O teatro e o pensamento alado
Nos tempos quentes, as ideias evaporam, voam pelos ares. Não consigo ficar indiferente, nem alheia ao fervilhar dos cérebros. Em consequência, fui parar em Roma. Mas não exatamente na agitada capital italiana de agora: fui parar na próspera urbe do belo Augusto.
Em verdade, vos digo, nem sei se ele seria exatamente um tipo afinado com a minha definição de homem bonito. Sim, sei muito bem da potência italiana – não só romana – para doar ao mundo belos exemplares do sexo oposto. A Itália é pródiga em homens bonitos. O problema, no fim das contas, nasce do fato de Augusto ter sido um homem muito controvertido.
Por exemplo? Ele alegou sonhar com a restauração da pureza republicana e, no entanto, criou o Império – foi o primeiro imperador romano. Tal significa um emaranhado de discussões, com a ameaça de esquentar mais ainda as cabeças, em lugar de esfriar as ideias…
O meu voo, porém, não ofereceu qualquer perigo. Fui apenas acompanhar uma palestra, no Ciclo Conferenze Classica, da professora Maria Antonietta Ligio, atividade on-line da Università del Piemonte Orientale. O tema da palestra, apesar de muito especializado, apresenta um perfil irresistível para quem gosta de teatro, se engaja, também, no pensamento a respeito da história das mulheres e das origens da liberdade humana: ela falou sobre a Lex Iulia de adulteriis coercendis. Não, calma, não é nada complicado. Apenas uma tentativa legal para combater o adultério.
A lei criada pelo imperador Augusto (63 a.C.-14 D.C.) por volta de 18 a.C. pretendeu disciplinar o adultério, relacionado, então, a outros crimes – incesto, estupro e lenocínio. A relação podia existir por causa da condição social da mulher, vista como inferior. Não é o caso de expor aqui a intrincada trama que na época envolvia a situação e chegava até a aproximar adultério e lenocínio… Considere-se apenas aquele truísmo regente de todas as pesquisas: ninguém proíbe algo que não acontece. Então, o adultério grassava.
Para resumir o caso com olhos atentos aos interesses do nosso tempo, dois fatos muito curiosos surgem do estudo da lei. O primeiro é justamente a impressionante menoridade social feminina, pois a mulher vivia subjugada pelo pai e pelo marido. Ainda assim, várias mulheres ricas ou bem nascidas desfrutavam de grande poder na sociedade e, graças a este poder, conseguiam agir em acordo profundo com os seus desejos, fosse qual fosse a lei tirânica sobre as suas cabeças.
Explique-se: Roma, conquistadora do mundo, comandava um vasto império e as riquezas abarrotavam os cofres. Nas classes mais elevadas e muito ricas, os casamentos se tornaram negócios bem urdidos, com frequência pactuados na infância. Consequentemente, o adultério se propagou, virou uma espécie de necessidade cotidiana. Acrescente-se ao fato as campanhas militares frequentes, impondo longas retiradas ou a morte dos maridos. E estava arrumada a cama para o pecado.
O problema mais grave nascia do fato da justiça variar, na sociedade, de acordo com a situação social do culpado, algo bem diferente do que vemos hoje, não?? Existiam as classes inferiores, sujeitas, sem hesitação, à pena de morte, caso levantassem os olhos (ou algo mais) para a gente mais rica. Já as classes ricas, conheciam punições menos fatais, como o confisco de bens, prisão, exílio forçado.
As mulheres, contudo, ainda que matronas ricas, podiam chegar a receber penas bem rigorosas – caso uma esposa cometesse adultério e fosse surpreendida pelo próprio pai, poderia ser morta por ele, junto com o amante. A filha de Augusto, Giulia Maior, uma mulher, digamos, saltitante, segundo os autores da época uma adúltera afiada, acabou a vida punida severamente pelo pai e definhou no exílio. Contudo, a pobre teve escola, desde a infância figurou nos arranjos políticos do pai, em casamentos de conveniência política.
Agora, vale o destaque: as classes inferiores incluíam prostitutas, atores, atrizes, dançarinas… Se o amante fosse de classe inferior, a coisa ficava muito séria. Mas, se o crime fosse entre eles, a teia descomplicava. Segundo a professora Maria Antonietta Ligio, várias foram as reações dos contemporâneos diante da lei, desde a aprovação, forte em Horácio, até a zombaria requintada, em Ovídio. E aconteceu mesmo de mulheres de projeção se autodeclararem prostitutas, o que as distanciava das garras afiadas da legislação.
Sim, pode parecer uma divagação herege nestes tempos de tanto engajamento pio. A atmosfera ordena a reza excludente: repitam as cartilhas do dia, nada de dispersão. Entretanto, olhando para o percurso do pensamento que foge do presente constrangedor e passeando os olhos pela história, talvez seja obrigatório constatar a existência de uma busca humana sem tréguas, a busca pelo paraíso, por aqui mesmo. Se, para muitos, o ato de rezar cumpre esta função, para outros tantos, mergulhar nas agitações da carne traz uma felicidade única, incomparável com todo o resto. Outros tantos, infiéis irrecuperáveis, deixam as ideias correndo soltas para o pleno mar e nem se abalam com a irritação dos escravos do porto.
Desenvolver tais pensamentos importa por aqui, do lado debaixo do Equador, nestas terras tropicais propensas a inspirar a criação das fantasias mais aceleradas que a espécie concebeu. Sem dúvida, navegar tais mares nos permite conhecer um pouco mais da nossa identidade. Se os mares, revoltos, não espelham o que somos efetivamente, no mínimo apontam as praias em que desejaram nos ancorar.
O gesto tem lastro teatral forte: ele estrutura o sensacional espetáculo A descoberta das Américas, por exemplo. Neste caso, o teatro praticamente se transmuda em história. O encanto fulgurante começa no texto exemplar de Dario Fo (1916-2016), com tradução, adaptação e direção de Alessandra Vannucci, para ser galvanizado como fato cênico flamejante na arte do ator Júlio Adrião, aliás também atuante na versão cênica do texto.
A montagem está diante de uma conquista importante na história do teatro brasileiro – este ano, ela completa 18 anos de sucesso. O feito não poderia passar em surdina, precisa ecoar pelos ares. Uma maratona de apresentações, acompanhadas de oficinas técnicas dedicadas ao estudo da atuação, vai caminhar pela cidade, como se fosse uma expedição de conquista de almas. Que seja bem sucedida, vale desejar.
O original contém uma trama simples, apesar de rocambolesca. Em cena, segundo uma partitura física, gestual, vocal e emocional exuberante, Júlio Adrião apresenta Johan Padan, um zémané do século XV que, para driblar a fogueira da Inquisição, embarca sem saber direito o que está fazendo numa das caravelas da expedição de Colombo.
O pobre acaba no Novo Mundo e enfrenta todo o tipo de acontecimento coerente com a realidade de então: naufrágios, floresta ameaçadora, bichos inusitados, massacres, escravidão, índios ferozes, colonizadores cruéis, canibalismo. No seio de gente tão simples, ele acaba adorado feito um deus, celebrado numa ciranda de messianismo.
Há, portanto, um grande efeito de arte na cena – percebe-se na enumeração a existência de uma multidão de personagens, gente e bicho das mais variadas espécies. E o elenco é mesmo de um só, mas a figura solitária não mergulha na narração ou na contação simples e direta. Ele assina um solo muito sofisticado, tudo e todos são representados e apresentados pelo ator, coisas, situações e gentes, num ritual de sedução teatral irresistível. É para ver e rever. São (quase) mares nunca antes navegados – tal plasticidade intensa do ator desponta como uma conquista recente da história do teatro.
Pois a aventura marítima tem estrada: no longo tempo de vida, além da conquista do Prêmio Shell de Interpretação de 2005, a peça percorreu o Brasil inteiro e mais oito países, em quatro continentes. Muito chão. Sem dúvida trata-se de um tesouro nacional, um novo tipo de riqueza que o colonizador não roubou, uma riqueza sem cotação possível em qualquer mercado, pois materializa simplesmente a infinita fortuna da criação humana.
Não é tarefa fácil, no Brasil, conseguir que uma peça atinja a maioridade, faça dezoito anos, de certa forma conquiste o direito total à existência. Esta aventura está sendo perseguida nesta saborosa A descoberta das Américas. O passaporte para a vida independente nasce, em parte, de uma oferta inusitada feita ao público: a descoberta de como viajar no tempo para viver, nem que seja por um átimo, um ato de liberdade total diante da vida.
O grande segredo está aí; comoveria Giulia Maior, a filha de Augusto, e todas as mulheres poderosas destituídas de si de Roma. Júlio Adrião, só em cena, domina a nossa alma por ser um homem livre; como se o teatro fosse um ato religioso radical, ele oferece à plateia o seu corpo na plenitude de sua expressão. Então, ele nos permite, agora e sempre, voar por um céu de humanidade, não importa que tipo de tirania tente bailar ao redor. O grande teatro faz apenas isto – prova a todos que o pensamento voa e cuida, assim, de nos libertar.
A descoberta das Américas – Rumo à maioridade
Ficha Técnica
Texto Original: Dario Fo
Tradução e Adaptação: Alessandra Vannucci e Júlio Adrião
Direção: Alessandra Vannucci
Atuação: Júlio Adrião
Figurino: Gabriella Marra
Iluminação: Luiz André Alvim
Montagem e Operação de Luz: Guiga Ensá
Fotografia: Maria Elisa Franco e Daniel Barboza
Mídia digital: Rebelados Criação | Andrea Rebelo
Assessoria de Imprensa: Passarim Comunicação | Silvana Cardoso e Juliana Feltz
Produção e Design: Fernando Alax
Realização: Julio Adrião Produções Artísticas Ltda.
Redes digitais:
Instagram: @julioadriao
Instagram: @ casa136laranjeiras
Promoção: Edital FUNARJ de Circulação Teatral 2022.
Sinopse:
Um Zé ninguém de nome Johan Padan, rústico, esperto e carismático, escapa da fogueira da inquisição embarcando, em Sevilha, numa das caravelas de Cristóvão Colombo. No Novo Mundo, nosso herói sobrevive a naufrágios, testemunha massacres, é preso, escravizado e quase devorado pelos canibais. Com o tempo, aprende a língua dos nativos, cativa-os e safa-se fazendo “milagres” com alguma técnica e uma boa dose de sorte. Venerado como filho do sol e da lua, catequiza e guia os nativos numa batalha de libertação contra os espanhóis invasores.
SERVIÇO
PROGRAMAÇÃO RJ – CIRCULAÇÃO 2022 – APRESENTACOES E OFICINAS –
Sobre a oficina:
Oficina conduzida por Júlio Adrião para atores interessados em um processo de criação cênica baseado em suas ferramentas de ator – técnicas adquiridas e qualidades expressivas próprias. Por meio de uma experimentação desarmada, generosa e autodisciplinada sob uma observação atenta, provocativa e respeitosa. Pesquisa prática sobre o trabalho de criação do ator no solo narrativo, com enfoque na expressão física.
Dias: 11, 12 e 13 de novembro de 2022 | 6ªf, sábado e domingo
Local:CAMPO GRANDE: TEATRO ARTHUR AZEVEDO
Horário: 20h – 6af e sábado | 19h – domingo
End.: Rua Vitor Alvez, 454 – Campo Grande, RJ, 23080-180
Telefone: (21) 2332-7516
Ingressos: R$ 5,00 (INTEIRA) | R$ 2,50 (MEIA)
Classificação: 14 anos
Oficina “Solo narrativo”, com Júlio Adrião
Dia 11/11 – sexta das 10h às 14h
Dias: 18,19 e 20 de novembro de 2022 | 6ªf, sábado e domingo
MARECHAL HERMES: TEATRO ARMANDO GONZAGA
Horário: 20h – 6af e sábado | 19h – domingo
End.: Av. Gen. Oswaldo Cordeiro de Farias, 511 – Marechal Hermes, RJ, 21610-480
Telefone: (21) 2332-1040
Ingressos: R$ 5,00 (INTEIRA) | R$ 2,50 (MEIA)
Classificação: 14 anos
Oficina “Solo narrativo”, com Júlio Adrião
Dia 18/11 – sexta das 10h às 14h
Dia: 03 de dezembro de 2022 | sábado
BANGU: TEATRO MÁRIO LAGO
Horário: 18h
End.: Rua Jaime Redondo, 2 – Bangu, RJ, 21852-002
Telefone: (21) 2332-4851
Classificação: 14 anos