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A alma desliza pelos dias sob a forma de poesia, quando o seu motor é o samba. O fato, se não tem ainda comprovação cientifica, conta com atestado de vida irrefutável:  para conferir, basta levar o coração para ver Ismael Silva – Professor Samba. O novo cartaz do Teatro de Arena do Sesc Copacabana é exatamente isto. 

A montagem, do texto assinado por Ana Veloso até a cena circular, dançante, dirigida pela autora em parceria com Edio Nunes, é o que se pode chamar de peça-relicário. Quer dizer, busca fazer um registro requintado da alma-poesia do grande sambista.

As peças-relicário são construções delicadas, miúdas, tecidas com filigranas dos sentimentos mais finos, pensadas para envolver quem olha, tocar os corações e, assim, erigir altares de emoções sociais. São especialmente indicadas, no caso brasileiro, para iluminar temas fundamentais da história da sociedade, mas que foram esquecidos ou jogados para o escanteio da vida. 

No caso em pauta, o foco recai sobre a história do samba, mais exatamente o seu nascimento no bairro do Estácio, abençoado em particular pelo gênio de Milton de Oliveira Ismael Silva (1905-1978), biografado em cena. Grande entre os grandes, ele conviveu – e por vezes liderou – uma turma de personagens de primeira grandeza da história musical carioca. 

Milton Filho, Edio Nunes e Jorge Maia – Foto Ernani Pinho.

Uma nota dissonante nasce de sua história, atravessa o texto e faz vibrar os seres da plateia: apesar do samba ter se tornado, segundo alguns, a coluna vertebral do maior espetáculo da terra, o desfile carioca das escolas de samba, um dos seus maiores inventores nunca teve a sua grandeza plenamente reconhecida, à altura de sua trajetória poética. A peça é parte de um esforço, ainda pequeno, para mudar o quadro de injustiça brutal.

Ismael Silva nasceu preto e pobre. Dotado de uma genialidade espantosa, não conseguiu ultrapassar os limites do gueto social de origem. Órfão de pai muito cedo, contou com a força de uma mãe guerreira para sobreviver e encarou de frente as tormentas geradas pela pobreza.

Gênio, espírito criador privilegiado, tornou-se figura de destaque na vida boêmia do Estácio e da Lapa e inventou a escola de samba, refúgio natural da comunidade, pois ele próprio não pode ir além do ginásio na escola convencional. Portanto, ao lado da alegria e da verve da festa de rua, carnavalesca, há um traço de dor à flor da pele, persistente entre nós até hoje.  Marginalizado, cercado por preconceitos, obrigado a vender as suas músicas para sobreviver, Ismael Silva ecoa nos corpos pretos até hoje. 

Neste encontro incandescente da poesia com a negritude e a histórica violência social brasileira, os atores, gente preta sofrida de hoje, se projetam. Povoam a cena como atores e personagem, irmanados na mesma ciranda de redução humana. Para Edio Nunes, Milton Filho e Jorge Maia a vida dedicada à arte também é uma batalha cotidiana dilacerante.

Contudo, se Ismael Silva poderia ser, na avenida colorida de hoje, barrado como intruso ou penetra, o trio de atores espetaculares se apresenta com senhorio absoluto da cena. Vozes sonoras, corpos sinuosos, gestos dançantes, eles tramam um caleidoscópio humano comovente e arrebatador. E bem humorado. Assinam um espetáculo imperdível: nem pense em deixar de ver. A alegria de viver cara ao povo está lá, destilada com alto grau de pureza.

Apoiados pelo método coringa, eles alternam a apresentação do protagonista, recurso hábil para ilustrar as múltiplas facetas do sambista e a refinada arte dos atores. A figura de Ismael Silva se dilata, a cena se revela um encontro de potências criativas dançado com maestria. Ismael é todos e cada um. 

Ao mesmo tempo, os atores trazem à cena a bela procissão de contemporâneos, da família aos parceiros de vida e de rua, com nuanças delicadas de gestos, algum traço do figurino, leves inflexões. O figurino de Wanderley Gomes contribui muito para o jogo; sob a luz funcional de Paulo Cesar Medeiros, ele desfila despojado, mutante e intercambiável, qualidades estas extensivas ao cenário, também assinado por ele. 

As canções brotam da cena como se fossem um estado natural das situações dramáticas, feito notável conquistado pela direção musical de Wladimir Pinheiro. A execução cabe a uma equipe musical de mestres da arte – Leo Antunes, Fabio D’Lelis, Marlon Julio, Marcos Passos. Vale prestar atenção aos diferentes efeitos sonoros registrados, uma cartilha esperta das artes do samba. 

O resultado é muito simples: a plateia flana ao redor, arrebatada; canta junto, palpita no compasso do jorro poético. No final, apoteótico como não poderia deixar de ser, o samba toma conta do espaço. Um compromisso a um só tempo sério e sentimental baila no ar.  Aqueles que amam sambar nas ruas e se lançam na dança no teatro partem com a lição número um da escola de samba: não deixar a memória deste gigante da arte brasileira morrer. Pois precisamos de verdade, afinal, reconhecer a nossa identidade mais profunda, a nossa habilidade rara para transformar almas em poesia, o grande segredo desta força criativa chamada samba. Muito desta arte, foi Ismael quem criou…

Ficha técnica:

Professor Samba – Uma homenagem a Ismael Silva

Idealização e coordenação artística : Edio de Nunes

Texto: Ana Veloso

Direção: Ana Veloso e Edio Nunes

Direção Musical: Wladimir Pinheiro

Elenco: Edio Nunes, Jorge Maia e Milton Filho

Desenho de Luz: Paulo Cesar Medeiros 

Cenário e Figurino: Wanderley Gomes

Desenho de Som: Thiago Silva 

Músicos: Leo Antunes, Fabio D’Lelis, Marlon Julio, Marcos Passos

Músico Alternante: Felipe D’Lelis

Ass. De Direção: Caio Passos

Ass. De Iluminação: Boy Jorge

Operadora de Luz: Yasmim Lira

Operador de Som: Diogo Perdigão

Microfonista estagiária: Ana Bittencourt

Designer Gráfico: Rômulo Medeiros

Fotos: Ernani Pinho

Cenotécnico: Beto de Almeida

Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa

Mídias Sociais: Milton Filho e Leandro Melo

Direção de Produção: Leandro Melo

Produção: L&T Entretenimento

Serviço:

Temporada: de 19/09 a 20/10/2024 

Quinta a domingo – às 20h

Em virtude das eleições 2024 não haverá espetáculo no período de 03 a 06/10.

Teatro de Arena do Sesc Copacabana

R. Domingos Ferreira, 160 – Copacabana

Ingressos somente na bilheteria 

Telefone:  (21) 4020-2101

Duração: 80 Min.

Classificação: 14 anos.

Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)