Quem sonha, seus males espanta
Sonhei com um príncipe. Quer dizer, não era um substantivo, nada disto. Era um ser na mais pura extensão do adjetivo, pois, no caso, o sujeito não pertencia a uma família real ou nobre. Detalhe importante: era um político. Não, nenhuma associação com O Príncipe, de Maquiavel. De certa forma, a filosofia do sagaz italiano estava nele, mas de cabeça para baixo!
A aventura foi muito rápida. Coisa simples, como convém a um caso em que o tal adjetivo governa. O príncipe me guiava pelas ruas de uma aldeia muito singular. Inebriados, íamos pelos caminhos, a pisar em letras, distraídos.
Sim, pisar em letras. Nossa aldeia era toda feita de livros. Os caminhos, as ruas, as estradas, as casas, tudo se erguia como se de livros fossem. A cada passo, uma descoberta apaixonante nos banhava em alegria infantil – aquela velha alegria que todos nós, leitores, sentimos um dia, quando descobrimos a existência de um mundo novo, antes secreto, de letras, antes inacessível. Um mundo a habitar, e saberíamos, a partir de então, enveredar por ele, de página em página.
Gente, que sonho. Toda a fortuna ocidental vagava por ali, diante dos nossos olhos emocionados. Uma densa selva de sentimentos, conceitos, ideias, sensações foi nos envolvendo à medida que progredíamos no passeio. Aqui e ali, pessoas felizes como nós exultavam, festejavam descobertas, comemoravam o encontro de novos pensamentos. De repente, a humanidade se tornara simplesmente uma festa, uma grande festa, a festa do saber.
Um sonho louco, muito alienado. Pobre criatura, entrou em delírio, escolheu a fuga diante deste mundo tão empesteado – alguém poderá dizer, ao ler, cético, estes singelos volteios letrados, indiferente ao delírio de nossa inebriante aventura.
Não, ora bolas, não reclame dos adjetivos em cascata por aqui, eles até parecem modestos diante da enxurrada de qualidades positivas devastadoras presentes no sonho, uma enxurrada pronta a tudo varrer, como se fosse uma inundação de chuva no Rio de Janeiro… Ah, a coisa era muito melhor, era daquelas de provocar levitação!
Não – com toda a certeza, posso assegurar ao responder, não foi um sonho louco. Foi apenas aquilo que o povo psi chama de restos diurnos! Vou explicar bem direitinho.
Pela manhã, naquele dia, lera uma impactante coluna de jornal: o redator, Gian Amato, descrevia a inacreditável grandeza existencial do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, atual governante de Portugal.
Para o meu espanto brasileiro, pois já me habituei com a triste ideia de que políticos são seres muito ignorantes, brutos até, toscos, salvo raríssimas (e tímidas!) exceções, o tal senhor advoga a necessidade de reconhecer os livros como necessidade básica da pessoa humana. Conseguem imaginar semelhante grandeza? Que turbilhão existencial? Afinal, um príncipe!
Nunca vi nada parecido na minha vida. Nem nunca ouvi falar a respeito de semelhante majestade – o tal homem parece ser uma figura mais rara na superfície terrestre, ao menos na brasileira, do que o caviar do Zeca Pagodinho. Li a coluna com a respiração em suspenso, coração disparado.
Se fosse apenas um emaranhado de palavras e falas, uma narrativa para cativar amantes da leitura e dos livros, já bastaria para desencadear a minha mais completa perplexidade. Seria uma demagogia de exceção, inédita. Pois tenho visto, ao contrário, batalhões de figuras políticas dedicadas à construção de perfis de primorosa obscuridade.
Quer dizer, são criaturas que se superam num esforço extremo para se tornarem mais ignorantes do que já são. Nascem em estado natural, como todos da espécie, mas percorrem os dias da vida buscando uma singular regressão, morrer sob o estatuto de solenes boçais – quer dizer, retornam ao pó sob uma forma soturna. E se orgulham da suprema estupidez dos seus perfis.
Portanto, caso fosse uma nova retórica, poderia ser um jogo de palavras inusitado. No entanto, a coisa não ficou nisto, não se configurou como uma história para inglês ver: o homem semeia livros por toda a parte, à mão cheia, como se fosse um seguidor fiel de Castro Alves. Confesso, fiquei comovida, embasbacada.
A coluna de Gian Amato conta em detalhes a incrível iniciativa do memorável presidente de Portugal: demonstrar que através dos livros se pode reverter um quadro de estagnação econômica. Justamente o contrário do pensamento clássico brasileiro dominante desde sempre por aqui.
Foi o que ele fez, a favor da transformação de Celorico de Basto, humilde povoado português, ao qual o nobre político está ligado por laços familiares. Criou por lá uma imensa biblioteca e desencadeou uma espiral de transformação social. Ao mundo, a chance de renovar-se com banhos e banhos de letras.
No meu sonho, encantada com a ideia, eu decidira mudar com toda a minha biblioteca para Portugal, para uma aldeia quase anônima de tão pequena, quase transparente de tão pobre. Assim, ela virava uma aldeia de livros e eu me extasiava percorrendo as tímidas ruas letradas, para mostrar ao presidente que sim, ele tem toda a razão.
Que governante, valha-nos Dante, poeta capaz de mostrar o caminho para sair do inferno. O presidente subverteu Maquiavel e fez com que eu me tornasse um ser em letras fiel às suas hostes. Os meios justificam os fins, diria este príncipe nosso tão esclarecido. Só os livros nos permitirão chegar à construção do verdadeiramente humano, se o desejo é termos a plena humanidade. Os livros são os meios de excelência para tal fim.
Importa, portanto, contar o sonho, transformá-lo numa cantiga de bem dizer, para louvar este amigo exemplar. Não se trata de amigo trovadoresco, é bom que se diga, o príncipe é casado e bem casado. Nada aqui pretende uma subversão feminina dos romances cavalheirescos.
Afinal, não se deseja afrontar a nobre terra de Portugal, criar um caso diplomático ou desviar a atenção do nó central do problema, a pergunta que não deveria mais existir: para quê servem os livros? No Brasil, parece que ainda não está clara a resposta, ainda não se sabe, apesar de Castro Alves, que o livro é uma benção social, necessidade primeira.
Sim, uma benção para todos. Do povoado ao castelo de príncipes incultos, muito ofício uma biblioteca pode cumprir, para tornar a vida melhor. Das oficinas mais humildes aos gabinetes mais arrogantes, muito requinte de alma pode nascer de belas páginas. A arte do livro fundamenta todas as artes.
No teatro, as letras no papel constituem a maior fortuna da cena através dos tempos. Ainda que muito do saber de palco esteja depositado no corpo dos atores, os grandes materializadores da arte, o teatro não existe sem o ato de ler, sem a ideia de texto, autoria, letra no papel.
E o mais curioso: cada teatro, cada época teatral e cada terra teatral tem o seu feitio peculiar. Cada feitio conecta-se com os outros através do fio tênue do tempo. Nenhum teatro, mesmo que não o saiba, ignora o que o teatro foi.
Se nas aldeias da Idade Moderna a Commedia dell’Arte fazia do texto um esboço para a excelência dos atores, segundo estruturas definidas a priori, Goldoni, no século XVIII, traduziu em textos exemplares a longa história construída em cena.
Carlo Goldoni (1707 – 1793) é um velho desconhecido brasileiro. Está profundamente gravado na sensibilidade teatral do país – mas ninguém o sabe… Ele veio para cá de Portugal e caiu no gosto do povo. Não foi, no entanto, exaustivamente traduzido, fato lamentável, e assim ele persiste como um dom secreto de nosso ser. Quer dizer, persistia.
De sua vastíssima obra, foi feito um belo livro, organizado por Alessandra Vannucci, estudiosa requintada, um início nobre para uma futura biblioteca teatral brasileira de qualidade. É obra tão preciosa quanto o príncipe português do meu sonho. Vale ler.
Destaque-se, a edição é primorosa. Vale enumerar as suas maiores qualidades: ela foi agraciada por traduções profissionais de excelência, trabalhadas por bocas de cena eficientes, graças a atentas leituras de mesa. Assim, ela faz Goldoni se tornar aventura melhor do que sonhar, posto que real… e verdadeiramente teatral!
A semana, aliás, traz um outro texto muito viajado, para compensar a nossa prisão à poltrona. Do Rio Grande do Sul, graças ao dinâmico grupo Incomode-Te, chega on-line uma nova versão do impressionante texto O Palácio do Fim, da canadense Judith Thompson, para a sua estreia nacional na internet, pois o original foi montado anteriormente pela mesma equipe.
A peça também fez um grande sucesso, encenada no Rio, no Teatro Poeira, com direção de José Wilker, em 2011. Reuniu então os atores Vera Holtz, Camila Morgado e Antônio Petrin. E se constituiu como um marco cênico histórico, aqui, para o debate acerca da relação entre cidadão, compromisso ético e humano com a vida e a guerra. O pano de fundo em que os personagens se movimentam em monólogo é a Guerra – e a devastação – do Iraque.
Sob a pandemia, afinal um outro tipo de guerra, que desconhecíamos, as perguntas essenciais do texto parecem mais do que oportunas – são urgentes e necessárias. Qual o compromisso de cada um com a vida e com a espécie? Qual o limite preciso que o gesto de cada um deve seguir, para não ser nem assassino, nem homicida, nem conivente com a catástrofe? Para além dos soldados, as perguntas são universais?
Sim, a solução é o amor – o mesmo amor evidente devotado pelo presidente de Portugal aos livros e aos seres, o mesmo amor que incendiou a minha noite enquanto inconsciente flanava por minha aldeia letrada, o mesmo amor que a classe teatral professa em cena sempre que as cortinas se abrem e um novo mundo de sonho se constrói como doação para nós, na plateia…
Aliás, para celebrar o amor e vagar num fluxo inefável entregue a belas canções populares brasileiras, também há texto, aqui e agora. Com a assinatura de Artur Xexeo, o elegantíssimo Tadeu Aguiar estreia esta semana 19 maneiras de dizer eu te amo. Será a comemoração de seu aniversário, com um teatroon sofisticado e elegante.
Os dois espetáculos, por sinal, excedem em elegância humana – irão arrecadar doações para a luta contra a crise que envolve a classe teatral. No caso dos gaúchos, toda a renda será revertida para a Casa do Artista Riograndense. No caso carioca, o espetáculo apoia a Campanha APTR ao lado do Trabalhador de Teatro.
Nos dois casos, a luta é contra a fome. Apesar dos sonhos alegres que possamos ter, apesar de existir uma alegria de viver brasileira capaz de nos confortar sob as trevas da ignorância e as dores das grandes crises, o horizonte hoje é claro. O país despenca e a fome está nas ruas. Talvez sonhar com príncipes signifique uma sentença simples: é preciso que a cidadania faça alguma coisa, talvez seja a hora de sermos príncipes de nós mesmos.
PARA LER: GOLDONI
FICHA TÉCNICA:
PALÁCIO DO FIM
(versão remota)
Incomode-Te 12 anos de diversidade cultural
Texto: Judith Thompson
Tradução: Liane Venturella e Carlos Ramiro Fensterseifer Direção: Carlos Ramiro Fensterseifer
Elenco: Liane Venturella e Nelson Diniz
Participação especial: Fabiane Severo e Sandra Possani
Trilha Sonora: Angelo Primon
Iluminação: Nara Maia
Cenário: Alexandre Navarro Moreira
Figurinos: Liane Venturella e Carlos Ramiro Fensterseifer Adereços: Valéria Verba
Direção dos vídeos: Guilherme Carravetta de Carli
Pesquisa dos vídeos: Martina Pilau
Operação de som: Eduarda Rhoden
Técnico de vídeo: Nelson Azevedo
Arte gráfica: Jessica Barbosa
Foto: Regina Peduzzi Protskof
Direção de vídeo e fotografia para apresentação remota: Boca Migotto
Edição e som direto: Juan Quintáns
Produção de acessibilidade: OVNI Acessibilidade Universal Roteiro de audiodescrição: Eliana Franco
Consultoria: Felipe Monteiro
Narração: Rodrigo Sacco Teixeira e Diana Manenti
Leitura de legendas: Diana Manenti
Montagem e mixagem: Bruno Klein
Tradução e interpretação em libras: Celina Xavier Neta Montagem e finalização da janela: Forno FX
Masterização: Kemi Oshiro
Produção: Cia Incomode-te-Te e Primeira Fila Produções Realização: Galeria La Photo e Cia Incomode-Te Financiamento: Projeto realizado pela Lei 14.017/2020, Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal.
Assessor de Imprensa: Léo Sant´Anna
SERVIÇO:
Temporada: De 05 a 16/05, de quarta-feira a domingo, às 20h.
Ingresso: R$ 10,00 (toda renda será revertida para a Casa do Artista Riograndense)
Bilheteria: www.entreatosdivulga.com.br/palaciodofim
FICHA TÉCNICA
19 MANEIRAS DE DIZER EU TE AMO
Roteiro: Artur Xexéo
Direção: Tadeu Aguiar
Arranjos e direção musical: João Callado
Assistência de direção: Flávia Rinaldi
Cenário: Natália Lana
Desenho de Luz: Rogério Wiltgen
Músicos: João Callado (violão), Zé Luiz Maia (baixo), Kiko Horta (acordeon), Andre Fróes (bateria)
Câmera e edição do espetáculo – Paulo Severo
Projeto Gráfico – Liane Oshima e Alexandre Furtado
Assessoria em mídias sociais – André e Rafael Nogueira
Fotos de cena – Carlos Costa
Intérprete de Libras – Registros – Karina Zonzini e Elsa Oliveira
Coordenação de Produção – Fabiano Bakr e Gustavo Bakr
Equipe de produção – Eduardo Bakr, Edgard Jordão e Norma Thiré
Realização – JF Serviços e Soluções Ltda.
Bendita inspiração poética:
O Livro e a América
Talhado para as grandezas,
P’ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
Cansado doutros esboços
Disse um dia Jeová:
“Vai, Colombo, abre a cortina
“Da minha eterna oficina…
“Tira a América de lá”.
Molhado inda do dilúvio,
Qual Tritão descomunal,
O continente desperta
No concerto universal.
Dos oceanos em tropa
Um — traz-lhe as artes da Europa,
outro — as bagas de Ceilão…
E os Andes petrificados,
Como braços levantados,
Lhe apontam para a amplidão.
(…)
Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O sec’lo, que viu Colombo,
Viu Gutenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou…
O Genovês salta os mares…
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou…
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto —
As almas buscam beber…
Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Vós, que o templo das idéias
Largo — abris às multidões,
P’ra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,
Agora que o trem de ferro
Acorda o tigre no cerro
E espanta os caboclos nus,
Fazei desse “rei dos ventos”
— Ginete dos pensamentos,
— Arauto da grande luz!…
Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!…
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
Brada “Luz!” o Novo Mundo
num brado de Briaréu…
Luz! pois, no vale e na serra…
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!…
CASTRO ALVES. Espumas Flutuantes, 1870.
Língua Portuguesa
Última flor do Lácio, inculta
e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
Amo-te assim, desconhecida e
obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o
teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi:
“meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
OLAVO BILAC