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A arte de aprender com o tempo

Gato solto na cesta de novelos de lã – quer dizer, uma baita confusão. Para muita gente, a imagem descreve bem a sua relação com a passagem do tempo. Para este povo, aceitar a passagem do tempo, viver o tempo, é um desafio inaceitável.

Em consequência, vivem dentro de um paradoxo, dominados pelo  desejo de parar o tempo, ser jovem para sempre. São mais ousados do que Dorian Gray, digamos, pois pretendem congelar a própria expressão (ou a vida?) num momento que definitivamente se foi.

E o problema é que viver significa, exatamente, ver passar o tempo. Há um prazer nesta operação simples que os que sofrem de juvenitite aguda desconhecem. Diante dos nossos olhos, desfila a percepção das possibilidades da vida, mesmo que o sentido último de tudo, aquela explicação decisiva, permaneça velada.

Não sabemos – e não saberemos nunca –  os porquês finais da existência, mas podemos perceber, ainda que aos poucos, algumas forças básicas capazes de governar a vida, dar sentido aos dias. Existir se destina a existir, pois, a que será, não sabemos.

E esta parece ser a graça suprema oferecida pela contemplação do tempo: perceber que tudo passa, há o que é eterno e o que é fugaz, restamos prisioneiros de nossa fugacidade, na distância do eterno. Por isto tantos pensadores atribuíram ao tempo o dom de trazer a sabedoria.

No teatro, a discussão a respeito do tempo é central. Mestre na arte do sentido – emoção imediata sofrida – o palco acontece diretamente no encontro com o tempo. Sim, uma ação acontece e ela deve imprimir as suas forças estruturais na sensibilidade do espectador. Contemplar a ação significa percorrer um tempo em comunhão com a cena. E, desta relação, obter um saber sensível, uma vivência.

Desta equação nasceu uma longa discussão histórica, ao que tudo indica iniciada por Aristóteles, na Arte Poética. Para ter efeitos mais intensos, segundo o filósofo, a ação deveria estar contida numa revolução solar, portanto a peça deveria ter a célebre unidade de tempo.

A rigor, a observação não foi feita tentando impor uma receita, mas, antes, sugerir uma possibilidade de construção, na qual o impacto da obra se tornaria maior, pois iria gerar mais identificação para quem a contemplasse. No texto, aparecem sugeridas três unidades, a de tempo, a de lugar e a de ação.   

O verbo sugerir é uma escolha intencional. Os franceses, muito tempo depois, leram o texto aristotélico de forma dogmática e partiram para defender a imposição da obediência às três unidades na dramaturgia. A leitura do original (claro, não precisa ser em grego!), derruba esta afirmação. 

Na Poética, a única unidade considerada verdadeiramente estruturante é a de ação. A de lugar nascera da constatação da necessidade de fazer conviver o coro e os grandes personagens. E a de tempo surgiu apenas para aguçar a atenção da plateia, sugerir imediatidade, tempo compartilhado, impressão maior de intimidade com os fatos tratados.

A partir dela, a ação dramática poderia ser iniciada no momento imediatamente anterior ao desfecho da trama. Portanto, mais adensamento da espiral dramática, mais adrenalina. Nada de longos percursos temporais para precipitar os heróis no despenhadeiro.

 Tantos séculos depois, adeus franceses, estes artifícios não precisam mais ser acionados, tanto a arte do ator/performer pode ser intensa e promover uma revolução nas almas, como a intimidade da plateia com a arte se expandiu, naturalizou as convenções.

Mas há muito mais para pensar nesta gaveta: afinal, vários teatros aconteceram ao longo da História sem as célebres unidades, sobretudo sem unidade de tempo. Basta pensar no teatro religioso medieval ou em Shakespeare, para constatar a complicação do relógio e da geografia. 

Para o teatro ocidental, é justo reconhecer que a única unidade soberana é a da ação, ao menos até as vanguardas contemporâneas. Ela garantiria a possibilidade de um fio condutor contínuo, capaz de assegurar um sentido ao que se vê. A ação alinhava a vivência ao seguir, fiel, o trajeto do herói.

Assim, hoje, um elenco pode contar a história do mundo em 60 minutos sem medo de aborrecer a plateia. Ou enveredar por uma saga extraviada pelos séculos… sem se perder do público nos atalhos. Dá para viver uma emoção juntos – a emoção de representar – sem que exista qualquer atrito entre o tempo ficcional e o tempo real da representação.

O problema focalizado pelos franceses do classicismo era bem este: se o tempo representado na cena superasse o tempo de duração da cena, a plateia não aceitaria a representação. Por isto, impuseram a camisa de força da unidade de tempo – não mais do que uma revolução solar – para garantir a verossimilhança da cena.

Várias peças da nossa época, tão pródiga em invenção teatral, lidam com estas temáticas, quer dizer, temáticas derivadas da visão do tempo em cena e das formas efetivas de representação do tempo. A rigor, somos rebeldes filhos do tempo, andamos livres pelos tablados.

 O próprio conceito de tempo aparece entre nós com frequência fraturado, flertando com a quebra da unidade de ação – algumas obras misturam a narrativa ficcional com a materialidade do espectador. Assim, elas fazem o tempo da ficção se imiscuir no tempo real vivido, a trama da cena absorvendo as tramas das vidas da plateia.

Portanto, pensar a respeito do tempo no palco é uma empreitada importante. Dois belos exemplos podem ser citados aqui – uma peça de excepcional qualidade que retorna ao cartaz e uma ousadia poética de transformação do teatral em filme. Nos dois casos, é possível acessar facilmente as propostas, oferecidas on line.

No primeiro caso, está a deslumbrante atriz Irene Ravache, uma intérprete dotada de extrema inteligência sensível, sempre senhora de uma arte comovedora. A sua intensidade em cena desenha uma radiografia generosa do humano, oferece um painel de sentimentos e de emoções reconfortador.

A notícia, então, é para comemorar, aplaudir de pé. O solo Alma Despejada volta ao cartaz num formato muito confortável, através do Teatro WeDo!, da plataforma Sympla, cujo desenho permite a escolha de horário pelo público.

A gravação foi feita durante a temporada, no Teatro Porto Seguro, com presença de plateia. Houve uma decidida atenção à qualidade, o que garante uma experiência estética  de alto padrão, com proximidade de detalhes, limpidez de imagem e som em HD.

O texto de  Andréa Bassitt espelha a marca sublime da autora, a capacidade de explorar delicados rendilhados existenciais. Aqui está sob o foco exatamente a possibilidade de aprendizagem com o tempo, graças ao maior desafio que a passagem do tempo contém, a morte.

Em cena, sob a direção do mestre Elias Andreato, Irene Ravache apresenta Teresa. Após uma longa vida, a professora, depois de morta, relembra passagens de sua existência, numa trama que enreda passado e presente, ao visitar a casa em que viveu e que será demolida.

 Numa visão de superfície, trata-se de uma história trivial, mas a trajetória foi pensada para surpreender. Para o diretor, há uma operação muito estratégica:

“Essa mulher é apresentada diante de sua própria vida, e, a partir dessa visualização, ela encontra o entendimento da sua existência. É como se precisássemos abandonar a matéria para sermos conscientes de nós mesmos”, ele observa.

 Os temas do abandono da matéria e da importância do ato de transceder estão no centro da outra obra em que o tempo também está em discussão: o curta musical By The Time You Left. A constatação nasce, primeiro, por uma razão simples.

De estalo, vale frisar que a proposta põe em xeque valores estreitos da nossa época, discute uma das grandes mesquinharias do nosso tempo, pois trata-se de uma produção voltada para a temática LGBTQIAP+. A escolha permite que se olhe para as sombras da nossa era com interrogações decisivas a respeito de sua humanidade. Afinal, que tempo é este, em que ainda se desrespeita as escolhas pessoais de amor?

Em temporada curta, exibida online e grátis no Youtube, a produção foi inspirada pelo musical off Broadway Ordinary Days. A trama original foi transformada, passou a tratar de um casal gay, interpretado pelos atores Hugo Bonemer e Hugo Kerth. Júlio Vaz e Malcolm Matheus completam o elenco.

A ação, ambientada em Nova Iorque no trágico dia 11 de setembro, que, por sinal, comemora vinte anos, aborda uma história dramática por trás da separação do casal. Jason (Hugo Bonemer) recebe uma inesperada ligação de seu ex-namorado (Hugo Kerth).

A ligação traz uma revelação impactante: ela é, ao mesmo tempo, surpreendente, reveladora, assustadora. Surge como uma chance de reconexão para o casal, depois do enfrentamento de questionamentos, tristeza e as dores de uma perda.

Vale destacar que os protagonistas são atores de destaque no musical – possuem formação apta para garantir bons momentos de arte. Duas canções originais de Adam Gown, da trilha de Ordinary Days,  foram escolhidas para ambientação geral do curta-metragem musical – o formato esfuma a definição de teatro que poderia ser atribuída à produção.

Aliás, a produção também significa uma ousadia diante dos limites para a arte no nosso tempo – foi assinada por Kerth, como produção independente. A filmagem foi feita entre abril e maio, segundo os protocolos em vigor de segurança sanitária, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Para a circulação do trabalho no mercado internacional, ele tem o inglês como idioma original, com legendas em português. Assim, será exibido em festivais internacionais de cinema.

 Nos dois casos, sob visões humanas diferenciadas, está em pauta o debate a respeito da perda, quer dizer, a necessidade de perceber os valores maiores da vida. A perda das ilusões, a perda dos amores, a perda da crença no valor da materialidade – enfim, uma lista pródiga de choques traumáticos poderia dimensionar claramente o universo do debate.

Vivenciar estas histórias sob as coordenadas da poesia dramática pode ser uma ferramenta de libertação. Nas esquinas da vida, dizem que o tempo é o senhor da razão, o tempo cura as feridas. Então, através do teatro, arte do tempo por excelência, provavelmente se pode perceber que, graças aos deuses, afinal, tempo pode significar inteligência.

 ALMA DESPEJADA

FICHA TÉCNICA 

Texto: Andréa Bassitt.

Direção: Elias Andreato.

Interpretação: Irene Ravache.

Cenário e figurino: Fabio Namatame.

Iluminação: Hiram Ravache.

Música: Daniel Grajew e George Freire.

Cinegrafia: Paulo Arizati.

Fotos: João Caldas Filho. 

Produção/realização: Oasis Empreendimentos Artísticos.

SERVIÇO:

Espetáculo: Alma Despejada

Temporada online: 02 a 31 de julho

Sexta e sábado, a partir das 12h – ingresso válido por 24h.

Local: Sympla / Teatro WeDo!

Ingressos: R$ 40,00 – Vendas: www.sympla.com

Classificação: 14 anos. Duração: 80 minutos. Gênero: comédia dramática.

Assessoria de imprensa: VERBENA COMUNICAÇÃO

Eliane Verbena / João Pedro

BY THE TIME YOU LEFT

FICHA TÉCNICA

DIREÇÃO DE ARTE E PRODUÇÃO: Ranier Defensor

ELENCO: Hugo Bonemer e Hugo Kerth

PRODUÇÃO: HeyArt! Studio e Hugo Kerth

CÂMERA: Ranier Defensor

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO E CÂMERA: Júlio Vaz

PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS: Júlio Vaz e Malcolm Matheus

TRILHA ORIGINAL: Adam Gwon (do musical off-Broadway “Ordinary Days”)

MÚSICOS: Leonardo Pinto (violino), Thalyson Rodrigues (piano)

ÁUDIO E MIXAGEM: Gustavo Caldas (Estúdio DRS, RJ)

SERVIÇO:

Temporada: de 28 de junho até 26 julho

Ingresso:

By The Time You Left pode ser visto até 26 de julho pelo .

Lá é só adquirir o ingresso de forma gratuita e assistir ao curta