Mito, pensamento mágico, pensamento crítico
Vai, confessa, você tem um mito todo seu. Não se envergonhe: mito é coisa que todos têm. A diferença está na forma como você se dedica ao seu mito… Cada fã revela o seu íntimo, quando descreve a própria mitologia e os seus rituais.
Sim, há uma hierarquia de fãs, categorias que vão dos descabelados até aqueles glostora pura. Glostora, para quem chegou na vida recentemente, era uma gosma antiga vendida nas farmácias para pentear cabelos masculinos, capaz de fazer com que eles se tornassem um capacete de fios, todos presos no lugar. O equivalente feminino era o laquê…, mas esta é uma outra história.
Vejamos parte por parte. Em cada categoria, existem muitos subgrupos. No caso dos descabelados, no seu conjunto, eles podem ser definidos como devotos amplos, gerais e irrestritos, quer dizer, seres incapazes de esboçar qualquer reação de independência diante do mito. Por ele, pagam qualquer mico.
Mas há, no entanto, uma gama enorme de nuanças no interior desta imensa colônia humana formada pelos fãs. Dentro da categoria dos descabelados, a turma mais baixa é a dos fanáticos cegos. Para estes, o mito é algo parecido com a pedra filosofal medieval: basta olhar para a coisa – ou melhor, desculpem, para a entidade adorada – e tudo se resolve. Funcionam como zumbis humanos. Em consequência, o mito sofre um assédio intenso: é observado, vigiado, copiado, enfim, massacrado.
Logo acima, mais equilibrados na sua paixão, ficam os descabelados meditativos – eles devoram o mito de longe, intensamente. Também sofrem de cegueira afetiva, mas preservam alguma autonomia, não são zumbis, apenas teleguiados. Assim, podem até adorar mais de um senhor, com a sobra de fanatismo gerada pela devoção meditativa.
A seguir, surgem os descabelados arruaceiros. Até parecem indiferentes, distantes, atletas ocupados com o culto do próprio físico… Ledo engano. Estes são perigosos: transportam a exaltação afetiva para a energia física e podem distribuir pancadaria e assemelhados. No furor, às vezes sobra bolacha para o próprio mito, se por acaso ele aparecer no caminho do descabelado extrovertido no momento de fúria mitológica.
Depois dos descabelados, prolifera um vasto grupo, a categoria dos lords e ladys, o povo da elegância. São, a rigor, descabelados que, por razões sociais, afetivas ou políticas, foram obrigados a segurar a peruca e usar o pente. Ingressamos aqui nos domínios do figurino impecável, criaturas acostumadas ao trato sofisticado da própria imagem. São fãs de grife, digamos.
No grupo, a categoria mais baixa pode ser assustadora. Em linguagem atual, deve ser definida como categoria “eu pego sim”. Quer dizer, por trás da formalidade, da elegância e do bom mocismo, se esconde uma figura voraz, devoradora mesmo, capaz de baixar a pomba-gira ou rodar a baiana sem aviso prévio. No caso, felizmente, não há pancada, a batida é outra. O transporte físico é mais lúdico.
Logo depois, a faixa elegante fica mais sofisticada e traz a lânguida comunidade “eu pego”, uma gente melíflua e escorregadia, sempre escondida atrás de cortinas, panos ou, quem sabe, toalhas de mesa. A partir desta classificação, vale destacar, tudo fica mais civilizado e nada perigoso. Um(a) fã do tipo “eu pego” jamais avançará um sinal vermelho, muito embora possa fazer o diabo para conseguir saber a luz do sinal…
Portanto, neste estudo sumário, o que vem depois é o conforto da civilização – nenhuma barbárie será cometida ou acometerá os fãs que se enquadram nos batalhões seguintes, situados entre os estágios avançados de lords e ladys e glostoras. Um glostora se diferencia por sua decisão profunda, existencial mesmo, de que jamais um fio de cabelo seu sairá do lugar.
Assim, os escalões mais elevados da categoria glostora cheiram ao terror – pois o seu fanatismo se concentra no plano das ideias. O seu cérebro poderá engendrar as ideias mais estapafúrdias – e perigosas – para desenvolver o reinado absoluto do seu mito. Neste segmento, nenhum investimento físico vale a pena, importam apenas as ideias, sempre pequenas, quando vistas a partir do interesse da humanidade.
Portanto, não se pode ter ilusão. Sem dúvida salta aos olhos – ou salta aos cérebros mais questionadores – de forma violenta, a natureza profunda constitutiva dos fãs. Talvez se possa cometer a ousadia de argumentar que os fãs são os freios do mundo. E por quê, perguntamos aflitos, nós que somos, todos, sem excessão, fãs?
Os fãs são feitos de uma matéria sólida, impermeável, admirável na sua consistência plástica: a incapacidade crítica. Para o fã, encadear uma ideia, acenar com uma análise, uma reflexão circunstanciada a respeito do mito pode acarretar numa parada cardíaca, pois neles o cérebro não funciona, só funciona o coração. Quando o cérebro é ativado, a ideia vem do coração…
Portanto, se você, espírito crítico compulsivo comprometido com a avanço da aventura humana, jogar para o fã de um determinado mito um conceito de análise que seja, correrá o risco de cometer homicídio qualificado, sem direito à legítima defesa. A sua vítima não estava, absolutamente, preparada para um petardo mental de grosso calibre e BUM! Explodiu.
Pois qual é o segredo? Qual a fórmula do explosivo? Acontece que, atrás de cada fã, se esconde a velha estrutura de pensamento maniqueísta ocidental. Aquela história de visão dual simplista, mecânica, do mundo, aquela mesma que ficou obsoleta lá na renascença e vem arrastando a carcaça até aqui, para nos impedir de crescer.
Por que uma longevidade tão espantosa para uma forma de pensar tão pobre, tão velha? Simples – no seu interior vegeta uma das estruturas mais resistentes do nosso pensamento, a crença numa idade de ouro, a possibilidade do paraíso. Justamente o Mito dos Mitos. O Mito da Idade de Ouro, lá onde tudo (foi) será perfeito…
O mito é um pedaço do paraíso. Ou o próprio paraíso. Uma lasca de um lugar imaginário impossível – nem chega a ser utópico – no qual viver é um conforto, sem conflito, sem confronto, sem dilaceramentos, sem disputas, sem diferenças, sem dor, uma panaceia, um fluxo de puro gozo.
Ele está na literatura – não apenas na Bíblia – desde a antiguidade. E acompanha a vida humana desde sempre, como se o cérebro nos desse um alento para suportar a vida. A realidade é dura, mas você tem o sonho, tem um lugar de paz, tem um mito, aquela luz infinita, absoluta, capaz de ofuscar as trevas do real.
Mas, afinal de contas, por que descaminhos a coluna foi parar neste ermo das ideias? Não, não foi apenas por este mecanismo ser uma parte importante da vida teatral, uma parte ainda não pensada. Não foi a constatação da necessidade de apontar para o problema do teatro-mito, réplica do paraíso, redentor impossível da vida medíocre, que arrasta volta e meia bandos descabelados de penitentes da cena.
Logicamente, o mecanismo existe embutido na construção das celebridades teatrais, as grandes – as Celebridades, digamos, não as pobres celebridades instantâneas do presente. Há um livro interessante sobre o tema, da estudiosa Sharon Marcus, The Drama of Celebrity, editado pela Princeton University em 2019.
Ok, eu, pecadora, confesso: o que está em pauta é a libertação do pensamento. Não adianta apontar o dedo contra um mito e cair nos braços de outro, para persistir na miséria mental. O mais importante, no fundo, é dimensionar como o teatro pode lidar com o pensamento celebratório justamente para atuar a favor da liberdade do pensamento. Como fazer do palco um lugar de pensamento, pensamento livre, em resumo.
Estive pensando em duas figuras míticas do teatro brasileiro, duas mulheres apaixonantes, duas grandes lendas vivas da cena nacional. As duas completariam cem anos de vida neste mês de abril e não sei se foram louvadas o bastante. A coluna seria para falar a respeito delas, mas o rumo foi adiante, talvez como elas próprias gostariam que fosse o andamento da vida.
Uma delas, Cacilda Becker, não conheci e nem mesmo cheguei a ver em cena. Tornou-se, porém, um monumento do teatro brasileiro. Dizem que, no palco, era um incêndio humano, uma vertigem rara de sensações, emoções, ideias. Mas – fato curioso – algum admirador escreveu a seu respeito uma notícia reveladora. Comentou a sua preocupação com a autopreservação, com o culto da imagem, e observou, para exemplificar, que ela não andava batendo pernas pelas calçadas de Copacabana.
A outra figura gigante – muito embora ela fosse pequenina e se esforçasse para andar transparente – é Maria Clara Machado. Não cheguei a ser sua aluna. Estudei no Tablado um ano, com Louise Cardoso. Mas era frequente encontra-la na secretaria, papear sobre teatro e sobre críticas teatrais e textos jornalísticos.
Lembro de uma reportagem bastante apressada, publicada num jornal paulista, acusando o teatro de Maria Clara Machado de ser alienador, até conservador, desprovido de inteligência. Ela se revelou assustada, indignada mesmo, com a matéria injusta e argumentou contra o texto, conversando comigo, usando como referência principal A Menina e o Vento.
Naquele momento – muito embora eu nunca tenha me dedicado ao teatro infantil – entendi a grandeza de Maria Clara Machado e mesmo a sua escolha radical de manter o Tablado, a sua casa, a sua cena, como teatro amador. Maria Clara Machado simplesmente inventou, entre nós, o teatro como lugar do pensamento livre, abrigo da sensibilidade em estado puro.
Não sei se poderia chamar Maria Clara Machado de mito – com certeza, nem a palavra, nem o conceito dão conta do que ela foi. Talvez Cacilda Becker possa assim ser definida e talvez isto seja bom. Os atores operam numa grandeza na qual a mediação do corpo importa.
A mistura de fisicalidade e idealidade precisa do corpo para ser percebida. E, curiosamente, um tema para pensar na História do Teatro Brasileiro, todos os espaços, profissionais, ligados à trajetória de Cacilda Becker, desapareceram. Ela foi a grande estrela do TBC, uma casa teatral de São Paulo fundada em 1948 que investiu alto para ser mito e virou poeira.
No seu centenário, as homenagens cênicas maiores foram realizadas justamente pelo adversário mais absoluto do TBC, o Teatro Oficina, de 1958. Trata-se de um empreendimento teatral liderado por José Celso Martines Corrêa, outrora o inimigo número 1 do teatro burguês que a atriz representou. Por seu contorno ambiguo, difuso entre o mercado e a vontade de ser instituição, o Oficina, entre trancos e barrancos, sobreviveu. Ou Zé Celso sobreviveu.
Justiça seja feita – não se trata de escala de valor, mas de densidade da obra. Maria Clara Machado está um pouco adiante – não só por causa dos textos ou da escola ou do palco que ela criou e manteve. Mas, antes, por existir neste caldeirão uma mistura digna das melhores bruxas.
Além das matérias e das sensações, a consistência do caldo é a ideia, o conceito. A capacidade de duvidar, de colocar entre parenteses. Perguntar em lugar de louvar. No Tablado, ela implantou um doce mito de irreverência, um culto ao teatro sem descabelamento e sem glostora. Um mito de ser.
E talvez este possa ser o melhor dos mitos, capaz de romper maniqueísmos e visões simplistas da vida, impedir extravasamentos furiosos e elegâncias de superfície: sob o foco, ele materializa o jogo puro da ideia.
SERVIÇO:
Centenário Cacilda Becker – para saber mais, leia:
Centenário Maria Clara Machado – lançamento do site do filme O Tablado e Maria Clara Machado, de Creuza Gravina.
Através da plataforma Sympla, serão realizados bate-papos virtuais com integrantes do elenco do filme, conforme programação anunciada no site. O ingresso, gratuito, deve ser retirado previamente no site da plataforma.
Para ler:
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