Deusa do amor e do encanto
Responda rápido: a devoção da sua vida é o amor ou a paixão? O seu coração vive imerso em mel ou arde em fogo? Não é muito fácil, mas é possível dividir os atores – entre outras classificações curiosas – neste dois blocos. Existem os incendiários e os que são pura seda. E – convenhamos – não importa o partido, eles sempre nos encantam.
Existem alguns atores raros capazes de combinar, estranhamente, as duas temperaturas. Eles se incendeiam pelo teatro, mas deslizam em cena sob um afeto delicado, puramente amoroso, que nos eleva à quintessência do melhor de nós.
Sim, estou falando de Eva Wilma (1933-2021), mais uma grande deusa do nosso tempo que se vai. Convivi com Eva Wilma, em tempos recentes, durante horas deliciosas nas tardes de chá e simpatia organizadas pelo colecionador Marcelo Del Cima. Foram tardes abençoadas, dionisíacas no melhor sentido – quando se pode respirar teatro profundamente.
Como descrever Eva Wilma? A sua pessoa atestava a grandeza da atriz, era pura intensidade humana, bom humor, inteligência. Possuía aquele tipo de espírito fino, capaz de transitar do coloquial ao erudito, em estado de elegância total. A mesma sensação me envolveu ao entrevistá-la para a comemoração dos 75 anos do Teatro Ginástico.
Agora, ela se foi, mais um golpe contra nós, neste tempo de tantas perdas. Das homenagens justas que está recebendo, reveladoras de sua vida intensa de plena dedicação à arte, com obras marcantes em todos os campos em que atuou, nasce uma constatação: tivemos um tempo solar de expansão do teatro. E os deuses nos garantiram a plenitude solar da arte com a presença de estrelas absolutas como Eva Wilma.
Foi um tempo em que o grande teatro – grande em todas as suas dimensões – se instalou no país sem reservas, como se fosse para ficar. Para atrizes estruturadas em paixão, movidas pelo amor, as oportunidades foram únicas. O diálogo teatral era generoso, até que foi se tornando tenso e rancoroso, um pouco como a temperatura do país.
Curiosamente, a atriz, bailarina de formação, iniciou a sua carreira no Teatro de Arena, de José Renato, em 1953. Tratava-se de uma experiência inovadora, de transformação radical do espaço cênico, e seria bastante interessante pesquisar a poética do grupo a partir da presença de Eva Wilma, pois as bailarinas, de certa maneira, “não tem costas”.
Na arena, uma das mudanças básicas da linguagem de cena era justamente a necessidade do ator ser “pião”, ser ator giratório, isto é, ser um ator capaz de estar em cena sem a referencia da plateia frontal. Deste lugar de origem, fervilhante, abraçado pelo público, sem dúvida Eva Wilma incorporou uma lição de excelência – a intensidade de sua presença em cena e a sua “qualidade expressiva corporal”, digamos, patente nos seus desempenhos.
Esta forma cênica profundamente plástica permitiu à atriz transitar entre gêneros teatrais diferentes com enorme desenvoltura. Apesar de ser uma adorável atriz de comédia, excepcional nas tramas mais sentimentais, esbanjava uma energia cortante nos dramas e atingia tons trágicos com uma naturalidade espantosa. Infelizmente o mercado teatral brasileiro não oferece um campo de trabalho generoso no universo do trágico; se assim fosse, teríamos grandes surpresas com a voltagem da atriz.
Dentre os seus trabalhos mais recentes, sob a égide da carreira solo e fora da dinâmica dos antigos grupos, alguns trabalhos merecem destaque. A extensão das escolhas é surpreendente e atesta o seu grau de paixão amorosa pela cena. Lembre-se que, em 1977, sob a direção de Antunes Filho, ela integrou uma montagem de Esperando Godot, de Beckett, com elenco feminino (Lilian Lermmertz, Lelia Abramo, Maria Yuma, Vera Lima), o contrário do desejo do autor.
Também se entregou, em 2006, a uma reflexão em cena sobre a sua carreira graças à montagem de Um brinde ao teatro, direção de Antonio Gilberto, uma antologia dos grandes momentos teatrais que viveu. O espetáculo marcou, com uma torrente de paixão cênica, a inauguração do Teatro de Arena da Caixa Cultural e não se poderia encontrar uma ideia melhor para a ocasião.
Assim, importa relembrar a corrosiva incursão no universo feminino proposta em Querida Mamãe, de Maria Adelaide Amaral, de 1994, direção José Wilker, montagem em que contracenou com Eliane Giardini. Depois, é fundamental citar O Manifesto, de Brian Clark, direção de Flavio Marinho, com Othon Bastos, de 2007 – uma peça de humor inteligente em que um casal se confronta com a sua história e lida com formas antagônicas de ver o mundo.
Talvez estes exemplos sejam eloquentes para revelar um dos pontos mais fortes da personalidade da atriz – o seu profundo compromisso com a potencia da pessoa humana e, necessariamente, com o debate a respeito da questão feminina. O seu desejo era cristalino, apontava para uma arte incandescente a serviço do ato de pensar, paixão por teatro, amor às ideias. Portanto, uma combinação rara de paixão e amor.
Então, teatro de ideias, digamos, mas um teatro de ideias em que a paixão se torna a ordem do dia, como se racionalidade e paixão fossem formas complementares. Natural, então, que a despedida desta artista tão generosa nos leve a pensar o fluxo sentimental que nos define – amor ou paixão, a cada um o seu melhor. Na verdade, ela nos apontou uma verdade plana, a própria forma de ser do teatro.
Pois na semana, amor e paixão fazem a festa também entre jovens – este é o tema da nova montagem agora anunciada pelo grupo Teatro Inominável, com estreia dia 26 de maio. A novidade, aqui, é que o grupo denomina a peça como “filme”- opção que pode levar a… discussões apaixonadas.
Objetivamente, a proposta pretende tratar de um tema quente: a falta de controle do ser humano diante dos afetos, quer dizer, a fraqueza do racional frente ao emocional. A dramaturgia e a direção cabem a Diogo Liberano, o que significa necessariamente ousadia, busca de rupturas com a tradição.
A trama focaliza a história de Mocinho e Gatão, uma vaga referencia biográfica transformada para se tornar um quadro mais universal. Os dois se conhecem e desejar estar juntos, mas os motivos não são os mesmos.
Para ampliar a voltagem dos conflitos, há entre eles um terceiro personagem, a Nave, um automóvel com espaço interno reduzido, uma forma de delinear uma visão dos fatos externa ao casal. Integram o elenco Andrêas Gatto, Gunnar Borges e Márcio Machado – um elenco masculino – com a paixão adquirindo aqui tons peculiares.
Vale citar a estreia numa celebração à memória de Eva Wilma: a obra fala de amor e paixão, explora o universo masculino sob um ângulo do nosso tempo e, talvez o mais importante, pretende defender o teatro como prática de indagação, pergunta, movimento. E mistura teatro e cinema! Aliás, a força abissal de Eva Wilma na sociedade brasileira não vem apenas do teatro, mas de sua ampla carreira na TV e no cinema.
Num movimento permanente de renovação apaixonada da arte, o amor ao teatro se consolida, se perpetua na busca pela invenção. Sob o pretexto de falar do amor e da paixão, temas inextrincáveis, o inominável se instala: registra o desejo profundo de quem é de teatro, a possibilidade do palco, sob qualquer constrangimento, seguir adiante, para sempre ser.
Ficha Técnica:
Direção, Dramaturgia e Produção: Diogo Liberano
Atuação: Andrêas Gatto, Gunnar Borges e Márcio Machado
Dramaturgismo: Thaís Barros
Direção de Fotografia: Felipe Quintelas
Direção de Fotografia Adicional: Thaís Grechi
Assistência de Câmera: Adassa Martins
Edição e Finalização: Pedro Capello
Trilha Sonora Original: Phil Baptiste e Elisio Freitas
Som Direto: Renato Garcia
Direção de Arte e Figurino: Fabio de Souza e Luiz Wachelke
Produção de Figurino: Gustavo Souza
Caracterização: Cora Marinho
Cenotécnica: Elias Ramos de Souza, Marcinho Domingues e Iuri Wander
Legendagem: Daniel Chediek
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Design Gráfico: Diogo Liberano
Conteúdo e Comunicação Online: Diogo Liberano e Thaís Barros
Coordenação Financeira e Prestação de Contas: Patrícia Basílio
Produção Executiva: Tainá Louven
Direção de Produção: Ártemis
Realização: Teatro Inominável
Serviço:
E a Nave vai
Temporada: de 26 a 29 de maio de 2021, quarta a sábado, sempre às 19h. No dia 29, após a exibição, haverá um bate-papo dos integrantes do Inominável com um psicanalista convidado.
Ingressos: gratuitos. Exibição pelo canal do Teatro Inominável no YouTube (https://youtube.com/TeatroInominável)
Tempo de duração: 45 minutos
Classificação etária: 14 anos
Assessoria de imprensa: Racca Comunicação – Rachel Almeida
Patrocínio do Governo Federal, Governo do Estado do Rio de Janeiro e Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através da Lei Aldir Blanc.