A Praça Mauá é Nossa
Querem acabar com a Praça Mauá – quer dizer, querem acabar com a Praça Mauá que reina na alma da muy leal e histórica cidade de São Sebastião que habitamos. Cidade-poesia, cidade-sonho, cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro lírico reconhece na velha praça, agora em transe para o futuro, um lugar mítico, berço histórico da cidade-lenda.
Muito desta atmosfera de inefável carioquice nasceu do porto, sem dúvida. Mas, reconheçamos, o Edifício A Noite, abrigo célebre da Rádio Nacional, assina a autoria de boa parte da trama de sedução que enredou a cidade, encantou o país e provocou o ciúme mais doentio de São Paulo, a capital febril fabril. Eles correram para fabricar algo mais alto! Mas o Rio era o Rio.
O prédio foi inaugurado em 1929 e foi aclamado como o primeiro arranha-céu da América Latina. Nas décadas de 1930 e 1940 alcançou sua potência máxima de esplendor urbano, muito por causa, justamente, da Radio Nacional, uma rádio imperial até a ditadura militar, e por abrigar representações diplomáticas e multinacionais de envergadura. Foi personagem – cenário em telão pintado – no teatro de revista, a mais famosa aparição na Companhia Oscarito-Beatriz Costa. A queda foi arrastada e longa, sempre despertando desejos ardentes de recuperação grandiosa, um pouco como se houvesse uma relação de contágio com a decadência do Rio.
Pois o jornal de domingo passou a régua nas esperanças de todos quantos ansiavam ver nascer, da ruína decadente, um monumento à beira-mar às canções brasileiras, ao burburinho de auditório, ao agito emocional das radionovelas. O Edifício A Noite vai para o mercado, para ser sabe-se lá o quê, ao sabor do cofre do arrematante. O altar das emoções tropicais desaparecerá, submerso num hotel ou num amontoado de escritórios.
E eu penso que devíamos nos mexer, fazer alguma coisa, espernear. Vai ficar assim? Não vamos reagir? Não dá para unir forças ao redor de um projeto carioca grandioso? Penso que a FIRJAN, os empresários cariocas que amam a cidade, os movimentos de valorização do Rio, o Sistema S (SESC, SESI, SENAC, SENAI), o Prefeito Marcelo Crivella e toda a Prefeitura do Rio, a APTR e todos os empresários teatrais, o Fred Reder do Teatro NETRio, a FUNARTE, os estudantes de teatro – enfim, todos os que compreendem a urgência de lidar com o protagonismo cultural do Rio de Janeiro precisam se mexer, se manifestar, agir.
De imediato, lembrei de Joseph Papp e do Public Theater em Nova Iorque. Não estive lá quando começou, em 1967, com Hair (não sou tão velha assim). Quando eu conheci o teatro, mais ou menos uma década e meia depois, o ponto da cidade era no mínimo soturno, 425, Lafayette Street, East Village. Infelizmente não tenho, nos meus baús, uma foto da época, antiga, para contrapor a esta foto acima, da abertura, atual. O processo de consagração da casa foi admirável.
A ação de recuperação urbana promovida por Papp foi assombrosa. Um prédio caindo aos pedaços, numa área degradada açoitada pela obra do metrô, e uma imensa vontade de mudar a vida, a cultura, as pessoas, contribuir para a transformação da sociedade, fizeram toda a diferença. No prédio velho foram criadas várias salas de espetáculo e de ensaio (algumas palpitavam assustadoramente com a passagem dos trens nos subterrâneos), escritórios, espaços de produção. O Public Theater desde então sofreu várias transformações, não sei como está hoje o espaço interno, faz tempo que não visito.
A casa acumulou prêmios, foi aclamada como o grande teatro sem fins lucrativos, totalmente democrático e inclusivo. Portanto, uma fórmula para estudar e aplicar às condições daqui, pois o resultado é notável – e passa pela mobilização empresarial.
O que nos impede de ter na Praça Mauá, no Edifício A Noite, um monumento à arte de ser carioca, com direito a casa de samba, recanto da Bossa Nova, palco de MPB, restaurantes, cafés, botequim, livraria, galerias de arte, museu, salas de audição e teatros, muitos teatros?
A situação é urgente, pois a situação do prédio está andando para o desfecho. E mais. Um discreto movimento começa levar para fora do país talentos jovens – alguns vão dar um tempo, outros não sabem dizer se desejam mesmo voltar. Talvez não voltem. Não temos espaço para os jovens. Na verdade, nem para os maduros. Diante de uma crise tão profunda, as soluções bem podem (ou devem) ter o tamanho de arranha-céus. Importa agir grande.
Pois alguns jovens que estão experimentando o clima lá fora juram que pretendem voltar, precisam ter casa aqui. É o caso do anunciado desdobramento internacional do projeto Rio Diversidade. Sob o título Brazil Diversity, a proposta vai estrear agora no início de Junho em Londres. À curadoria de Marcia Zanelatto, responsável pela edição brasileira, foi acrescida a participação do dramaturgo Rogerio Correia, residente em Londres.
Artistas brasileiros, ingleses e de diversas partes do mundo integram o projeto, uma homenagem aos 40 anos do movimento LGBT no Brasil. Em cena, serão apresentados conflitos de personagens que não aparecem nas novelas, um Brasil além do samba e do futebol, afirmam os curadores. Ao todo, serão 8 peças curtas, 6 novas e 2 do projeto original, com autoria de brasileiros e encenação de diretores e atores brasileiros, em inglês.
A proposta é um acontecimento que evidencia a garra dos artistas brasileiros, pois o projeto foi viabilizado através do recurso ao esquema de cooperativa. Os artistas participantes formam um grupo, o Brazil Diversity Collective, e as criações se tornaram possíveis graças a recursos próprios. A ambição do espetáculo é muito positiva – “quebrar os estereótipos de como as pessoas de minorias sexuais e de gênero são retratadas no palco e também quebrar os estereótipos de como o Brasil é visto no Reino Unido.”
Arte e ativismo cercam a escolha dos textos, o desenho das personagens. A galeria de tipos é bem variada. Desfilam em cena uma jovem mulher dos anos 1960 casada e com filhos que não consegue esquecer sua amada; um casal gay envolvido numa situação bizarra, pois após uma noite divertida, eles são obrigados a se casar; há uma travesti gorda vitrine dos nossos mais cruéis preconceitos quanto ao corpo do outro; uma flor que discursa à raça humana em nome da diversidade que é própria da natureza; um homem que não se pensa como preconceituoso, mas perde o sono ao descobrir um caso de amor secreto entre duas senhoras; uma pessoa que ganha na justiça o direito de não ser homem e nem mulher; um homem que mata o outro por homofobia e perde sua sanidade e ainda um rapaz gay que se descobre queer.
Na verdade, no Brasil, o país que mais mata LGBT no mundo, o projeto ainda tem bastante campo de trabalho e espaço de argumentação social. E a pergunta provocadora surge inevitável – na Praça Mauá, centro tradicional de boêmia e de transgressão da cidade, o projeto ficaria muito bem abrigado.
Deveria haver um espaço generoso para este debate, no interior do Centro Cultural A Noite, ali no prédio histórico que pretendem liquidar apressadamente, sem atentar para os sonhos cariocas com a vida de cultura e sem ligar nem um pouco para a história da cidade. São Sebastião nos proteja, olhai por nós, pois as flechadas não param de nos acertar.
Brazil Diversity – LGBT+s short plays
O espetáculo apresenta 8 peças curtas que revelam um Brasil muito além do samba e do futebol.
Dias 10 e 11 de junho de 2018, às 19h
Theatre503
503 Battersea Road, Londres SW11 3BW
Tel: 020 7978 7040
Você pode seguir o espetáculo nas redes @brazildiversity
Os ingressos já estão a venda no site do teatro: https://goo.gl/oxG7Fx
No programa:
Inscription in the Sand (Inscrição na Areia), de Mila Teixeira
Lilian tenta quase diariamente reconstruir a narrativa de seu romance com Helena. Ela decide gravar uma explosão e enviá-la para sua amante, lembrando da época em que eles estavam juntas.
Diretor: Marcia Zanelatto
Com: Fernanda Mandagará
Genderless – an outlaw body (Genderless – um corpo fora da lei), de Marcia Zanelatto
Em 2010, depois de travar uma luta contra o Estado da Austrália, Norrie May-Welby tornou-se a primeira pessoa no mundo a ser reconhecida como tendo “um gênero não específico”. Partindo desse fato, a peça faz uma reflexão poética sobre os gêneros masculino e feminino e o conflito entre identidades sexuais e estruturas sociais.
Diretor: Chryssanthi Kouri
Com: Najla Andrade & Annie Brett
Homo Phobia (Homo Phobia), de Rogerio Correa
Lad Max ataca Jeremy com ofensas homofóbicas, mas ele responde à violência beijando Max nos lábios. Max perde o controle e acaba matando Jeremy. Enquanto a investigação policial ameaça pegá-lo, os pesadelos sexuais contínuos fazem com que a sanidade de Max se rompa.
Diretor: Pedro de Senna
Dramaturga: John Jack Patterson
Com: Will McGeough & Bryan Carvalho
Mandatory Marriage (Casamento Obrigatório), de Candida Sastre
Depois de uma noite, dois gays são forçados a se adaptar à sociedade. Nesta comédia absurda, os gays serão respeitados, mas algumas regras devem ser seguidas. Há um preço a ser pago.
Diretor: Andre Pink
Atores: Pedro Casarin, Bryan Carvalho, Almiro Andrade e Will Jarvis.
Dona Irene (Dona Irene), de Luis Benkard
A sexualidade dos outros gera desconforto e auto-questionamento em um homem hetero.
Diretor: Aydan Wilder
Com: Peter Losasso
Ofelia, The Fat Transsexual (Ofelia, a travesti gorda), de Helena Vieira
Ofelia, uma mulher trans fala com o público sobre seu relacionamento com seu corpo enorme.
Diretor: Emma Frankland
Com: Mzz Kimberley
Venus Flytrap (Flor Carnívora), de Jô Bilac
Uma flor fala à raça humana em nome da diversidade que é intrínseca à natureza.
Diretor: Victor Esses
Ator: Jonny Woo
Majestic Pink Dream (Sonho Alterosa), de Caio Riscado
Majestic Pink Dream é uma investigação cênico-científica-performativa-travesti-bizarra, embaçada pela tensão que emerge do encontro de dois universos: o ambiente dos contos de fada e a resistência dos queer efeminados.
Diretor: Luis Benkard
Com: Almiro Andrade
Cenários: Luis Benkard
Figurinos: Laura Arantes
Designer gráfico: Daniel de Jesus
Fotografia: Ana Pepino
Video: Aydan Wilder
Social Media: Juliana Mattar
Realização: Brazil Diversity Collective