A sua voz e o teatro
Qual é a voz do teatro? A sua? A do herói? A voz da coletividade? As falas que inspiram os textos nascem da fantasia dos autores, nascem do seu olhar para a vida ao redor? Ou são meras palavras ditadas pelos atores, avidamente capturadas pelos autores?
Quem frequenta teatro em algum momento esteve diante destas perguntas, em resumo, o desejo de saber qual a natureza concreta do motor da cena. Ah, coisa simples, proclamará o espectador distraído – nenhuma das respostas acima, o que move a cena é a teatralidade…
A rigor, a resposta singela parece surgir como uma espécie de rotatória de estrada maluca – pois não indica uma saída objetiva para o desafio proposto. Será? Afinal, as vozes permanecerão para todo o sempre em cena. Mas… E a teatralidade? É privilégio da cena? Já se disse que a teatralidade mora no interior de muitos textos.
A afirmação vem de um grande especialista, José Sanchis Sinisterra, capaz de apontar a marca da força bruta do teatro em textos narrativos concebidos para a solidão do leitor independente. E ele tem razão. Basta olhar atentamente para ver que ela, a teatralidade, tão difícil de definir, está ali, ao alcance dos corpos, por toda a parte… Dá para definir assim, assim a tal da teatralidade?
Será que o pensamento precisa ir mais adiante, para constatar, neste nosso tempo de expressão de tantas vozes, a presença do teatro em qualquer texto? O teatro pode dar presença e força expressiva a qualquer emaranhado de letras? Neste caso, teatro quer dizer teatralidade e o seu lugar de moradia é o ator?
Se a teatralidade habita o ator, tanto a lista telefônica quanto qualquer bula de remédio podem conquistar a graça de acontecer em cena? E mais: acontecer com impacto sensorial e emocional? Podemos nos emocionar ao ouvir a lista dos telefones da nossa cidade?
A continuidade do raciocínio leva à constatação, sustentada por Sinisterra, de que a teatralidade pode existir como qualidade intrínseca em muitos textos, textos nos quais a narrativa se abre para libertar a capacidade de fabulação do leitor. Como acontece em Kafka, por exemplo, por isto tão encenado na atualidade… Ok, aí temos uma definição a respeito da natureza dos textos.
Mas importa considerar também o dom do teatro – a teatralidade objetiva da cena. Então ela existe nos palcos como operação específica do ator, o artista capaz de doar carne e poesia para letras insípidas, secas, como uma lista de nomes e números de telefone, por exemplo?
Parece muito importante perceber o quanto a potência teatral se expandiu em tempos recentes. Trata-se de um debate longo: aqui há espaço apenas para um esboço delicado.
Num breve resumo, se pode considerar que o homem contemporâneo começou a surgir em cena a partir do século XVIII, apesar de manifestações anteriores, que espocaram desde o século XVI. A aparição – vale destacar – surgiu corporificada nas cenas graças a seres malditos e mal vistos, vagantes, com frequência indesejados sociais.
Num primeiro momento, existiu uma figura teatral híbrida – em delicadas cenas em salões requintados, surgiam homens e mulheres de extração lendária, heroica, que moviam a engrenagem do mundo. Nas feiras, pavilhões, barracões e praças, ladinos de corpo e alma demonstravam as artimanhas mais mirabolantes concebidas para sobreviver. Nos dois casos, havia uma ação contínua, conduzida por heróis, confrontados por vilões, protegidos por confidentes e protetores.
As duas linhas atravessaram o século seguinte nem sempre em boas relações, em especial por causa da expansão das maneiras irrequietas e irreverentes dos tipos mais faceiros. O baixo teatro incomodava as letras ditadas pelos espíritos, desejosas de mais elevação social e moral. Neste mesmo século, surgiu o drama do homem comum, pequeno burguês, afundado nas exigências da sociedade, dilacerado por sua vida pequena. E surgiu um batalhão humano novo: os curiosos dispostos a pagar para ver o que se inventava em cena.
A ideia de que a arte do palco cortejava o bolso do mais venal dos burgueses e do mais pacato dos funcionários públicos levantou, para os artistas, a suspeita de que a sua arte simbolizava a morte do poder de criação. A arte se vendia. Em consequência, as vanguardas iconoclastas logo se espalharam, com o desejo expresso de oferecer às plateias cadeiras de prego ou nenhuma cadeira… A ideia de herói começava a ser roída por dentro.Novas ideias a respeito do humano começaram a ser expostas.
Deste trajeto sumário objetivo algo se pode concluir – a voz do palco, ao fim e ao cabo, é apenas a voz do artista, nenhuma outra. O artista determina a fala, o sotaque e o dialeto que a cena há de ter. O seu olhar radiografa o mundo e a sua voz pretende dar conta da radiografia.
Por isto, independente dos textos, a essência da cena é – ou pode ser – a teatralidade. Ela existe quando o palco acontece em função exclusivamente do seu desejo de ser a voz da cena. Nestes momentos, ele funciona em função de si. Ele quer saber apenas da força da sua existência. Dentro das salas de espetáculo, esta deliberação pode gerar instantes que alcançam um grau extremo de beleza; é normal a plateia embarcar no fluxo criativo e chegar mesmo a aplaudir o ator em cena aberta. A teatralidade arrebatou a todos – por isto Sinisterra se refere a ela como uma forma aguda de percepção do outro.
Com frequência encontramos na história do teatro ou no dia a dia dos palcos textos teatrais escritos por dramaturgos desprovidos de… teatralidade! São textos verborrágicos, pesados, que, no dizer da gente de teatro, “não cabem na boca”. Para falar tais textos, o ator tropeça nas letras, cai das palavras – os textos desprovidos de teatralidade podem, contudo, ganhar outro ímpeto, se uma “boca de teatro” decide devorá-los, ocasião em que são submetidos à teatralidade da cena.
Inúmeros debates a respeito de dramaturgia deixam transparecer a situação: é bem curioso situar a ciranda. Historicamente, na era dos primeiros atores, tornou-se comum a constatação, a favor ou contra, de que dramaturgos incorporaram aos textos publicados “contribuições” dos atores. Para alguns comentaristas, o fato denunciava a fraqueza do autor, sem habilidade para dar teatralidade ao original, falha corrigida pelos donos do palco.
Neste tempo, os autores “arranjavam” os textos para os astros da cena, eram profissionais a serviço das estrelas do momento. Para muitos puristas, o procedimento soa como heresia contra a dramaturgia, rebaixamento da arte.
No entanto, o teatro moderno, devotado a endeusar o poeta dramaturgo, também significava uma “leitura” da cena frente ao texto e também se movia a partir da “visão” do diretor da “ideia” da peça. Assim, da mesma forma como o primeiro ator usava o texto a seu favor, mais tarde os diretores-criadores-encenadores imprimiam sua visão poética aos originais montados.
Eles se consideravam superiores, no entanto, pois não agiam em prol do gosto do público (ou da bilheteria), mas antes em sintonia com a arte, afinal a deusa suprema para o novo público (portanto, cediam ao gosto do seu público!). Vários encenadores tomaram textos “antigos”, dos velhos dramaturgos, e fizeram com eles espetáculos modernos…
Deduz-se em parte destes rápidos comentários um fato objetivo – a razão de ser do texto teatral é a cena. Ou, dito de outra forma, a cena de teatro tem sempre o dom de fazer o seu texto. Logo, parece bem natural montar Moby Dick ou Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, ou contos de Borges, ou reler As três irmãs, de Tchekhov, ou A Senhorita Júlia, de Strindberg, ou textos de Kafka, ou A lenda de Gilgamesh, como fez Sinisterra.
A teatralidade do nosso tempo precisa dimensionar na cena as vozes que circulam no nosso espaço social. Tal significa materializar uma multiplicidade, um mundo que ferve, mas acontece no vazio, afinal vivemos a morte do herói. Os textos narrativos – quer dizer a narraturgia –, contemplados pela estética de Sinisterra e de um elenco alentado de realizadores do palco, possuem o mérito de apontar para o oco deste nosso mundo, no qual somos sem ser, existimos como ilusão de existência.
Para falar da encruzilhada tensa que está aí, nada melhor, na cena teatral brasileira contemporânea, do que o trabalho de Rita Clemente. Atriz, diretora e dramaturga mineira dotada de impressionante capacidade criativa, Rita Clemente é uma das grandes lideranças teatrais mineiras atuais. Além da extensa lista de criações cênicas e de trabalhos destacados no cinema e na televisão, ela consegue conciliar a forte personalidade empreendedora com um sofisticado espírito de pesquisa.
As qualidades regem o espetáculo Amanda, de Jô Bilac, estreia recente no Teatro III do CCBB. É imperdível. Trata-se de uma experiência teatral rara, marcada por extremo requinte, há sete anos em cartaz, com temporadas ao vivo e online, desenvolvida em interação artística com Diogo Liberano.
Além do impacto sensorial e estético oferecido pela atuação de Rita Clemente, a cena se destaca ao se auto definir como solo – em lugar de monólogo. Isto quer dizer que, ao lado dos textos de expressão de si, dominantes nos monólogos, a cena se faz como narração e como registro de interlocutores.
Há em cena uma multiplicidade de vozes, ao mesmo tempo em que o desenho da cena envereda por rupturas com a ordem cotidiana e rotineira, apontando para um lugar absoluto de opressão social feminina, formas sociais de apagamento feminino e de auto apagamento. Em uma palavra, é inquietante.
Absolutamente obrigatório para quem se vê hoje como voz no espaço e no tempo, Amanda é um espetáculo que acompanha em cena uma peripécia vazia, digamos – em lugar de transformação, há uma liquidação. Sob o foco está a trajetória de uma mulher de meia-idade surpreendida com a perda progressiva dos cinco sentidos. Apesar de contemplar a ruína paulatina da própria vida, ela segue, insiste em ir adiante.
É para ver e pensar a respeito do universo social apaziguado que tantos buscam ou que parece ser, para outros, o horizonte cotidiano da vida hoje. A razão é simples: o trabalho de Rita Clemente tem a qualidade de elevar o palco à condição de intenso diálogo artístico com os contemporâneos. Em cena, a voz da atriz não finge ser outra coisa a não ser o que ela é – a presença intensa do teatro que se inspira na vida que temos, perfeita ilusão de ser.
AMANDA
Ficha Técnica
Direção Geral, Concepção e Atuação: Rita Clemente
Texto: Jô Bilac
Interlocução Artística: Diogo Liberano
Trilha Sonora Original: Márcio Monteiro
Iluminação: Régelles Queiroz (Gato de Luz Iluminação Cênica)
Fotografia: Priscila Natany e Bob Sousa
Assistência de Produção (BH): Analu Diniz
Produção: Clementtina Cultura
Designer gráfico: Gabriel Bittencourt
Assessoria de Comunicação: LAGE ASSESSORIA/Fernanda Lacombe
Serviço:
“Amanda”
Data: de 10 de agosto a 04 de setembro (de quarta a domingo)
Local: Teatro III do CCBB RJ (R. Primeiro de Março, nº 66, 2º andar, Centro, Rio de Janeiro)
Horário: Quarta a Sábado, às 19h30; Domingo, às 18h.
Capacidade: 70 pessoas
Duração: 57min
Classificação: 14 anos
Ingressos: R$ 30,00 (inteira)/ R$ 15,00 (meia), emitidos na bilheteria do CCBB ou pelo site eventim.com.br
Meia-entrada estudantes e professores, crianças com até 12 anos, maiores de 60 anos, pessoas com deficiência e seus acompanhantes e casos previstos em Lei, e clientes Banco do Brasil.
Às quartas-feiras, após a sessão, será promovida uma roda de conversa com o elenco aberto ao público.