Resplendores Humanos

 

Existe uma eletricidade humana misteriosa. Ela percorre a plateia do teatro, irradia do palco como se fosse um feixe bruxuleante de luz: Eva Wilma está em cena. A ida ao teatro para ver a peça Azul Resplendor vale por este fato simples, mas arrebatador, a presença da diva, humorada, brejeira, vibrante, atilada, dona de um estilo único capaz de conciliar doçura e irreverência. São oitenta anos de vida, sessenta de arte e vale a pena testemunhar a beleza do momento, nesta terra em que tudo passa célere, sob a ótica da indiferença.

 

O texto é curioso. Obra do experiente e premiado autor peruano Eduardo Adrianzén, não está disponível na versão original. A adaptação encenada aqui parece guardar, talvez, uma dose razoável de liberdade frente ao original, pois são muitas as referências objetivas à história recente do teatro brasileiro.

 

Elas começam no destaque ao declínio do teatro das grandes estrelas, do início do século XX, em favor de um teatro de invenção. E prosseguem na caricatura de um teatro de experimentação subsequente, nem sempre de alcance popular ou compreensível por partes daquele público que, justamente, idolatrava os velhos primeiros atores. Pode ser que os palcos peruanos tenham passado por esta experiência com os mesmos coloridos que encontramos por aqui, mas parecem coisas bem nossas a referência insinuada a Gerald Thomas, por exemplo, e ao poder da televisão. E, sob a forma proposta, as referências são bem polêmicas.

 

Há, contudo, um colorido peruano forte, o texto tem um tom geral distante dos procedimento correntes aqui – uma espécie de delírio fantástico envolve a fabulação, de feitio muito hispânico, latino-americano de raiz ibérica, pouco luso. Assim, a trama gira ao redor de um ator pouco expressivo, inconsciente de sua mediocridade.

 

Herdeiro de uma bela quantia, ele decide gastar a fortuna para fazer voltar ao palco a grande atriz de seus tempos de mocidade, retirada e esquecida em seu final de vida, fugaz como as luzes teatrais. Ela reluta, mas acaba cedendo, em um jogo de realismo fantástico legitimo, até porque o diretor escolhido para assinar a volta é uma celebridade, um encenador vanguardista pós moderno preocupado apenas com a invenção e com o impacto da cena, distante da valorização do passado. Deste esboço já se pode presumir um tanto do desfecho, a união dos dois idosos em um fracasso teatral retumbante, para o seu ponto de vista.

 

Paradoxalmente, o texto de base realista não segue a linguagem dramatúrgica típica dos velhos tempos. Ao redor das contracenas de apresentação da situação e de progressão da trama, são várias as cenas pós-dramáticas, narrativas ou épicas, repetitivas e bastante longas. Cada personagem expõe os seus motivos e as suas ambições em longos solilóquios e muita ação física.

 

A direção, de Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas, conseguiu tornar o texto mais pesado e mais frio graças à exploração insistente de cenas distantes, mais deslocadas para o fundo do palco, e ao ritmo lento e expositivo de toda a cena. A situação é agravada pelo cenário, de André Cortez, coroado por uma moldura inexplicável ao redor da caixa da cena, um corte brusco na comunicação palco-plateia.

 

A movimentação das cenas, em função da cenografia móvel, também pesa contra a fluidez do espetáculo. Os figurinos, de Simone Mina, desiguais em inventividade e realismo, e a luz, de Lúcia Chedieck, em geral muito escura, não contribuem para alterar o quadro sombrio que envolve a representação.

 

Mas há o espetáculo dos atores. Além da deusa Eva Wilma, exemplar em sua alegria de estar em cena, há um Renato Borghi contido e, por ironia, empostado como ácido crítico dos vanguardismos. É muito divertido ver um dos cérebros do Teatro Oficina, parceiro de José Celso Martinez Corrêa, estrela do iconoclasta espetáculo Gracias, señor, de 1972, representar um ator do velho teatro das divas. E há ainda outros tesouros – a presença intensa e espirituosa de Luciana Borghi, o carisma elegante de Dalton Vigh, a beleza plástica da figura ágil de Luciana Brites e a dedicação de Felipe Guerra.

 

A cena é uma homenagem ao teatro, sem dúvida. A homenagem em boa parte é bem sucedida graças aos atores, estas grandezas sublimes capazes de fazer uma revolução sensível apenas com os seus corpos, os seus sentires e a sua vontade de nos tocar, do lado de cá da cena, por simples ato de abstração. Como uma pequena luz azul, da cabeça de um fósforo, na escuridão. Que possamos sempre saudar esta grandeza singela, capaz de nos dar resplendores humanos tais como Eva Wilma.


FICHA TÉCNICA
Texto: Eduardo Adrianzén (Peru)
Tradução: Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas
Direção Geral: Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas
Elenco:
EVA WILMA – Blanca Estela
RENATO BORGHI – Tito Tápia
DALTON VIGH – Antônio Balaguer
LUCIANA BORGHI – Glória Campos
LUCIANA BRITES – Luciana Castro
FELIPE GUERRA – Giancarlo Varoni
Luz: LÚCIA CHEDIECK
Cenário: André Cortez
Figurino: Simone Mina
Trilha Sonora: Aline Meyer
Vídeos: Renato Rosati
Fotos: João Caldas
Direção de Produção: André Mello
Realização: Renato Borghi Produções
Assessoria de Imprensa: JSPONTES Comunicação – João Pontes E Stella Stephany
SERVIÇO
Estreia: 09 de janeiro, quinta feira, às 20h
Local: Teatro SESC Ginástico
Endereço: Av Graça Aranha, 187 – Centro, RJ Tel: 21 2279 4027
Temporada: 09/01 a 23/02/14
Horário: quarta a domingo, sempre às 19h
Capacidade: 513 espectadores
Duração: 90 minutos
Classificação: 14 anos
Preços:
Quartas e quintas – R$ 30,00, R$ 15,00 (meia) e R$ 10,00 (comerciários)
Sextas, sábados e domingos – R$ 40,00, R$ 20,00 (meia) e R$ 15,00 (comerciários)