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Um vazio pleno de vazio. A contemplação do nada. Quase um mergulho na hipótese do não ser – é o convite rascante proposto por Dias Felizes, de Samuel Beckett, novo cartaz da Armazém Companhia de Teatro, no Espaço Armazém da Fundição Progresso. A peça foi escrita em 1961 e, segundo alguns relatos do autor, demandou mais tempo de elaboração do que Esperando Godot, o seu texto mais aclamado e mais conhecido. A demanda de tempo se justifica: há uma tessitura de teatralidade impressionante na arquitetura do texto, suficiente para que seja considerado um clássico do nosso tempo. Em outras palavras: programa imperdível.

A estrutura da cena é aparentemente simples e, ao mesmo tempo, desconcertante, na sua sólida teatralidade. Na rubrica, o autor propõe uma extensão de grama queimada, com um monte baixo, sob luz ardente. Enterrada no monte até acima da cintura está Winnie, de certa forma a única personagem da peça. No texto, Beckett explorou a convenção teatral, corrente em muitas das suas peças, de materializar uma figura solitária no espaço, neste caso banhada por uma luz ardente. Durante todo o tempo, é como se fosse meio-dia.

Encenação do Royal Court Theatre, Londres, 1979, com Billie Whitelaw, foto Donald Cooper.

A luz intensa rompe com a noção de transcurso de tempo, ainda que uma sirena funcione como indicação do fim da jornada. No segundo ato, um novo dia se impõe, com a figura de Winnie enterrada até o pescoço – mas é impossível saber se é o dia seguinte, nenhuma conexão temporal é estabelecida entre os dois momentos. Assim como no classicismo francês, especialmente de Racine (1639-1699), profundamente estudado por Beckett, em que o dia era uma medida convencional para moldar a ação dramática, em Dias Felizes as noções de espaço e da luz do dia são as bases para a personagem lidar com a percepção de si. No primeiro ato, ações repetidas e cotidianas pontilham uma rotina vazia de sentido; no segundo ato, enterrada até o pescoço e, portanto, sem ação, o que resta é a fala e a expressão do olhar, de certa forma o vazio do vazio.  

A solidão, condição para o ser acontecer em plenitude, precisa lidar com a intensa necessidade humana de ser visto e ouvido: torna-se necessária, assim, a presença de Willie, o marido, presença praticamente muda. As falas de Winnie para ele amplificam o diálogo no vazio, são formas de autoexposição. A certa altura, Winnie constata a indiferença de Willie e expressa o seu desejo de liberdade, isolamento, silêncio e escuridão. Sem sentimentalismo, sem romantismo, sem a chance da fórmula clássica da identificação, a plateia se vê convidada a contemplar o vazio perturbador constitutivo do ser.

A encenação assinada por Paulo de Moraes tem o mérito de lidar diretamente com a força convencional do texto de Beckett, apesar de resvalar para um certo tom afetivo, insinuar alguma interpretação. Para o autor, não existe qualquer possibilidade de lidar com Dias Felizes sob uma visão naturalista-realista. Não há sentido em buscar uma história pregressa ou futura para Winnie, uma explicação para a sua situação ou uma percepção simbólica ou abstrata do quadro exposto na cena. Ela é o que é. A cena existe em si e por si.

Nenhuma força transcendental ou exterior explica a situação de Winnie. Ela não remete para algo fora de si. Não há um porquê a respeito da sua ação. Se Winnie precisa ser vista no seu montinho como se esta fosse uma situação normal, é para que se chegue à percepção do abismo contido na própria forma humana. Para este resultado, de certa maneira um processo de desmaterialização, todo o conjunto do espetáculo colabora, da luz de Maneco Quinderé ao figurino de Carol Lobato, passando pela música original de Rico Vianna.

A cenografia, de Carla Berri e Paulo de Moraes, ao desenhar uma superfície devastada, inclinada, suspensa no ar sobre grandes rochas, dimensiona com força poética o lugar da ação. No segundo ato, o telão-ciclorama do fundo, que estampara o sol, reproduz as imagens do rosto de Patrícia Selonk, responsável pelo papel central. 

Reside aí, no trabalho da atriz, uma das razões maiores para ir ver a peça. Trata-se de um grande desempenho, corajoso e resoluto. A interpretação dos textos de Beckett configura um desafio sério para os atores. A partir do realismo, é preciso ir adiante, escapar de formas estilizadas de interpretação, embarcar em atos precisos de percepção, capazes de envolver a realidade dos objetos numa crença imaginativa. Uma espécie de teatralidade sem teatro – ou vice-versa. Patrícia Selonk atinge este padrão com naturalidade, consegue reverberar as sutilezas irônicas do texto, lida com o seu fino humor com elegância e com as tensões latentes nas falas com extrema desenvoltura. 

Na estreia, Jopa Moraes se encarregou da proeza cênica impressionante que é defender Willie; foi uma presença correta, talvez com uma ponta de emoção excessiva. O papel será desempenhado também, em rodízio, por Felipe Bustamante e Isabel Pacheco.

De resto, vale felicitar a Companhia de Teatro Armazém por este presente valioso para os amantes de teatro. Se os grandes textos teatrais, clássicos ou contemporâneos, têm se tornado uma ausência lamentável na cena carioca, a coragem de encenar um Beckett – e um Beckett de extrema densidade – merece mais do que a gratidão do público. O fato é para comemorar, comemorar muito. Portanto, você que acredita na força do teatro para alimentar a vida, não deixe de ver, vale a pena correr até o teatro do Armazém para se deliciar com um acontecimento teatral de rara beleza. 

FICHA TÉCNICA:

DIAS FELIZES, de Samuel Beckett
Direção: Paulo de Moraes

Elenco:
Patrícia Selonk (Winnie)
Felipe Bustamante, Isabel Pacheco e Jopa Moraes (Willie)

Ficha Técnica:
Tradução: Jopa Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenografia: Carla Berri e Paulo de Moraes
Figurinos: Carol Lobato
Música Original: Ricco Viana
Designer Gráfico: Jopa Moraes
Fotografias: João Gabriel Monteiro
Pedras Cenográficas: Alex Grilli
Efeito Sombrinha: Paulo Denizot
Videografismo: João Gabriel Monteiro e Paulo de Moraes
Assessoria para Videografismo: Rico Vilarouca
Colaboração Artística: Lorena Lima
Produção: Armazém Companhia de Teatro

SERVIÇO:

Apresentações: 

3, 4, 5 e 6 de abril (quinta a sábado, 19:30h e domingo, 19h)

10, 11, 12 e 13 de abril (quinta a sábado, 19:30h e domingo, 19h)

17 de abril (quinta-feira, 19:30h)

Espaço Armazém

 Fundição Progresso

Rua dos Arcos 24.  Lapa

Ingressos à venda pela Sympla

Inteira: R$ 80

Meia-entrada: R$ 40