerir a formulação de perguntas.

Na direção de Tatiana Tiburcio, o foco central é o trabalho dos atores, corpos que contam histórias. A linha decorrente de tais escolhas se faz como despojamento e entrega, cenas limpas e cruas, atores em estado de expressividade plena. Integram o elenco os atores Anderson Guimarães, Clarissa Menezes, Fernanda Dias, João Mabial, Julio Wenceslau e Luciana Lopes.

Enfim, uma semana marcada por duas promessas teatrais bastante interessantes, pois desafiam a herança do século XIX. De saída, há a valorização notável da dramaturgia em estado livre, uma dramaturgia devotada a pensar a linguagem teatral e a sociedade brasileira, condição impossível de experimentar nos oitocentos. Afinal, o Conservatório Dramático não permitiria.

Em sintonia com a liberdade poética, há a graça arrebatadora de buscar pensar o país. E assim as palavras surgem em turbilhão, avassaladoras, prontas para o desafio de pensar o hoje, dispostas a desvendar a tristeza daquele nosso primeiro século – ali onde a escravidão arrasava a possibilidade de todos de sequer sonhar em ser gente.

A escravidão cria laços profundos: quem pratica o exercício de força de transformar o outro em objeto, se desumaniza, se torna objeto também. Que a inteligência teatral, filha dileta da inteligência histórica, nos auxilie a desfazer tantos laços sombrios, liquidar os embaraços instaurados com a longa prática, aqui, da mais torpe escravidão.

 Pá de Cal (Ray-lux),
Ficha técnica
Dramaturgia: Jô Bilac
Direção: Paulo Verlings
Diretora Assistente: Mariah Valeiras
Elenco: Carolina Pismel, Isaac Bernat, Kênia Bárbara, Orlando Caldeira e Pedro Henrique França
Cenário: Mina Quental
Figurinos: Karen Brusttolin
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Trilha Sonora: Rodrigo Marçal e João Mello

Direção de Movimento: Toni Rodrigues

Visagismo: Rafael Fernandez

Assessoria de Imprensa: Ney Motta

Programação Visual: André Senna

Fotos de Divulgação: Antônio Fernandes
Direção de Produção: Jéssica Santiago
Argumento e Idealização: Paulo Verlings 
Realização: Teatro Independente e 9 Meses Produções

Serviço
Centro Cultural Banco do Brasil – Teatro II
Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro
Informações: 21 3808-2020
Temporada: 20 de novembro a 19 de dezembro de 2021.
Apresentações: Quintas, sextas e sábados, às 19h, e domingos, às 18h.
Valor do ingresso: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia entrada)
Vendas na bilheteria do teatro ou pelo site www.eventim.com.br
Ingressos à venda a partir de 8 de novembro.

Não recomendado para menores de 14 anos.

Capacidade de público: 150 lugares
Duração: 70 minutos

O Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro funciona de quarta a segunda (fecha terça), das 9h às 19h aos domingos, segundas e quartas e das 9h às 20h às quintas, sextas e sábados. A entrada do público é permitida apenas com apresentação do comprovante de vacinação contra a COVID-19, medição de temperatura e uso de máscaras. Não é necessária a retirada de ingresso para acessar o prédio,  os ingressos para os eventos podem ser retirados previamente no site ou aplicativo Eventim ou na bilheteria do CCBB.

 Onde está Liz dos Santos?,

Ficha técnica

Dramaturgia: Beatriz Malcher

Direção: Tatiana Tiburcio

Elenco: Anderson Guimarães (Matteo “Dentinho”), Clarissa Menezes (DR. Ribeiro/Marissa), Fernanda Dias (Carla Jordão), João Mabial (Delegado Sebastião), Julio Wenceslau (Pastor Hedelberto) e Luciana Lopes (Maria das Graças)

Assistência de direção: Julio Wenceslau

Iluminação: Jon Thomaz

Direção de arte: Carlos Alberto Nunes

Costura cênica: Katia Salles e Nilce Maldonado

Confecção de máscara: Vanessa Dias

Direção Musical: Beà Ayòóla

Operação de som: Nádia Bittencourt

Operação de projeção: Andressa Núbia

Fotos: Daniel Barboza e Diogo Nunes

Programação visual: Bianca Oliveira – Estúdio da Bica

Redes Sociais: Lyana Ferraz e Gabriel Innocencio

Assessoria de imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)

Produção: Clarissa Menezes

Assistência de produção: Júlia Sarraf

Coordenação do Projeto: Diogo Liberano

Serviço presencial

Espetáculo “Onde está Liz dos Santos?”

Temporada: 19 a 28 de novembro

Teatro Firjan SESI Centro: Av. Graça Aranha, 1, Centro

Dias e horários: 6ª, às 19h e sáb. e dom., às 17h.

Telefone: 21 2563-4168

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada).

Vendas: Sympla e bilheteria do teatro

Telefone da bilheteria: 2563-4163

Duração: 1h15

Lotação: 270 pessoas

Classificação Etária: 14 anos.

Serviço on-line

Temporada: 01 a 30/12. Poderá ser acessado em qualquer dia e horário durante esse período.

Onde assisir: Canal do Youtube Firjan SESI (www.youtube.com/c/FirjanSesi)

Ingressos: gratuitos

Duração: 1h15

Classificação Etária: 14 anos.

Assessoria de imprensa:  Racca Comunicação – Rachel Almeida