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Teatro em forma ou em ruína?

De repente, o impensável. A roda do mundo girou e nos vemos diante de uma situação universal inesperada, imprevista, surpreendente. Estávamos numa velocidade louca e – pá – um freio inusitado deteve o bólido da vida, sacudiu tudo, carroceria, esqueletos, almas, desalmas, sensibilidades e indiferenças.

Já vou desagradar os pessimistas: apesar do risco imediato para muitos de morrer, afinal um desfecho previsto desde que nascemos, a situação é ótima para libertar o pensamento. E para revisar profundamente nosso pacto social. Portanto, pensemos.

Para quem faz teatro – bom, neste exato momento, esta tribo está sem fazer teatro, pois todas as casas de espetáculo do Rio estão fechadas – a crise caiu como uma bomba  atômica. Devastadora. Falta tudo: a garra de ensaiar, o prazer de estar em cena, a energia esfuziante gerada pelo ato de confraternizar com a plateia. E falta bem mais – falta o dinheiro para pagar as dívidas do projeto teatral, o almoço e o jantar de cada dia e as contas no fim do mês.

Para este povo, é hora de mergulhar num ato de contrição repleto de perguntas. De saída, vale perguntar se o propósito da própria vida é mesmo fazer teatro, esta arte tão frágil, agora o sabemos profundamente. Sinceramente, o teatro integra a sua maneira de ser? Você não pode passar sem ele? É uma virtude, ou um vício, coisa arraigada impossível de curar?

E fazer teatro para quê? Agora a sociedade precisa que você pare, que você jogue a sua sabedoria e o seu métier para o espaço, e ainda assim, paralisado, no fundo do seu coração você acredita que a sua contribuição para a vida da sociedade continua a ser vital, vai fazer falta? Você acredita que a vida, sem o que você faz, será uma vida menor?

E que seria bom, ainda que no meio do caos emocional que ameaça se instalar, e especialmente por isto, seria bom que a sua arte estivesse por ali, por perto, pois seria um meio sonante para  afirmar o valor da vida? Você faria até teatro virtual, por computador, recital de poesia online, só para se manter como equilibrista sensível do corpo e do verbo?

No fundo, você acredita que muito da beleza da aventura humana aconteceu, das cavernas até hoje, por que sempre houve uma gente como você… Uma gente desprendida da mecânica da sobrevivência cotidiana, que passou os dias dedicada à crença de que os seres, como os diamantes, podem ser polidos, a partir de um artesanato miúdo de sentimentos, palavras, intenções?

Ah, o questionário pode ir ao infinito. Mas dá para parar por esta altura. Se a sua resposta foi sim, tenho muito interesse em conversar com você – uma conversa assim-assim, assim enviesada, de quarentena, posto que eu sou daquele grupo de risco vip e não planejo morrer por ora, espero ficar ainda por aqui por algum bom tempo. Portanto, nada de conversa ao vivo, não saio da quarentena por nada, a não ser pela vida.

O primeiro tópico da conversa está circulando veloz por todas as rodas, trata da fantástica ocasião para repensar os quadros de união social brasileiros – e cariocas. De repente, podemos “pensar coletivo” de uma forma inédita, quem sabe romper o cinismo social desta cidade na qual o teatro acontece apenas como fato da Zona Sul.

A imprensa e as mídias sociais têm destacado este valor. A hora impõe pensar no outro, pensar no coletivo. Para o teatro, representa a chance de uma reversão de seu horizonte social, a prova de ouro de que o Imperator não é longe, como muita gente boa, na classe, ousa proclamar. E constatar que, depois do belo teatro do Méier, ainda tem cidade e campo para um teatro que, lamentavelmente, por lá não acontece.

Será que a agonia do teatro carioca – nem vou cogitar falar do brasileiro – não passa por aí, por esta espécie de distância, indiferença social? Aqueles que agora julgamos indispensável proteger – os idosos e as classes sociais mais desfavorecidas – representam hoje exatamente o público fiel e o não-público dos teatros. Depois da crise, será fundamental continuar pensando neles. Importa declarar enfim que eles são prioridade teatral…

Para tanto, talvez seja um ponto de partida importante, agora, reconhecer e aclamar lideranças. Muita gente, em especial os mais jovens e os alternativos, torcem o nariz para a APTR. Mas, se não dispõem nem de carisma, nem de energia, nem de vontade para unir coletivos ao seu redor, talvez seja politicamente inteligente reconhecer a obra construída pela APTR e pensar no poder estratégico de um líder experiente como Eduardo Barata. Isto é urgente.

A hora é de instaurar diálogos, ressaltar convergências, situar os pontos de reivindicação comuns, construir a união. Por maiores que possam ser as diferenças entre segmentos e partes, está sob o foco uma única classe teatral. Se existe alguma beleza na política, é a possibilidade de que ela possa ser a arte do entendimento humano.

O momento é político e é de uma humanidade absoluta, pois envolve não só a morte de milhares, como uma crise social violenta, capaz de gerar mais miséria do que a espantosa miserabilidade de que já sofremos. Qualquer um pode vislumbrar o cenário de dificuldades que nos envolverá num curto espaço de tempo.

Portanto, não importam os partidos ou facções, como demonstrou brilhantemente Luiz Fernando Lobo no encontro recente da APTR. Constituir um gabinete de crise, buscar o diálogo com a Secretária Regina Duarte e com as esferas de poder cabíveis surgem como atitudes prioritárias.

A citada reunião da APTR liderada por Eduardo Barata, realizada neste domingo, 15 de Março, presencialmente, no Teatro Poeira, com um grupo de integrantes da classe, e ao vivo, online, com um coletivo extenso e muito representativo, alcançou um primeiro resultado  de extrema importância. O documento elaborado, com a sugestão de 10 medidas para enfrentar o impacto do coronavírus na cultura, segue transcrito abaixo.

A partir deste documento, muitos caminhos podem ser pensados. E construídos. Uma questão estratégica urgente deve ser focalizada: a evidente precariedade do teatro enquanto atividade econômica, sem qualquer autonomia, posto que desprovido de capital. O teatro se torna refém fácil de qualquer instabilidade social, não tem como se bastar. Mal comparando, o perfil lembra as crianças e os adolescentes, à mercê da mesada dos pais.

Empréstimos emergenciais, alívio de cargas tributárias e de obrigações financeiras, renegociação de prazos e procedimentos, revisão de pagamentos, moratória para custos… o rol de necessidades, imenso, aponta para o mesmo alvo, a falta de capital. Com certeza algumas iniciativas históricas importantes tentaram lidar com esta fraqueza; falharam ou funcionaram noutro sentido, não podem ser copiadas.

O Brasil já contou com caixas de beneficência para os artistas, uma delas pensada e instituída por Artur Azevedo, já acumulou as experiências, por vezes controvertidas, das loterias, da SBAT e do Retiro dos Artistas. Elas estão à altura dos olhos de todos. Talvez seja o momento de pensar uma iniciativa nova, de impacto, para sair do círculo vicioso.

A constituição de uma cooperativa, quem sabe um banco cooperativado do teatro, capaz de gerir investimentos da categoria e de garantir empréstimos a baixo custo para o palco, poderia surgir como uma ferramenta decisiva para a arte. Algo na linha do Black Money, de certa forma, seria o Stage Money.

O ponto de virada teria que ser a predominância de valores tais como transparência, honestidade, amor ao palco e habilidade gerencial para fazer o dinheiro se sentir à vontade. Cooperativismo, capacidade de associação e de colaboração. Um mecanismo para transformar trabalho em dinheiro. Dinheiro cênico.

Esta seria aqui uma revolução formidável, uma carta de alforria sem par na nossa história. De súbito, o teatro demonstraria como a sensibilidade pode ser o instrumento mais eficiente de todos para a liberdade humana – pois o teatro se revelaria uma arte capaz de fabricar dinheiro. Aconteceria em si e por si, liberto e libertador. Por quê não? Isto significaria algo para o pensamento humano?

A rigor, o teatro tem sido uma catapulta social interessante para o pensamento. O filósofo Ortega y Gasset, no seu texto exemplar A ideia do teatro, procurou demonstrar isto. Segundo o seu ponto de vista, nos momentos de crise humana mais profunda e dilacerante, o palco esteve presente em formas puras para salvar a humanidade, foi parceiro do nascimento de novas formas do pensamento.

Para o estudioso, a Grécia, a Renascença e o Romantismo Alemão ilustram com brio esta sua tese. Ácido, ele frisa que, fora das idades em que o teatro em forma se fez necessário para socorrer o colapso humano, nos demais tempos históricos a seu ver o teatro aconteceu como ruína.

Quem sabe conseguimos, do interior mais sombrio destas ruínas cênicas em que vivemos aqui, forjar a bela forma de uma arte teatral de inquestionável grandeza humana, a bela forma do futuro, capaz de partejar o nascimento de um pensamento novo a respeito do humano?

É mais uma pergunta. Só mais uma. Afinal, acima e ao redor da crise do coronavírus, há uma monumental crise brasileira, um abismo que vem nos rondando desde o século XX, no mínimo. Agora, temos mais uma instabilidade, universal, a promessa de uma crise geral ao redor da nossa crise.

De toda a forma, é preciso enfrentar o imenso revés com dignidade. E torcer para que esta brutal vivência de tempos de crise nos faça pensar, ousar pensar, pensar muito. E, apesar de toda a dor, que nos unamos num único desejo: que a crise não nos faça perder o bálsamo dos sonhos.

SERVIÇO:

Respeitando as orientações do poder público – não aglomeração; distanciamento de 1,5m; não cumprimento tradicional; mãos lavadas e higienizadas por álcool gel – a APTR realizou reunião na noite de 15 de março, no Teatro Poeira, com a presença física de 15 profissionais da cultura, entre eles produtores, gestores e artistas. O encontro foi transmitido on-line com a participação de mais de 300 profissionais do setor.

Como resultado, foi elaborado um documento sugerindo 10 medidas, alternativas e emergenciais, para o momento atual e o futuro próximo do segmento cultural.

São elas:

1. Formação de um Gabinete de Crise da Cultura, com produtores, gestores, artistas e profissionais do setor.

2. Desenvolvimento de uma campanha de sensibilização, informando que a cultura está fazendo a sua parte no combate ao Coronavírus.

3. Suspensão da cobrança ou maior prazo para o pagamento de contas e taxas (como a de fornecimento de água). Bem como negociação com concessionárias de luz – intermediada pelas autoridades públicas – através de descontos, diminuição ou parcelamento das contas para os espaços culturais.

4. Proposta de desoneração dos impostos para os espaços culturais por um período determinado, até que as atividades possam ser retomadas em sua efetividade. Adiamento, parcelamentos e maiores prazos para o pagamento de impostos das empresas de produção cultural.

5. Proposta de uma Linha de Crédito a juros Zero com os Bancos Federais: BB, CEF e BNDES para atender demandas e necessidades urgentes, diminuindo momentaneamente os prejuízos causados com os cancelamentos.

6. Proposição de Emendas Parlamentares para o setor cultural e reforço do diálogo com as Comissões de Cultura (Municipal, Estadual e Federal).

7. Diálogo com as Leis de Incentivo à Cultura sobre o prazo de captação, execução, prestação de contas e comprovação de contrapartidas dos projetos incentivados que tiveram suas temporadas interrompidas.

8. Proposição, junto ao Governo do Estado do Rio, para o lançamento de um edital emergencial de fomento, através do Fundo Estadual de Cultura. A mesma medida poderá ser aplicada a outros estados e municípios que tenham esse mecanismo dentro de seus sistemas de cultura.

9. Negociação de uma campanha de incentivo à ida ao teatro, assim como, organização de promoção de ingressos a preços populares, para o retorno das temporadas.

10. Descontingenciamento dos atuais mais de 300 milhões do FNC. Assegurar os 3% das loterias (MP das Loteria), para o fomento imediato da cadeia produtiva do setor cultural. Transformação da natureza do Fundo em contábil e financeira. Garantir os recursos dos Fundos de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual, uma vez que, a PEC 187/2019 extingue todos os fundos.

Rio de Janeiro, 16 de março de 2020.