
E o ator, o que é?
Olhar a paisagem humana do mundo traz belas surpresas – infinitas são as formas do humano. Se existem homens-sanduíches, tipos que trazem um cartaz dependurado de explicação do seu ser, existem seres-labirinto, seres-enigma, seres-cebola. São aqueles que temos, nós todos, dificuldade para entender ou explicar.
Talvez os atores pertençam a esta categoria – eles se dedicam à fluidez do existir, praticam o não ser ou o deixar de ser, escorregam do nosso entendimento. Ou não – talvez seja necessário saber como olhar para estes mutantes. Talvez os atores sejam homens-livros, coisa mais simples.
Não, não quero dizer que os pobres artistas amantes dos palcos são calhamaços de papel, emaranhados de letras. O ponto que desejo indicar é bem outro. Escolhi a imagem apenas para dizer que cada ator é um labirinto de saberes.
Sim, é bem isto – labirinto de saberes. Não são simples labirinto. Pois o caso não significa estar perdido de si, vagando, pelo planeta, a esmo. Significa viajar saberes, circular ideias, transformar o viver num caleidoscópio de pensamentos bastante especiais, pois se definem como pensamentos de vida. Ou pensamentos com vida.
Para o trabalho do ator, a ideia pura não importa. A ideia só conta se ela ganhar pernas e puder desfilar distraída por aí. E neste jogo, o ator veste este pensamento de existir outro, se esquece de si para enveredar por uma maneira de uma gente que é gente transitória, abstrata como uma ideia, mas passageira – amanhã será outra.
Mas, olhe lá, as ideias vieram de… livros! Então pode ser divertido brincar de tentar ver de qual volume pode ter nascido este ou aquele ator. Seria uma encadernação de Brecht? Ou de Stanislavski? Ou veio de um manuscrito perdido oriental? Alguns parágrafos de Nietzsche?… A biblioteca se alonga por muitas prateleiras.
No Brasil, a natureza dos atores é tão pródiga quanto a natureza tropical. Talvez porque faltem livros, digamos, ou tradição de leitura – os saberes estão pregados diretamente nas peles. Olhamos para os atores e nem sempre percebemos a edição que vai por ali.
No palco brasileiro, talvez mais do que em qualquer lugar do Ocidente, o saber e o fazer do teatro acontecem como prática de coxia, camarim e alçapão. Quer dizer, as pessoas aprendem muito da arte no convívio, na contracena, na convivência.
Assim, o livro adquire certa distância. Apenas começamos a esboçar uma identidade de escolas. Quer dizer, já se consegue um pouco olhar o ator em cena e concluir: este é UNIRIO, aquele, é Martins Pena, o outro ali veio da CAL, aquele lá só pode ser USP, mas, olhe ali, o vizinho, está na testa, UNICAMP.
Esta possibilidade importa para o teatro, é um crescimento. Cada escola deve desenvolver o seu método, criar o seu estilo, consolidar os seus saberes. Aos poucos, o ator brasileiro se tornará uma força imbatível, ao associar profundamente a velha maneira tropical de aprender pelos ouvidos com o hábito louvável de ler, estudar.
Existe um vasto campo de pesquisa associado ao estudo da história do ator. Quer dizer, já vai longe o tempo em que o estudo da arte dos atores se resumia à redação de biografias e de trajetórias na arte.
Hoje, há um interesse crescente pela história dos métodos de interpretação, pelas técnicas e procedimentos de arte associados a cada ator e por todo o universo ao redor do ato de interpretar – o gesto, o corpo, o movimento, a relação espaço-tempo…
A quarentena parece ser um bom cenário para aprofundar estes debates e promover pesquisas-vivas, pesquisas-relatos. Se o ator descreve os seus caminhos de trabalho e expõe a sua biblioteca ou as suas fontes, a voltagem da linguagem da arte se torna mais elevada e, portanto, o teatro se torna mais contundente.
No palco brasileiro, um palco jovem, nascido no início do século XIX, a história do ator aparece marcada, a maior parte do tempo, por um absoluto expontaneísmo. Sempre vale lembrar que ao longo desta curta história as escolas tiveram bem pouca influência.
Quer dizer, as escolas de teatro só passaram a contar de verdade para o palco brasileiro a partir dos anos 1940. Se a Martins Pena surgiu em 1908, ela foi inaugurada mais para empregar um famoso poeta do que para efetivamente formar artistas – e ainda assim só começou a funcionar em 1912.
Portanto, a tradição brasileira mais forte reside no ator empreendedor e autodidata, pesquisador, estudioso – se pudermos realmente atribuir todas estas definições a figuras como Leopoldo Fróes (1882-1932).
Enfim, a pandemia com certeza valorizou este debate, pois estimulou o trabalho do ator-empreendedor e solitário. Impossível fugir – a hora é bastante boa para pensar o ator brasileiro. Com a expansão das escolas e dos centros de formação, várias pesquisas e muitos estudos relevantes se projetaram.
Dois fatos agendados para a semana evidenciam a importância do tema: uma estreia teatral e um lançamento de livro. A estreia – o espetáculo O Astronauta, cartaz online do Teatro SESI Firjan – traz de volta à cena carioca o inquieto e intenso ator Eriberto Leão, um intérprete que se destaca por seu perfil estudioso.
Neste original, com dramaturgia de Eduardo Nunes, será possível reencontrar o desejo de especular a respeito da solidão da espécie humana, poeira cósmica. A aventura espacial parte deste eterno desejo, a pergunta universal sobre a vida, para especular a respeito das razões da vida e do homem em si.
A inspiração do projeto veio de múltiplas fontes devotadas à ficção científica. A obra combina referências dos filmes 2001 – Uma Odisséia no Espaço, Solaris e Her, ao lado do repertório musical de David Bowie, sobretudo a música Space Oddity.
Uma outra jornada envolvendo a questão da presença em cena do ator estará em pauta graças a um debate online, nesta terça, dia 1 de dezembro. O formato será usado para o lançamento do livro A arte romanesca do ator, de Henrique Buarque de Gusmão, professor de História da UFRJ e ator de teatro.
O estudo apresenta um tom saboroso exatamente por insinuar a possibilidade de ver os atores como homens-livros. Para o pesquisador, autor de uma visão muito original, o encenador Constantin Stanislavski (1863-1938) se apropriou da extensa tradição do romance.
Em resumo, isto quer dizer relacionar o encenador com o universo da cultura do romance. Portanto, as formas e as práticas culturais instauradas pelo romance, um novo gênero literário que apaixonou o mundo, teriam sido estratégicas para a concepção do seu método.
As formas de leitura difundidas com a afirmação do romance, os modos de construção dos personagens praticados pelos romancistas e os modelos de crítica literária associados a este universo teriam se tornado, segundo o autor, condições de possibilidade para as renovações propostas por Stanislavski.
Portanto, nem hesite. A conclusão surge muito simples: a agenda lhe oferece duas oportunidades preciosas para dimensionar a força intelectual que pode mover a engrenagem do teatro. Uma engrenagem de ideias, afinal.
Ela não é uma engrenagem feita apenas de pura carne e afeto, como por vezes os inimigos da cena desejam supor, para rebaixar o teatro no panteão das artes. Por trás da cena, tornando-a possível e densa, está a sua razão de ser: um elenco precioso formado por homens-livros.
FICHA TECNICA
O A S T R O N A U T A
DRAMATURGIA: Eduardo Nunes
IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO GERAL: José Luiz Jr.
ATUAÇÃO: Eriberto Leão
ELENCO CONVIDADO (presenças em vídeo e/ou áudio): Luana Martau, ZéCarlos Machado, Jaime Leibovitch, Natascha Falcão, Joana Abreu
DIREÇÃO MUSICAL: Ricco Viana
VIDEOGRAFISMO, REALIDADE VIRTUAL E PROGRAMAÇÃO VISUAL: Rico e Renato Vilarouca
DIREÇÃO DE ARTE E CENÁRIO: Carla Berri
FIGURINO: Joana Bueno
ILUMINAÇÃO: Adriana Ortiz
FOTOS: Emmanuelle Bernard
DIREÇÃO TÉCNICA E DE PALCO: Marcos Martins MARKETING / DIGITAL: Luciana D’Amato
PRODUÇÃ O EXECUTIVA: Flavia Menezes
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Carla Yared
REALIZAÇÃO: CAJA Arquitetura Cultural
ASSESSORIA DE IMPRENSA: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
SERVIÇO
ESTREIA: dia 03 de dezembro (5ªf), às 20h
– programação on-line do Teatro Firjan SESI Centro –
LANÇAMENTO DE LIVRO:
“A arte romanesca do ator: Constantin Stanislavski na cultura do romance”
de Henrique Buarque de Gusmão
– lançamento em 01/12/2020, às 19 horas – debate com o autor e com as pesquisadoras Celina Sodré e Luiza Laranjeira da Silva Mello
Evento em forma remota, inscrições pelo link: https://cutt.ly/chiOgSn.
Links para compra do livro:
https://loja.umlivro.com.br/a-arte-romanesca-do-ator–constantin-stanislavski-na-cultura-do-romance/p