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A frase do título foi adaptada de Brecht – quem tem o hábito do estudo do teatro reconhece de saída. É muito oportuna, diante da grande oferta de peças teatrais na cena carioca atual. A dinâmica é universal, é um traço comum do nosso mundo, não existem cidades sem teatro, ele fervilha por toda a parte. 

Qual a razão para que se tenha tanta oferta de teatro? Para cultivar a liberdade humana, importa dizer, a multiplicidade do pensamento humano. Em resumo, o teatro é isto: culto da liberdade. O teatro existe para manter o ser humano livre. Se insistirmos em aprofundar o raciocínio, vamos ao velho Brecht, trata-se daquilo que mantém o ser humano vivo. Pensar permite ao ser humano ter liberdade, portanto, viver.

Imagem do turbilhão teatral da Broadway (Times Square), para provocar o pensamento de quem lê…

Culto da liberdade… Foi assim que a brincadeira começou, lá na Grécia – nasceram juntos o teatro, a democracia e a filosofia. Naquele momento, o teatro era um ritual da cidade. Não existia mercado teatral, temporada, bilheteria, mecenato, mas apenas festivais cívicos, bancados pelo Estado. Os autores concorriam em apresentações festivas, abençoadas pelos deuses, e a plateia se emocionava com a chance de ter diante dos olhos as formas de pensar e de ser do seu tempo. Havia o traço de união entre cena e pensamento, mas o vínculo maior era a ordem da vida cidadã. O teatro não se sustentava por si.

O teatro só se tornou manifestação livre (será?), quer dizer, de mercado, no século XVIII. Até então, esteve em declínio nos ares medievais, ressurgiu errante e sujeito aos mandos e açoites dos poderes, precisou de patronos poderosos, enfrentou muita excomunhão. Não por coincidência, a liberdade de existir por si aconteceu no momento histórico em que nasceu o cidadão ocidental – esta pessoa que vende a sua força de trabalho, ganha dinheiro e governa a própria vida, sem ter um dono, sem ser servo ou escravo. 

Portanto, o teatro foi uma ferramenta social importante para a afirmação de um novo tipo social de pessoa, pessoas que aos poucos conquistaram voz na sociedade, com direito a votar e a ser votado, derrubando o direito divino de nobres e reis. O percurso foi lento – ainda no século XIX, o direito ao voto nascia da renda (voto censitário) e as mulheres só se tornaram eleitoras no século XX. No século XXI, se impôs o sufrágio universal, porém tanto as mulheres como os mais pobres ainda tem acesso limitado aos jogos eleitorais do mundo – no Brasil, ainda existem eleitores que calam a boca e vendem os seus votos… Ainda assim, o teatro fincou raízes nas cidades e passou a viver por si.

Na cidade democrático-teatral grega, o poder pagava para que os mais pobres pudessem perder um dia de trabalho e ir ao festival cívico, ir ao teatro. Uma democracia que restringia o direito cidadão aos homens, pois mulheres, escravos e estrangeiros estiveram de início excluídos da cidadania, inventou também a demagogia, espécie de veneno político. Era uma forma de pensamento e de oratória capaz de levar muitos, em particular os mais pobres, a apoiar posições que não eram exatamente as mais afinadas com as suas próprias necessidades. 

Filhos da Grécia, herdamos tudo isto – teatro, democracia, filosofia e demagogia. Mas, radicalmente necessitados de sensibilidade e de pensamento, inserimos o teatro em profundidade na nossa vida cidadã cotidiana: por alguns dinheiros, uma parcela do salário básico, qualquer pessoa tem acesso a estas inebriantes aventuras do espírito. O palco ocupa lugares fixos nas cidades, sugerindo ser uma espécie de altar ritual da sensibilidade coletiva. É uma rotina tão incorporada aos nossos dias que esquecemos de notar a sua novidade histórica e não cultivamos a sua grandeza cultural peculiar.

Uma peça fundamental na história da relação entre teatro e pensamento – A Mandrágora, de Maquiavel, de Sfat Produções, 1975 – no canto direito, Dina Sfat.

Para o culto do teatro, importa ter consciência viva de sua história; esta prática é tão fundamental como o estudo do catecismo para as lides religiosas.  Não dá para frequentar as igrejas – seja qual for o credo escolhido – sem conhecer os rituais adequados à devoção. Reconhecer esta exigência básica se impõe com firmeza, não apenas para engrandecer a arte, mas, sobretudo, para fazer com que o teatro atinja o seu grande propósito: favorecer o exercício livre do pensamento. É fundamental conhecer como esta benção pagã funciona, dominar o seu alfabeto.

Consequentemente, um ato social decisivo precisa acompanhar a prática do teatro – a difusão de sua história, a difusão dos conceitos e dogmas básicos para o seu cultivo, a difusão da sua imensa fortuna cultural. Ir ao teatro significa saber alguma coisa a respeito da arte. Os efeitos se tornam mais intensos quando existe conhecimento dos procedimentos fundamentais acionados.  

Apesar disto, vale sempre considerar a força da arte em si, comentada por Lorca: os efeitos do teatro são tão pródigos a ponto de beneficiar até mesmo as almas mais desgarradas do rebanho, inocentes e puras. O poeta espanhol constatou o fato ao viajar pelo interior da Espanha mais pobre com o seu grupo itinerante A Barraca e presenciar a transformação da sensibilidade de camponeses simplórios nunca até então tocados pelo teatro.

O debate é muito adequado ao Dia do Professor – no fundo, o tema é ampliar ao infinito o culto do teatro, ensinar teatro, para que se tenha muito teatro, para fazer com que o teatro seja um promotor efetivo da liberdade humana. Para que se chegue a tanto, deve ser oferecido à sociedade o acesso ao imenso acervo cultural reunido pelo palco. São peças, são segredos da cena, são truques da arte e, sobretudo, são divindades exemplares para as quais o teatro foi uma forma de vida.  Sim, o teatro conta com um panteão admirável de deuses, divindades, divas, semideuses e toda a imensa aura que os cerca.

Dina Sfat em O rei da vela, de Oswald, Grupo Oficina.

Pois a Biblioteca Central da UNIRIO decidiu dar a partida num projeto exemplar de culto ao teatro – inaugurou ontem a exposição Dina Sfat – retratos da atriz, amostra valiosa das iniciativas necessárias entre nós para garantir ao teatro um lugar à altura do seu papel social. A curadoria, assinada pelo diretor Antonio Gilberto, profundo conhecedor da biografia e da obra da atriz, apresenta imagens eloquentes de sua trajetória. Apreciar o material reunido – fotos, livros, programas, material de imprensa – permite constatar a grandeza de Dina Sfat na arte brasileira. 

A carreira da atriz foi iniciada no amadorismo, no início dos anos 1960; ela integra, portanto, a liderança de uma geração moderna de atores que pode ser definida como segunda geração moderna. Trata-se de uma geração pós-TEB e pós-tebecista, embora ainda apresente traços importantes da influência histórica revolucionária de Paschoal Carlos Magno (1906-1980). É a geração em que, ao lado da influência dos primeiros diretores modernos brasileiros (Flavio Rangel, Antunes Filho, Amir Haddad, Antonio Abujamra, José Celso Martinez Corrêa…), se projetou o teatro brechtiano.

Dina Sfat em Arena conta Zumbi, de Guarnieri, direção de Boal, 1965.

Esta nota histórica permite atribuir de saída uma definição contundente da arte de Dina Sfat (1938-1989), perceptível na generosa coleção de fotos reunida na mostra. Ao lado e além do trabalho com uma forma de expressão sentimental profunda, capaz até de acionar traços fortes da temperatura psicológica e moldar os fluxos do corpo, as suas personagens atendem a um desenho racional preciso, representam ideias, como Brecht procurou advogar. Este desenho se impõe sem qualquer tom mecânico. A alquimia preciosa transparece no olhar da atriz, sempre muito intenso – firme, interrogativo, impositivo, corajoso, como se fosse um convite decisivo para a análise do mundo. Existe um percurso teatral notável na linguagem do olhar de Dina Sfat: o registro da ultrapassagem do velho olhar divertido, histriônico, marca registrada de uma prática de palco anterior (e neste caso o maior exemplo é Eva Todor) para o olhar moderno do ator que indaga os sentidos do mundo.

A exposição deixa muito clara, ainda, a força de Dina Sfat como mulher de teatro – ela foi produtora, seguindo a tradição do palco nacional de atores-produtores. A grandeza desta força aparece bem objetiva, concreta, nos deslumbrantes figurinos assinados por Rosa Magalhães expostos no espaço, usados por ela na peça Irresistível Aventura, em 1984, o seu último trabalho no teatro. Elaborados com extremo requinte, os figurinos ganharam o Prêmio Mambembe de Melhor Figurino.  

A julgar pelas declarações da Produtora Cultural da Biblioteca na inauguração da mostra, Silvia Maria Pia Ferrari, a exposição assinala o início de uma política cultural da casa, de difusão, justamente, da potência artística do teatro. No evento, o discurso da bibliotecária Bárbara Ribeiro, responsável pela concepção do novo projeto, fez com que antigos frequentadores das preciosas estantes lembrassem de uma tradição que andava esquecida.

Professores engajados no fortalecimento da biblioteca da Escola de Teatro, Pernambuco de Oliveira (1922-1983) e Roberto de Cleto (1931-2002) lutaram para fazer com que ela se projetasse como um centro cultural dinâmico, com atividades de difusão da arte; doaram livros e peças valiosas dos seus acervos, favoreceram a aquisição de obras significativas. Em boa hora acontece a retomada de uma tradição importante – a exposição em homenagem à atriz Dina Sfat não será um fato isolado.   Projetos com o mesmo alcance serão abrigados pela Biblioteca.  Um passo de inegável importância histórica, um trunfo para a gestão do Reitor José da Costa Filho, pois significa a existência de um estímulo decisivo para o reconhecimento maior do poder social do teatro. A sociedade brasileira, tão necessitada de ser livre e de aprender a pensar, agradece. 

FICHA TÉCNICA: 

Exposição: Dina Sfat – Retratos da Atriz

Curadoria: Antonio Gilberto

Período: 14 de outubro a 14 de novembro

Realização: Secretaria de Comunicação e Promoção Social da Biblioteca Central da UNIRIO

Local: Biblioteca Central da UNIRIO – Av Pasteur, 436. Praia Vermelha. Rio de Janeiro.