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Poeira de estrela ao nosso redor

 

Asemana começou sob o signo da dor: o adeus a uma grande estrela é sempre um mergulho na sensação de que, sem ela, ficamos menores e piores. Tônia Carrero partiu e com ela seguiu uma fortuna cultural imensa, muito variegada, um mundo do teatro impactante, uma história de mulher sensacional. E mais: desaparece agora também um jeito de ser carioca, talvez em boa parte o jeito de ser carioca. Dói fundo na gente, porque sabemos que a parte perdida contava muito e é irrecuperável.

 

A morte abriu o baú das lembranças e várias histórias deliciosas circularam sobre a lenda viva que foi a atriz irresistível. Além da carreira de elevada voltagem artística, Tônia Carrero foi uma mulher exuberante, alegre, iluminada, senhora de uma presença arrebatadora em qualquer roda social, numa época em que o Rio era a roda social do país. Conviver com ela era sempre oportunidade certa para saudar a alegria, flertar com as emoções mais positivas da vida. E entristece a todos os amantes do teatro constatar que a sua morte acontece num momento em que um estranho ciclo parece estar se fechando – em 2016, a cidade perdeu a Sala Tônia Carrero, no Leblon, enquanto o teatro, se não está andando para trás, está estagnado.

 

Algum segredo da geração moderna, uma turma capaz de fazer excelente teatro pago com a bilheteria, parece ter sido perdido. O teatro não tem o poder do carnaval, máquina de pressão bastante curiosa, eficiente ao ponto de fazer o prefeito assinar os documentos mais insanos, a favor de decisões no mínimo antipáticas, para a visão da população. Neste andamento, o teatro vegeta e confesso não ter visto nos jornais, salvo erro meu, qualquer manifestação de luto, dos políticos agora no poder, em honra da grande deusa da cena carioca.

 

Mas nos teatros, foram incontáveis as homenagens, aleluia. E foi bonito ver a sua partida justo com a chegada ao Rio da montagem de A visita da velha Senhora, de Dürenmatt, papel que ela defendeu com brilhantismo. É a Semana da Mulher, digamos, são os dias que antecedem O Dia Internacional da Mulher, não dá para ficar indiferente, pois a engrenagem do mundo, finalmente, tem girado a favor do sexo frágil. Talvez se pudesse definir algo importante a partir desta expressão discutível – sexo frágil.

 

Tônia Carrero lidou intensamente com este limite: era bonita de cegar, era livre, era politizada, era inteligente, culta, irreverente e senhora de um humor cáustico. Nela, o princípio feminino vivia pleno, em estado de absoluta liberdade. Por isto, após a sua formação e a convivência com mentores iluminados, como o diretor e depois seu marido Adolfo Celi, a partir do diálogo com intelectuais de primeira linha, a atriz soube fazer escolhas de elevada qualidade. Titulou companhia, liderou uma linha de produção dinâmica e desenhou para si um belo repertório, com grandes textos e reviravoltas, escolhas surpreendentes.

 

Talvez esta tenha sido a sua lição maior: a garra para lutar por seus sonhos, a altivez para apostar nas suas escolhas, a veemência para botar o seu bloco na rua. Nunca se deixou intimidar – verbo fácil de ser conjugado pelas mulheres. E foi uma grande mulher forte brasileira, nesta terra de grandes mulheres fortes.

 

A semana reforça a lembrança dela, ao registrar um poder feminino crescente na cena carioca. São três estreias de peças de autoria feminina na mesma semana, o que não é um dado para esquecer. Caos, de Rita Fisher, leva ao Teatro Serrador, no horário alternativo, a experiência da narratividade, graças à transposição de contos da autora para palco.

 

Cavar um buraco não ver o buraco, de Maria Isabel Iorio, poeta e artista visual, lida com a questão do deslocamento, da colonização, a partir do olhar feminino – são quatro personagens em cena – e a busca é exatamente focalizar a narrativa feminina, até mesmo o corpo feminino. O local de apresentação é inovador, o Galpão Ladeira das Artes, no Cosme Velho, com um horário diferenciado – apenas as sextas e sábados.

 

A terceira estreia surpreende ainda mais: é pura ousadia. A experiente Marcia Zanelatto assina A Peça Escocesa, forma supersticiosa de fazer referencia a Macbeth. Trata-se de um estudo ao redor de temas quentes do momento – jogos de poder, ambição, cobiça – envoltos por muita música, um tanto como se fosse uma óperapop.

 

Para não dizer que, ao falar de mulheres, o foco exclusivo é positivo e dedicado às forças avançadas de mudança, uma reestreia oferece a visita ao lado fútil, sombrio e alienado, mas é para rir. A peça Lifting – uma comédia cirúrgica, de Felix Sabroso, sob a direção de Cesar Augusto, novo cartaz do Teatro SESI, é uma crítica à vertigem de tratamentos e ao pânico da velhice, procedimentos capazes de banir a inteligência do cotidiano feminino em prol de uma busca patética por uma mocidade que já não existe e – afinal – está perdida para sempre.

 

Viver sem medo de enfrentar os limites, enfrentar barreiras, ousar duelar com os poderes do tempo, tencionar as formas da vida, abraçar os desafios mais arriscados são atitudes que podem, sim, estruturar o universo feminino – Tônia Carrero por certo tratou disto por toda a sua vida. E não é outra a atitude de Patricia Selonk, uma das maiores atrizes brasileiras atuais, ao enfrentar Hamlet, de Shakespeare, excelente montagem da Armazém Companhia de Teatro que volta para rápida temporada, de 9 a 18 de março, no Espaço Armazém da Fundição Progresso.

 

Mas não é tudo – a marcha não fica por aí. As mulheres estão a mil, movidas por intensa vontade de fazer e dispostas a passar a limpo – e a ferro – as suas próprias trajetórias existenciais. De certa forma, este é o mote do espetáculo Isso vai funcionar de alguma forma, criado, dirigido, encenado e representado por mulheres. A cena traz uma potência de inovação admirável: a partir da idealização e da coordenação artísitica de Dominique Arante e Rúbia Rodrigues, foi desenvolvida uma prática coletiva e compartilhada de autoria, direção, concepção da cena e interpretação. O espetáculo resultante, em cartaz a partir do dia 9 de março, no Oi Futuro do Flamengo, revela o encontro criativo de 16 artistas de diferentes linguagens – e registra a multiplicidade de vivências que a simples menção do gênero nem sempre deixa entrever ou imaginar.

 

Enfim, importa ressaltar esta efervescência, esta presença intensa da mulher no teatro de hoje. Sim, existe uma discussão longa a respeito do poder e da influência da mulher no teatro nacional. Sempre se fala em Estela Sezefreda, a genial atriz que ficou na sombra, mas foi uma força decisiva para a construção do monumento João Caetano. Insinua-se que o nosso palco é um matriarcado. Será? Tenho dúvidas. Quer dizer – é bastante provável que o teatro brasileiro tenha sido sempre um lugar confortável, de expansão e de respiração para as mulheres. Mas nada comparável ao que acontece hoje – é preciso destacar.

 

Pois, para a sociedade, as atrizes não eram exatamente as moças ideais; por bastante tempo, as atrizes e as prostitutas eram identificadas pela polícia com a mesma carteira e a mesma exigência de exame de saúde. Tenho em meu poder uma carteira da polícia que pertenceu a Itália Fausta. Mais de uma vez Tônia Carrero comentou a ousadia que era uma moça de bem se inclinar para o palco e sabe-se que muitos nomes artísticos foram necessários para esconder a família – ou se esconder da família.

 

Herdeiras de Tônia Carrero? Sim, sem dúvida, somos todas herdeiras de Tônia Carrero. Até por um colorido especial: linda, muito bonita mesmo, de família de classe média bem resolvida, Tônia Carrero não precisava do teatro, apesar de sua necessidade existencial de arte. Mas o teatro precisava dela. Ela mergulhou fundo, ela nunca se furtou – esteve a cavaleiro da cena por toda a vida. A vontade livre de fazer é uma força contagiante, é a mais bela herança.

 

Aos poucos a cena carioca recomeça a aquecer, ainda que o ritmo esteja lento e as produções, na sua maior parte, tenham dimensões modestas. Vale ir ao teatro conferir – esta semana, sob a benção da deusa Tônia Carrero, o palco vai pular as entrelinhas, não vai economizar nas graças sutis que celebram o poder da mulher.

 
Cavar um Buraco Não Ver o Buraco
Dramaturgia: Maria Isabel Iorio Direção: João Pedro Madureira e Maria Isabel Iorio
Elenco: Andressa Lee, Júlia Horta, Katerina Amsler e Nathalia Gastim
Preparação corporal: João Pedro Madureira
Direção de arte: Nathalia Gastim
Iluminação: Julia Horta
Instalação cênica: Igor Abreu
Figurino: Nathalia Gastim
Local: Galpão Ladeira das Artes (Rua Conselheiro Lampreia, 225 – Cosme Velho)

 
A Peça Escocesa
com CAROLINA PISMEL, PAULO VERLINGS e BANDA DAGDA
Direção e concepção PAULO VERLINGS / texto MARCIA ZANELATTO / direção musical RICCO VIANA
cenário MINA QUENTAL / figurinos FLAVIO SOUZA / visagismo VINI KILIESSE / iluminação TIAGO e FERNANDA MANTOVANI
Local: Teatro da CAIXA Nelson Rodrigues – Av. República do Chile, 230, Centro, Rio de Janeiro
(Entrada pela Av. República do Paraguai / próximo ao Metrô e VLT Estação Carioca)

 
Isso Vai Funcionar de Alguma Forma
Idealização e Coordenação artística: Dominique Arantes e Rúbia Rodrigues – Grupo BARKA
Dramaturgia: Renata Mizrahi; Dominique Arantes; Keli Freitas de Daniele Ávila Small
Direção Cristina Moura, Denise Stutz, Inez Viana e Rúbia Rodrigues
Elenco: Amanda Mirásci, Dominique Arantes, Mariana Nunes, Larissa Siqueira e Vilma Melo
Local: Oi Futuro (R. Dois de Dezembro, 63 – Flamengo) (21) 3131-3060