Matriarcado de ilusão
Existe um hábito, a meu ver muito estranho, de considerar o teatro brasileiro como um matriarcado. A suposição é a da existência de um poder feminino que seria o motor da cena do país. As mulheres teriam poder de mando na arte, apesar da paisagem devastada ao redor. Não gosto da hipótese e tenho dúvidas radicais a respeito da justiça da afirmação.
Tendo a supor que, na verdade, a situação da mulher na sociedade brasileira foi sempre tão ruim, tão subalterna, tão sofrida, que a existência de grandes talentos dramáticos femininos levou à construção deste raciocínio, torto, no meu entender. Não acredito que haja qualquer fundamento sólido para sustentar esta visão histórica da arte.
Entendo a afirmação como um estratagema, um artifício mesmo, uma espécie de sofisma, um jogo de ideias hábil para esconder o terrível sofrimento histórico da mulher neste país. O fato de contarmos com grandes talentos artísticos femininos, tão grandes o bastante para que não se tenha tido o poder de impedir a sua projeção, não significa que se possa deduzir, daí, a hipótese de um poder matriarcal, a existência de um poder exercido pelas mulheres ou mesmo por estas lideranças.
Penso que, na verdade, o Brasil é um cemitério de talentos femininos, talentos irrealizados, digamos, massacrados antes de aflorar. Ou mesmo impedidos de aflorar. Ser mulher no Brasil não é fácil não.
Tive uma bisavó genial, absurda contadora de histórias, senhora de um humor muito refinado, que o pai preservou analfabeta, ao lado dos irmãos escolarizados, para que ela não andasse a escrever cartinhas de amor. Não adiantou muito, ela casou bem cedo com um primo, mas sempre imaginei onde poderia ter ido se pudesse ter estudado.
O Brasil – nunca é demais repetir – é uma sociedade patriarcal colonial estamental. Isto significa que vivemos sob uma ordem machista sectária de colorido social segregacionista; a constatação, infelizmente, não nasce de um pensamento feminista. É a crua realidade. Basta olhar os números da violência social contra mulheres, crianças, gays, trans, LGBTxs, enfim, para que se delineie o perfil do desastre social que nos cerca, dimensionar a selvageria machista primária, brutal.
Falar em liderança feminina neste circo de horrores, mesmo numa área delicada como o teatro, beira o absurdo. E para refutar este raciocínio superficial, há uma argumentação forte, em boa parte não esmiuçada até hoje. O debate é urgente e precioso. Vale olhar alguns casos com atenção e ampliar o pensamento – um pouco para entendermos mais a dinâmica histórica do teatro brasileiro.
De saída, importa pontuar o óbvio – na maioria dos casos de projeção teatral feminina, existiu sempre uma teia masculina de apoio. Não há uma atriz de renome na história do teatro brasileiro que não tenha ao seu lado um produtor, tenha ele um vínculo afetivo ou não com a estrela. Não lembro de nenhuma exceção, se alguém souber de uma, por favor me conte.
Marido, pai, irmão, amante, amigo, comparsa, empresário ou negociante, lá está o fiel escudeiro sempre a postos para aparar o lado hostil da vida na arte. Algumas atrizes de grande projeção viveram em bolhas de cristal, sem saber o endereço do banco em que tinham contas. Quer dizer, sem saber fazer as suas contas.
Alguns casos nem sempre notórios chegam a ter um sabor ácido, são assustadores. Conta-se – e isto é história de coxia, sem registro histórico formal e sem comprovação histórica – que a brejeira Araci Cortes (1904-1985), de pouquíssima escolaridade, contou com um amante dedicado, político experiente. E casado.
Ao administrar os bens da bem sucedida estrela, ele teria posto tudo em seu próprio nome, para agilizar melhor os procedimentos. Com a morte repentina do protetor, a riqueza seguiu direto para a matriz, sem desvio de rota. A atriz, então, ficou sem a sua fortuna, ganha com o seu trabalho. Outras histórias parecidas circulam entre as cenas e os camarins, atestando a existência de senhorias de si frágeis, puro poder de ilusão.
Um outro tema inquietante pode ser localizado no século XIX. Propaga-se a grandeza de João Caetano (1808-1863), sem dúvida um monstro da cena, um ator fenomenal e um grande homem de teatro. Apesar de tantos méritos, diante de um século ansioso por grandeza acadêmica, ele procurou camuflar as poucas letras e se expor como poderio intelectual.
Um estratagema bem sucedido, pois, na verdade, a culta da família era a sua esposa, Estela Sezefreda (1810-1874). Mas quem foi mesmo Estela Sezefreda? Apenas uma atriz notável que o tempo apagou, potência intelectual que a tradição diluiu na identidade do marido.
Contudo, o fato que considero mais importante para refutar a falsa suposição de matriarcado cênico está um ponto adiante, nas palavras. Lá, a meu ver, mora a gravidade maior da situação.
Umas perguntas simples fazem aflorar o problema – qual a sua dramaturga brasileira preferida? Qual o último texto de dramaturgia brasileira feminina que você viu em cena? Como você vê a trajetória da dramaturgia feminina brasileira…? A dramaturgia feminina brasileira diz algo da condição feminina aqui hoje…?
Para a maioria das pessoas frequentadoras de teatro, a resposta será uma incursão no vazio. Mais diluída ainda do que a questão da mísera dramaturgia nacional, a importante seara da dramaturgia feminina vegeta à sombra da indiferença coletiva.
O teatro de mulheres, o teatro para mulheres, o teatro sobre mulheres são temas pulsantes na cena internacional. A autoria feminina vale um bom debate, nem que seja para dizer que só existe autoria e ponto. Mas, aqui, tais debates ainda permanecem no limbo.
Diante deste deserto, não há como ignorar a semana de celebração do aniversário de cem anos de Lourdes Ramalho (1920-2019), em Campina Grande. Lourdes Ramalho deveria integrar o letramento nacional, devia ser estudada em todas as escolas do país na formação básica. Devia estar inscrita em letras fortes no nosso imaginário nacional.
No entanto, nada disto acontece, quando muito podemos dizer que ela sobrevive como usina criativa local, sem difusão no conjunto do país. Trata-se de um crime grave de teatricídio e de uma forma intelectual selvagem de feminicídio.
O teatro de Lourdes Ramalho tem a força avassaladora da percepção acurada da aldeia – o Nordeste, o seu povo, a sua cultura, a sua História, a sua maneira de ser. A sua aldeia, contudo, participa do país. E esta força possui um ímpeto de tal ordem que a sua obra se transforma em poesia universal.
Impressiona constatar como a feira, a família estilhaçada, os cantadores, o trovador, a mulher subjugada, a mulher lutadora, a sacristia, os religiosos, o zépovinho, os embates sociais e afetivos, um impressionante batalhão de gentes, graças a um amplo domínio dos recursos da linguagem dramatúrgica, se transformam todos, nas suas peças, em arenas de estudo da humanidade.
Aliás, um libertador estudo da humanidade. Mulher culta atenta às incontáveis oscilações do cotidiano, Lourdes Ramalho sintoniza diretamente o universo da cultura popular, sem se distanciar de formas eruditas e clássicas, por vezes diluídas nas lides do sertão.
Camões, Gil Vicente, o cordel português, a Inquisição, as tramas da reconquista – um imenso baú de lusitanismo e um véu de hispanidade abraçam os cantadores, os jagunços, as mulheres da casa e da vida, os padres, as carolas… sutilmente impregnam os textos da dramaturga. Simplesmente a sua obra traz um painel afinal brasileiro, emocionante, e é profundamente coisa de mulher.
Por isto, importa destacar os festejos paraibanos em homenagem à dramaturga, um rol extenso de atividades, intelectuais e artísticas, virtuais. Desde a declamação de suas poesias, passando por atividades formativas, pois afinal ela nasceu numa família de dedicadas professoras, os eventos propostos culminaram com o lançamento do livro Chã dos Esquecidos.
A obra foi debatida num painel e o encontro deixou claro o interesse da academia pela autora. Dois especialistas de notável especialização em teatro e letras, estudiosos dedicados da obra da escritora, estiveram no centro da conversa – os professores doutores Diógenes Maciel (UEPB) e Valéria Andrade (UEPB e UFCG).
Sim, é de lamentar que Lourdes Ramalho ainda não tenha trânsito livre nos palcos do país. É de lamentar que, no seu centenário, ela não esteja em cena – poderia ser online, claro – nos centros maiores do país que alegam liderar a produção teatral nacional.
A conclusão incomoda. Mas não dá para fugir da lógica do raciocínio: se houvesse mesmo um matriarcado teatral brasileiro, eu estaria aqui, escrevendo uma coluna de celebração, que parece louvar uma desconhecida nacional? Que matriarcado é este em que não se sabe quem é Lourdes Ramalho?
Que matriarcado é este, em que uma dramaturga profícua faz cem anos sem festa nacional e peça nos palcos? Que matriarcado é este, enfim, no qual não se consegue declamar de cor e salteado os nomes e as obras das grandes referências dramatúrgicas femininas do país?
Sim, claro, você pode trabalhar a favor da mudança – basta correr para ler a obra editada da autora. Sim, claro, é um garimpo difícil. Contudo, alguma coisa pode ser encontrada na Estante Virtual, quem sabe com sorte na Amazon.
Prepare-se para lidar com uma raridade: assim como o mando feminino em cena, as obras da autora não são fáceis de achar, são voláteis, desaparecem rápidas. Mas, quando finalmente são encontradas, revelam toda a graça do poder das mulheres. Garanto, tente, vale a pena: não é ilusão de poder, não é matriarcadofake. É o puro feminino mais intenso, uma forma elevada de ser.
SERVIÇO
Maria de Lourdes Nunes Ramalho – em arte, Lourdes Ramalho – escritora, dramaturga, cordelista e pedagoga. Autora de mais de uma centena de peças de teatro, adultas e infantis, algumas perdidas e algumas inéditas, com premiações internacionais (Portugal e Espanha).
PRINCIPAIS OBRAS:
- A Bela e o Monstro
- A Cabra Cabriola
- A Feira
- A Mulher da Viração
- Aconteceu no Nordeste
- Anáguas
- Anjos de Caramelada
- A Velha sem Gogó
- As Velhas
- Auto de Natal
- Chã dos Esquecidos
- Charivari
- Dom Ratinho e Dom Gatão
- Elas por Elas
- Escola Solidária
- Eva e Adão
- Festa do Rosário
- Festejos de Natal
- Festejos Juninos Profanos
- Fiel Espelho Meu
- Fogo-fátuo
- Folguedos Natalinos
- Frei Molambo
- Fulano e Fulana
- Fuxicada no Céu
- Guiomar sem rir sem chorar
- Guiomar, filha da mãe
- Herói a Muque
- História de Zabelê
- Jesus com paixão
- Malasartes Buenas Artes
- Maria Roupa de Palha
- Novas Aventuras de João Grilo
- O Arco-íris
- O Cangaceiro
- O Caso de Ruth
- O Diabo Religioso
- Os Mal-amados
- O Novo Prometeu
- O Padre, a Beata e o Demônio
- O Pássaro Real (Corrupio e Tangará)
- O Príncipe Valente
- O Psicanalista
- O Reino do Preste João
- O Trovador Encantado
- O Velho Judeu
- Peleja de Dom Quixote com a Besta-Fera
- Porque a Noiva botou o Noivo na justiça
- Presépio Mambembe
- Romance do Conquistador
- Um Homem e uma Mulher
- Uma Mulher Dama
- Uma Visão de Mulher
- Viagem no Pau-de-Arara
Edições de destaque:
ANDRADE, V.; MACIEL, D. (Org.). Teatro [quase completo] de Lourdes Ramalho. Mulheres. Organização, fixação dos textos, estudo introdutório e notas de Valéria Andrade, Diógenes Maciel. Maceió: EDUFAL, 2011.
ANDRADE, V.; MACIEL, D. (Org.). Teatro [quase completo] de Lourdes Ramalho. Teatro em Cordel. Maceió: EDUFAL, 2011.
LEMAIRE, R. (Org.). A feira e O trovador encantado. Campina Grande: EDUEPB: 2011.