High-res version

Carnaval, teatro, livros velhos e teatro futuro

Temporada de choques inusitados. De repente, uma saraivada de surpresas nem tão agradáveis, ainda que com a garantia de preservação do bom humor. Era carnaval. Ou é carnaval, pois ele persiste ainda em pauta. Felizmente, até o fim da semana, ele acaba.

Algum leitor folião haverá de estranhar a opinião esquisita repentina de desagrado frente aos tradicionais folguedos do país. Pois é. Não, eu não mudei, continuo doida por carnaval, fã inveterada das escolas de samba, carnavalesca. Mas eu não vivo disto, não faço comércio, portanto o meu amor é puro e precisa ser preservado…

Se a atmosfera se torna venenosa, recolho o bloco e fico quieta. Não cheguei nem mesmo a acompanhar pela televisão. O pouco que eu vi, lances esparsos, me fez acalmar e constatar que a festa continua linda, segue o baile. E que algumas notas preciosas persistem vibrando, para a felicidade geral da nação. Danação mesmo…

A danação acontece porque a cidade do Rio de Janeiro está sambando, sorrindo, mas já ultrapassou o ponto crítico de saturação. Portanto, ir para a rua pode ser uma aventura desagradável nos dias atuais – chuva, precariedade das construções públicas, águas sem potabilidade, desordem de serviços… e segue a lista.

Longe dos riscos, busquei apenas registrar alguns elementos sonantes para o inventário da festa, sob o meu ponto de vista. Há um debate fundamental no carnaval, a relação entre teatro e carnaval, a cada ano mais premente por causa das transformações do teatro e do carnaval. A discussão mais central gira ao redor do conceito de performance.

A palavra é escorregadia – mas, para o teatro atual, ela tem um alcance preciso, importante, pois o seu núcleo significante aponta para a necessidade do teatro acontecer com um grau razoável de apresentação, em vez de representação. Presença, digamos.

A diferença entre os dois conceitos é enorme, muito embora não se possa dizer simplesmente que esta diferença é de agora, contemporânea. Na verdade, ela existe há bastante tempo, quem sabe desde a Grécia. Talvez ela integre a alma do teatro, possa ser definida como uma dualidade fundante da arte.

Por exemplo – se pensarmos em duas atrizes bem diferentes, Nathalia Timberg e Dercy Gonçalves, podemos situar o tema de forma clara. São duas atrizes notáveis, intensas, preciosas. E muito distantes, diferentes nos procedimentos de arte que agenciam.

Em Nathalia há um sentimento interior, um fluxo latente construído a partir do texto que precisa acontecer na sua completude. Ele brota, se expõe, numa comunicação sublime inclinada a falar de interiores. Nathalia irradia, transcende, traz a sua alma.

Dercy, ao contrário, vivia da exterioridade, da atmosfera da sala, da interação imediata com a plateia. Ou da interação com uma idealização da plateia, que ela construiu com a sua experiência. No caso da televisão, ela falava com a ideia de público construída nos embates teatrais. Dercy expunha, narrava e impunha.

A questão é – em que pé está o teatro hoje? Vivemos na atualidade uma realidade híbrida. Não se pode dizer que exista um princípio de representação ultrapassado, mas há uma pressão para o relato, a apresentação, sobre a força da representação.

Para o teatro de hoje, o ato de dar a ver, de dialogar diretamente, o ato de expor, enfim, se impõe de forma muito contundente no trabalho do ator. De certa forma, é como se o ator não entrasse em transe, em comunhão com forças expressivas profundas, mas antes refletisse de forma direta uma realidade de arte exterior, negociada. A distância entre o artista e o público tende a ser encurtada.

A relação com o carnaval ilustra bem o debate. No sambódromo, o folião, ao desfilar na passarela, se diverte com o ato do desfile e trata de mostrar a sua diversão para a plateia. Ou um pouco mais além: o folião autêntico está ali com o dever de brincar e de contar algo da sua escola. Ele se apresenta e narra.

Assim, as cenas teatrais incorporadas pelas escolas de samba surgem sob uma tessitura muito precisa. Elas têm a obrigação de passar com clareza algo que a escola precisa dizer, sem ficar no subtexto ou se sujeitar à interpretação livre. Importa ser objetivo, dar o recado.

Esta condição de teatralidade, um tanto recente nos desfiles, aparece decididamente nas comissões de frente, cuja função, outrora, era apenas a de apresentar a agremiação e pedir passagem. A primeira mudança no perfil das comissões das escolas  surgiu com o recurso à coreografia e aos efeitos corporais.

Hoje, as comissões têm uma função narrativa crucial. Elas precisam de imediato contar o que a escola pretende fazer na avenida ou indicar o caminho que será seguido. E sim, elas precisam mostrar a identidade da escola.

Um exemplo interessante, nesta ótica, pôde ser visto na performance da comissão de frente da Portela, dirigida por Carlinhos de Jesus. O objetivo era apresentar os Tupinambás, primeiros habitantes do Rio de Janeiro, revelando o ritual antropofágico seguido por eles.

Apesar de alguma falha técnica na luz da fogueira, a apresentação alcançou notável grau de teatralidade – o fato cru do canibalismo surgiu na avenida sem meandros ou confetes, simples reconhecimento do dado histórico. Quer dizer, o teatro foi para valer, sem buscar dourar a pílula, espalhar confetes.

Na sequência, a apresentação do casal de mestre-sala e porta-bandeira da Portela inovou ao seguir um colorido teatral, distante da tradição do bailado do casal. A escolha sugeriu a passagem do realismo da antropofagia para a visão simbólica, paradisíaca, que os indígenas teriam de si.

Sob as saias da porta-bandeira grávida, o mestre-sala trazia para o mundo um bebê indígena, para viver no paraíso guanabarino. A partir daí, a escola mergulhou no tom lírico de descrição do universo indígena, segundo a visão que possuíam de si.

Na comissão de frente do Salgueiro, o  recurso à teatralidade foi ainda maior. A escola optou por um enredo ultra-teatral, a história do genial palhaço Benjamin de Oliveira. A performance da comissão, assinada por Sergio Lobato, apresentou uma visão resumida da vida de Benjamin, mas sob uma trama bastante intrincada, um tanto difícil de ser desvendada pelo público à distância.

Sob uma concepção luxuosa, linda mesmo, era contada a história de um menino pobre vendedor de balas na porta do circo que, convidado a entrar, se transformava no grande artista. A ideia não é exatamente nova, mas a apresentação aconteceu sob uma aura de magia, elegância e sonho excelente para o desfile.

Muitas outras notas teatrais povoaram a avenida. A história de Elza Soares, na Mocidade Independente, também da pobreza do pé no chão e da lata d’água para o estrelato, foi desenvolvida com eficiência, sob um tom de alto astral carnavalesco, na comissão de frente.

Já a comissão de frente da Unidos da Tijuca, com várias falhas técnicas, seguiu uma linha muito confusa. A encenação juntou como antagonistas Leonardo da Vinci e a moderna arquitetura, na disputa por lápis-humanos-pretos-vestidos de led. No fim, os lápis, coloridos de luz, deveriam compor um chafariz, aliás aquele ali da Praça Monroe (Mahatma Gandhi). E a derrota de Leonardo ficava confusa, pois o chafariz nem é modelo de modernidade.

Um outro caso muito interessante marcou o desfile da Viradouro, dedicado às Aguadeiras de Itapuã, com uma comissão de frente concebida por Alex Neoral. A combinação de dança, teatro e até performance aquática alargou bastante o espectro de atuação da comissão, ainda que tais efeitos também já tenham sido usados em vários carnavais.

Quer dizer, o tema, afinal, se revela bastante extenso para tratar aqui.  Mas merece atenção. Se, em horas ociosas, o leitor buscar na internet desfiles de 15 ou 20 anos atrás, poderá se surpreender com as mudanças e continuidades  do carnaval.

Graças às gravações antigas, vai deparar com a constatação de que houve, de lá para cá, um notável processo de expansão do teatro nos desfiles. E mais: irá constatar como o carnaval possui um alfabeto, uma linguagem e uma fortuna de procedimentos que se prolongam ao longo dos anos.

Nenhum carnavalesco parte do grau zero da invenção. Um exame acurado das fantasias e dos carros alegóricos traduz como eles possuem estruturas contínuas de concepção. Existe um formato fantasia, um formato carro, um formato adereço – ele vai se modificando com o tempo e as intervenções.

A existência deste acervo tem extrema importância e devia merecer muitos estudos. Em boa parte ele explica a possibilidade do carnaval acontecer a cada ano, na sua proporção monumental e, ao mesmo tempo, um tanto espontânea, improvisada, anárquica.

O acervo viabiliza também a transformação do teatro em samba, afinal o que acontece nas atuais comissões de frente. Do folião que se mostrava, buscava surpreender e se divertir com as reações do outro, surgiu um outro lugar de arte, local, nacional, que deveríamos buscar conhecer melhor.

O tempo passa – a fabulosa história do nosso carnaval um tanto se perde de nós, se não procurarmos fixar com acuidade os seus caminhos. A percepção de nossa trajetória no tempo amplia a nossa capacidade para entender o mundo.

Aproveitei o carnaval para vasculhar estantes distantes de livros velhos. Explorei sobretudo um livreiro português encantador, especializado em livros e manuscritos raros. Encontrei um volume  precioso, muito curioso, de 1825 – Novo Divertimento para Meio Quarto de Hora, de José Daniel Rodrigues da Costa. Segundo o livreiro, a obra reúne 16 sonetos e no prefácio o autor lamenta a perda de qualidade da literatura portuguesa no seu tempo.

Porém, o melhor do livro, para nós, ainda segundo o resumo, estaria em quatro sonetos, nos quais o autor critica o comportamento dos brasileiros. Ele fala da cruel anarquia da América. E pergunta onde estão as chulices e o batuco do Brasil. O registro assegura: nossa fama de batuqueiros vem de longe, é fato histórico consolidado.

No brinde ao carnaval, mesmo distante da folia, fiapos de lembranças do passado podem ser reunidos para sugerir caminhos novos para o teatro. Se somos conhecidos desde o nascimento do país como batuqueiros e transgressores, talvez fosse hora de assumir e levar esta força para o palco, para propor algo novo.

Um espetáculo denso como Negra Palavra Solano Trindade, cartaz recente do Teatro Poeira que, aliás, deve retornar em breve à cena, lida diretamente com estas discussões. Lá, a condução da cena se faz a partir de uma simbiose impactante entre a palavra/poesia e a corporeidade/beleza cênica.

A direção de movimento de  Orlando Caldeira é uma revolução cênica. A partir da força, da expressividade, da intensidade e da potência dos corpos, o espetáculo acontece em comunhão sublime com o roteiro poético.

Arte negra brasileira de absoluta intensidade, emocionante, a peça está ali, mergulhada nos temas de linguagem que precisamos considerar na nossa vida cultural. Se existe, portanto, uma necessidade do teatro no carnaval, a pátria dos batuques, devemos perguntar sobre a necessidade do carnaval nos palcos.

Tudo indica que não adianta tentar fugir, estamos condenados a este lugar tão nosso, tão corporal e tão expressivo. Portanto, segue a valsa: é melhor assumir o carnaval. Quer dizer: se não há como fugir, desde sempre ele estará ao redor de você, a negociação se faz intensa, mas simples: vamos ampliar o espaço dele palco.

Serviço:

PRESTE ATENÇÃO PARA NAO PERDER OU PARA REVER QUANDO VOLTAR AO CARTAZ

Poesias de Solano Trindade

Direção Geral de Orlando Caldeira e Renato Farias

Roteiro: Renato Farias

Elenco: Adriano Torres, André Américo, Breno Ferreira, Drayson Menezzes, Eudes Veloso, Leandro Cunha, Lucas Sampaio, Orlando Caldeira, Rodrigo Átila e Thiago Hypólito

Direção Musical: André Muato

Direção de Movimento: Orlando Caldeira

Direção de Atores: Drayson Menezzes

Assistente de Direção: Thati Moreira

Direção de Arte: Raphael Elias

Assistente de Arte: Uirá Clemente

Figurino: Isaac Neves

Iluminação: Rafael Sieg

Comunicação Visual: Juliana Barboza

Videomaker: Thiago Sacramento

Fotografia Artística: Thiago Sacramento e Leandro Cunha

Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação

Direção de Produção: Eudes Veloso

Produção Executiva: Thati Moreira

Idealização: Renato Farias

Produção: Saideira Produções

Realização: Coletivo Preto e Companhia de Teatro Íntimo

Classificação: 12 anos

Duração: 60min

TEATRO POEIRA – 14 JAN a 19 FEV – TER a QUA 21h