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Os inocentes do Rio de Janeiro

Existe uma história secreta do Rio de Janeiro. Sim, da cidade maravilhosa, pode acreditar. Você consegue, sob uma cidadania carioca declarada, disfarçar, se iludir e supor conhecer a cidade. A maioria faz exatamente isto. Vale, porém, parar de mentir e encarar a verdade. Você diz que conhece a sua cidade: vamos lá, é engano seu. Você não conhece nada de Rio. Ou conhece quase nada. O Rio escapa dos seus olhos, escorrega do seu cérebro e dos seus dedos, e vai rápido para bem longe de você.

E sabe o porquê? A razão é bem simples! O Rio, partindo do Centro, é Zona Norte e Zona Oeste. O apêndice é a Zona Sul, um nada. Você, estirado ao sol, olhos no horizonte, não vê nada daquilo que verdadeiramente existe, vive condenado a ser um pobre inocente do Leblon…

Pois imagine – o Leblon, outrora a pátria de um famoso quilombo! E as aldeias de pescadores litorâneas, para onde foram? E as favelas? Poucas conseguiram fincar as estacas a fundo, para não saírem de jeito nenhum, como o Vidigal, em parte favorecido pelas encostas.

Veja lá – na maior parte da história da muy leal cidade, a Zona Sul sequer existia. Foi areal ermo, descampado vadio, borda de fazenda. Depois de um tempo, foi promovida a capital do pecado – mas, neste caso, o título contemplou bem mais a doce Copacabana.

No passado rural do vasto sertão, muitos pontos suburbanos se afirmaram como pequenos amontoados de casas e eram bastante potentes: importavam muito mais para a vida da cidade do que este dedal chamado de zonasul.  Alguns exemplos encerram mesmo uma história urbana dolorosa, deprimente.

O Jardim Botânico e a Gávea, nem faz um século, eram bairros fabris, abrigos de agitadas vilas operárias, campo de proliferação de precárias favelas. Até hoje, ainda não consegui fechar a conta do número de favelas que existiram na região, todas removidas para distantes recantos insalubres das Zonas Norte e Oeste.

Se o olhar for honesto e frio, parece espantosa a mudança de toda a vasta área, a sua gentrificação vertiginosa. Em algum ponto do Jardim Botânico, ligado ao universo das fábricas, existiu um teatro – não, não era o Fênix, hoje demolido, nem um antepassado do Tablado. A sua história não foi escrita, uma história associada às greves e lutas dos trabalhadores das fábricas de tecido, muitos deles mulheres e crianças menores de 10 anos.

Circo Spinelli, acervo Erminia Silva.

Aliás, vários teatros, pavilhões, circos-teatro e circos existiram pela cidade e morreram anônimos. Quando percorremos os jornais do século XIX ou mesmo os Anuários do Retiro dos Artistas e as Revistas da SBAT, percebemos o quanto ignoramos de nossa história humana.

Sim, porque estas construções eram lugares palpitantes de humanidade, por onde a vida fervilhava feliz, com a energia vibrante dos artistas da época. Belos lugares. Passaram, como se fossem descartáveis, talvez porque nós nos pensemos como absolutamente descartáveis. Então, não cuidamos de nossas relíquias, de nossas memórias, não cuidamos de nós. Nem dos nossos.

Benjamin e sua mãe.

Um capítulo fundamental da história do Rio foi escrito por um palhaço – Benjamin de Oliveira (1870-1954). Nascido alforriado, filho de uma escrava numa fazendo de Minas, ele fugiu com o Circo Sotero aos doze anos e ganhou o mundo. Conseguiu, após muita luta e muito trabalho, ser reconhecido como palhaço, se tornou o primeiro palhaço negro do país a ser celebrado como gênio pela sociedade e provocou uma notável revolução na arte da palhaçaria.

Para sobreviver, desenvolveu múltiplas habilidades, aprendeu acrobacia e trapézio, tocava, cantava e representava em circo-teatro. Chegou ao Rio de Janeiro no final do século XIX, com o circo do Comendador Caçamba, e se tornou figura popular na cidade.

O circo se estabelecera em Cascadura e consta que Benjamin impressionou tanto com a sua arte o presidente da República, Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro, a tal ponto que o chefe do governo promoveu a mudança da lona para a Praça da República. Ao lado de Benjamin, estreou no circo, aos cinco anos, numa montagem de O Guarani, o ator Oscarito.

A vida de Benjamin de Oliveira foi objeto de excelente pesquisa por parte da historiadora e professora Ermínia Silva, autora de um livro de leitura obrigatória para os amantes de teatro, Benjamim de Oliveira e a Teatralidade Circense no Brasil (Editora WMF Martins Fontes, 2022). Gente, o livro é sensacional. No próximo sábado, dia 8 de outubro, o Itaú Cultural vai disponibilizar a versão digital da obra, no seu site (www.itaucultural.org.br) e nas principais livrarias digitais, parceria entre o Itaú Cultural e a Editora Martins Fontes.

A iniciativa integra um projeto amplo de difusão da arte do artista múltiplo de tanta importância histórica – de novembro passado até fevereiro de 2022, o prédio da instituição, na Avenida Paulista, abrigou a Ocupação Benjamim de Oliveira. Um recorte da mostra estará disponível para os cariocas também a partir do próximo sábado, 8 de outubro, no Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, dentro da exposição O Circo Chegou! – sim, lá na Zona Oeste.

Mas a celebração do artista não vai ficar por aí, vai se desdobrar adiante. A notícia feliz surge de um espetáculo teatral, Benjamin, o Palhaço Negro, estreia na próxima sexta, dia 7 de outubro, no Teatro Cesgranrio. A partir de um roteiro de Rebeca Bittencourt, a equipe envolvida criou um musical sob o regime de escrita colaborativa, com a inclusão de canções originais de James Lau. A direção geral da montagem tem a assinatura de Tauã Delmiro, também integrante do elenco.

Foto de divulgação.

A proposta se destaca no cenário da temporada não apenas por seu tema – trata-se de um projeto engajado na luta a favor da visibilidade do artista preto. Em cena, estão reunidos seis jovens artistas pretos dedicados a revelar vários personagens decisivos da história de Benjamin. Logicamente, a narrativa dialoga com as vivências do elenco. A identificação resultante permite pôr em destaque os temas urgentes do racismo e do apagamento de narrativas pretas na arte. De quebra, a proposta atrai a atenção da plateia de teatro carioca para um palco ainda fora do eixo de celebração do mercado, o Teatro Cesgranrio, de extremo conforto e excelentes recursos.

A olhada para uma nova geografia teatral carioca – ou melhor, fluminense – também aparece na montagem de A Jornada de um herói, da Cia de Atores Fábrica, de Nova Iguaçu. Espetáculo premiado no FESTU e com razoável itinerância carioca, ele cumprirá mais algumas apresentações no Teatro Chica Xavier – inaugurado em abril, ele é o primeiro teatro negro da cidade, localizado no Centro, no Centro Cultural Terreiro Contemporâneo.

Foto de divulgação. Mateus Amorim.

A peça, com texto e atuação de Mateus Amorim e direção de Alexandre O. Gomes, lida diretamente com a saga de José, demitido de uma fábrica de carvão por questionar a diminuição do seu tempo de almoço, de dez para cinco minutos.  A dureza da vida de um homem negro, pobre, semianalfabeto, desempregado e sem estruturas sociais eficientes de assistência, funciona para materializar uma epopeia urbana – uma versão dolorosa de um heroísmo diverso daqueles cantados no mundo dos clássicos.

O cálculo principal do coletivo reside exatamente neste ponto – jogar luz sobre as condições de vida deploráveis disponíveis para a grande maioria da sociedade brasileira. Exatamente por causa deste estado de vulnerabilidade, muitas destas populações puderam ser expulsas da cidade-maravilha.

Assim, em boa parte, o projeto traz oxigênio e vitalidade para a cidade. Convidar a plateia de teatro e os fazedores de teatro para outros espaços e para ouvir outras falas e tramas significa abrir o espaço urbano e cultural, estimular o rompimento com velhos caminhos de circulação cultural, que agenciam as mesmas expressões, as mesmas caras e corpos.

Para muita gente boa da Zona Sul, ir ao Centro é uma programação aceitável, mas ir aos subúrbios, à Baixada ou à Zona Norte soa como espécie de blasfêmia física. No entanto, a elite esclarecida precisa ampliar os seus horizontes urbanos e de civilidade. Sem falar que existem situações de extrema importância cultural, justificativas potentes para o cultivo de novos hábitos.

No bairro de nascimento de Millôr Fernandes, por exemplo, o Méier, há um teatro de excelência, o Imperator, que corre o risco de se perpetuar como casa de reprises ou repetições e nunca de estreias ou lançamentos. O motivo do enquadramento injusto é bem pontual – o velho preconceito esnobe da zonasul.

Exatamente lá, haverá uma nova apresentação, no dia 9 de outubro, do espetáculo A História é uma istória, de Millôr Fernandes. A montagem, dirigida por Ernesto Piccolo, esteve em cartaz no Sesc Tijuca e no Theatro Municipal. O texto de humor ácido apresenta uma linha do tempo da pré-história aos dias atuais, para questionar com inteligência aguda os heróis e os feitos celebrados pelas convenções.

Foto de divulgação, Bruno Ahmed.

Parece bem natural, portanto, que o próprio teatro vire a arma da irreverência contra si, funcione também para se questionar, fazer perguntas corrosivas a respeito de suas cristalizações históricas. Uma série de perguntas precisa sacudir a placidez de percurso das temporadas. Se o destino das camadas populares implica em mergulhar em trajetórias tão longas como a peregrinação de Benjamin de Oliveira para chegar ao reconhecimento de sua genialidade, não há nada demais no caminho inverso.

Quer dizer – os artistas célebres, aclamados, libertadores e progressistas, precisam expor a sua potência criativa para toda a sociedade, sacudindo a geografia acomodada, indo lá aonde o povo está. O Rio de Janeiro precisa de um número muito maior de teatros e os seus artistas deveriam mergulhar num mambembe urbano. Isto, é bem verdade, se queremos honrar as histórias apagadas do nosso chão urbano, inclusive as histórias vergonhosas de explosão e remoção de comunidades pobres para insalubres bairros remotos.

Assim, com uma generosa distribuição democrática de arte, não apagaremos o passado nem editaremos a História – mas ajudaremos a florescer grandes talentos adormecidos, obrigados a vegetar sem acesso às bençãos da cultura. Ou obrigados a peregrinar como miseráveis membros da espécie para adquirir algum saber. Honraremos, então, sem dúvida, a memória e o gênio de Benjamin de Oliveira.

Para ouvir a voz de Benjamin:

Benjamin, O Palhaço Negro

SERVIÇO:

Temporada: 07 a 16 de outubro

Dias: Sex e Sáb às 19h30 e Dom às 18h00

Classificação: 10 anos

Duração: 1h40

Teatro Cesgranrio

Rua Santa Alexandrina, 1011, Rio Comprido – Rio de Janeiro

Ingressos: Entre R$ 15 e R$ 60

Vendas Sympla.com https://bileto.sympla.com.br/event/76020 ou na bilheteria do teatro

Instagram oficial: https://www.instagram.com/musicalbenjamin/

FICHA TÉCNICA 

Texto Base: Rebeca Bittencourt

Direção geral: Tauã Delmiro

Elenco: Elis Loureiro, Isaac Belfort, Marcelo Vittória, Peterson Ferreira e Sara Chaves

Stand in: Igor Barros

Idealização e Direção de produção: Isaac Belfort

Direção musical: Nakiska Muniz e Peterson Ferreira

Direção de Movimento de coreografias: Marcelo Vittória

Design de Som: Breno Lobo

Produção musical e Trilha sonora: James Lau

Músicas: Nakiska Muniz, Rebeca Bittencourt, Tauã Delmiro e Peterson Ferreira.

Assistente e direção residente: Manu Hashimoto

Design de Luz: JP Meirelles

Figurinista e Costureiro: Isaac Neves

Concepção cenário: Alex Carvalho

Visagismo: Caio Godard

Fotos: Paulo Aragon

Cenotécnico: Adriano Farias

Assessoria de Imprensa: MercadoCom (Ribamar Filho e Leonardo Minardi)

Mídia e produção: Samara Fellipe

Assistente de mídia: Layla Santos

Produção Executiva e Design: Gabriel Barbosa

Produtora associada: Produtora Alada

Produção Geral: Belfort Produções

A jornada de um herói

SERVIÇO:

Local: Teatro Chica Xavier – R. Carlos de Carvalho, 53 – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20230-18 Centro

Temporada SETEMBRO/OUTUBRO:

23/09 Sexta 20h

24/09 Sábado 20h

25/09 Domingo 19h

30/09 sexta 20h

01/10 Sábado 20h

02/10 Domingo 19h

07/10 Sexta 20h

08/10 Sábado 20h

09/10 Domingo 19h

Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00

https://www.sympla.com.br/evento/a-jornada-de-um-heroi/1716259

FICHA TÉCNICA 

Direção: Alexandre O. Gomes

Direção de Movimento: Alexandre O. Gomes

Atuação: Mateus Amorim

Texto: Mateus Amorim

Figurino: Alessandra Fernandes

Cenário: Alessandra Fernandes

Iluminação: Alexandre O. Gomes

Operação de Luz: Amanda Sibanto

Contrarregra: Karen Menezes

Desenhos: Jean Carvalho

Preparação Vocal: Jane Celeste

Preparação Musical: Adilson Muniz

Trilha Sonora Original: Mateus Amorim

Design Gráfico: Samuel Santiago

Assessoria de Imprensa: Monteiro Assessoria – Laís Monteiro

Produção: WDO Produções

Direção de Produção: Wellington de Oliveira

Produtora Executiva: Alessandra Fernandes

Realização: FESTU- Festival de teatro Universitário e Escola Fábrica dos Atores.

Foto de divulgação. Paula Barros.

A História é uma istória

SERVIÇO:

Única apresentação: 9 de outubro de 2022.

Horário: domingo, às 19h.

Local: Imperator – Centro Cultural João Nogueira

Endereço: R. Dias da Cruz, 170 – Méier, Rio de Janeiro

Duração: 70 minutos

Informações: (21) 99778-2506

Valores: R$40 (meia-entrada) e R$80 (inteira)
Link de vendas: https://www.sympla.com.br/evento/a-historia-e-uma-istoria-no-imperator/1720223 

642 lugares. 12 anos.

Assessoria de imprensa: Mario Camelo

FICHA TÉCNICA:

Texto: Millôr Fernandes

Direção: Ernesto Piccolo

Direção de Produção: Bruno Ahmed e Paula Barros

Elenco: Bruno Ahmed, Bruno Suzano e Paula Barros

Assistente de Direção: Kattia Hein

Assistência de Produção: Breno Aveiro, Manu Hashimoto e Raphael Sodré

Iluminador: Gabriel Prieto

Diretor Musical e Sonoplastia: Cyrano Sales

Figurinista: Marcela Treiger 

Cenógrafo: Diogo Venturieri
Direção de movimento: Antônio Negreiros

Design: Igor Ribeiro

Social Media: Aline Monteiro

Fotógrafo: Victor Senra e Delmiro Junior (fotos de cena)

Produção executiva: Ricardo Fernandes

Idealização: Bruno Ahmed e Paula Barros

Realização: B&A Empreendimentos e Cultura