As peraltices do afeto
De repente, um espanto: o mundo dos afetos, do amor. Um painel de fragilidades desfila diante dos olhos. Cada ser, uma escravidão de si, uma escravidão da própria afetividade. São seres racionais, mas o afeto subjuga-os, a todos aniquila e não traz resposta, só a solidão. Ou algum vazio. A liberdade de amar não liberta, desgoverna.
A estrutura da peça obedece a uma lógica extrema, cristalina, mas integrada por pequenas partes soltas, de um minimalismo surpreendente. O cálculo funciona num sentido cerrado, para deixar em suspenso a visão dos jogos do afeto: A Reunificação das Duas Coreias, de Joël Pommerat, cartaz do Oi Futuro Flamengo, é pura ousadia. À ousadia temática – a ácida decisão sutil de estranhar o íntimo, o simples – foi somado um cálculo teatral vertiginoso.
Explique-se. A obra teatral de Joël Pommerat se constrói a partir de um lugar novo da dramaturgia, o que se pode chamar de dramaturgia de sala de ensaio. O autor escreve os textos durante o processo de ensaio, em diálogo com os atores. Ele atua, portanto, como autor e diretor, como atiçador de sensibilidades, assina o espetáculo das letras à cena, em cena.
Este fluxo criativo se dá em sintonia com a marcha do mundo hoje, o mundo da participação cidadã, da liberdade individual, e pretende motivar discretos deslocamentos da percepção corrente a respeito dos temas abordados. Assim, nesta obra, o afeto, em especial o amor, surge como o grande cimento do mundo, autêntico elo de ligação entre humanos, pulsação livre, o que nos resta para existirmos em sociedade. Só que os humanos, seres atuais, estão condenados a um sentimento apropriado ao novo tempo, o afeto instável e descartável. Até o amor se entrega ao andamento da época: em vez de eterno, é um exercício de impossibilidade.
A montagem brasileira rompe um pouco a partitura original, trata-se de uma montagem de mercado, fora da linha de produção de criação poética de grupo, seguida, na França, pelo autor-encenador. Mas isto não significa uma violência contra a obra, pois ela acontece aqui no espaço de mercado do teatro cultural, mais requintado do que aquele do teatro dedicado ao simples divertimento e ao cálculo de bilheteria.
A produtora responsável pela concepção do projeto, Maria Siman, segue uma política de produção preocupada com a relevância cultural das propostas que assina. O público adepto do teatro de qualidade intelectual, o teatro pródigo em debate de ideias, tem aqui programa obrigatório. Detalhe: não é uma daquelas peças-cabeça enfadonhas, mas excelente diversão.
Para garantir a densidade necessária à montagem, a direção foi entregue a João Fonseca, artista articulado com a poética de invenção coletiva desde a sua formação, sob a liderança de Antonio Abujamra, no coletivo Os F… Privilegiados. O diretor assina uma cena seca, despojada, fluida mas bem marcada, decidida a extrair a voltagem mais elevada de expressão dos atores, cercados por uma cenografia de Nello Marese altamente sugestiva.
Assim como os atores, muito experientes, vividos ou formados em práticas de grupo, impregnados por linhas interpretativas pessoais muito claras, se desdobram em inúmeros papéis, assim a cena se transforma, a partir de elementos móveis, para compor a insinuação realista de incontáveis espaços. Painéis-biombos e portas praticáveis constroem cenas de rua e de interior de variados tipos, num grande caleidoscópio de situações sociais e sentimentais.
O jogo desenvolvido em cena, marcado por uma multiplicação constante das figuras humanas e do espaço representado, ganha reforço nos figurinos precisos de Antonio Guedes e na luz de intensos efeitos de volume de Renato Machado. Inserções musicais lembram o sentido afetivo das canções hoje. Legendas projetadas indicam o perfil de cada cena. Em alguns momentos, surgem verdadeiras bolhas humanas vivas de afeto desesperado. Grafismos de vaga inspiração pré-histórica insinuam a hipótese de uma antiguidade remota para o jogo do afeto, que agora se liberta como cegueira afetiva numa selvageria nova. Estilhaços de humanidade voam em todas as direções.
Louise Cardoso movimenta a cena com um tom pungente e irônico, particularmente impressionante no primeiro quadro, em que a faxina se torna um ritual rascante de ajuste sentimental. Solange Badin e Bianca Byington surpreendem a sensibilidade e o recato afetivo da plateia com notas de humor elegantes, mas corrosivas. Verônica Debom fulgura nas imagens juvenis do afeto.
Marcelo Valle evoca uma sentimentalidade profunda, intensa, em especial em quadros onde o amor e a natureza dos fatos, das ações e dos sentimentos se tornam espirais de dúvida completa. Gustavo Machado se projeta como galã jovem eficiente, por vezes cínico. Rainer Tenente se destaca com brio em cenas em que predomina uma definição amorosa difícil e em belos quadros cantados, também favoráveis à força expressiva de Solange Badin.
Sim, esqueça tudo o que você acha que sabe sobre o afeto e o amor. Aqui, um olhar de estranheza envolve o velho refrão sentimental, para mostrá-lo como um lugar de dúvida e de hesitação. Ele surge sob nova roupagem, inquietante, nada tem de natural ou de pacificador. Até o amor eterno de outrora, projeto romântico delirante, surge sob suspeita a partir do jogo impactante proposto pelo título – ele foi tirado da fala de um personagem, que afirma que o amor do casal teria sido tão grande, no passado, quando surgiu, que seria algo similar à reunificação das duas Coreias. Mais ironia, impossível.
É para reinventar o amor, repensar o afeto? Questionar o primado do afeto nômade contemporâneo? Descobrir a forma do amor do nosso tempo? A resposta é sua, depois de ir ao teatro e mergulhar neste mar de oscilações. Se a natureza profunda do afeto persiste como território indomável, vale reconhecer o quanto ele tem de sentimento rebelde, ao menos na prática do nosso tempo de liberdade, quando, afinal, em grau razoável, ele pode eclodir, se manifestar sem amarras. Que a cena ilumine o seu coração – ou suas ideias de amor – é o pouco que se pode desejar…
Texto: Joël Pommerat
Tradução: Bia Ittah
Direção: João Fonseca
Elenco: Louise Cardoso, Bianca Byington, Solange Badim, Marcelo Valle, Gustavo Machado, Veronica Debom, Reiner Tenente
Luz: Renato Machado
Figurinos: Antonio Guedes
Cenários: Nello Marrese
Direção Musical: Leandro Castilho
Assistente de Direção: Reiner Tenente e Pedro Pedruzzi
Direção de produção: Maria Siman e Ana Lelis
Produção executiva e adminsitração: Ana Lelis
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Designer gráfico e fotos:: Victor Hugo Ceccato
Realização: Primeira Página Produções
A Reunificação das Duas Coreias
Estreia para o público: 24 de junho
Temporada: 24 de junho a 28 de agosto
Local: Oi Futuro Flamengo – Rua Dois de dezembro, 63 – Flamengo
Horário: De quinta a domingo, às 20h
Ingressos: R$ 30,00
Tel bilheteria: 3131-3070
Gênero: Comédia dramática
Classificação: 12 anos
Duração: 100 minutos
Vendas Online: ingresso.com
O projeto A Reunificação das Duas Coreias é viabilizado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura – Ministério da Cultura e Lei Estadual de Incentivo à Cultura – RJ – Secretaria Estadual de Cultura do RJ.
Conta com o Patrocínio Porto Seguro e Oi.
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