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O futuro do teatro e as brigas no galinheiro

Criar galinhas é uma arte. E um aprendizado. Quem passou pela experiência bem o sabe. Por exemplo: as galinhas mais poderosas ficam nos poleiros mais altos. E quando as galinhas brigam pelo poder – assim elas determinam quem manda no galinheiro – é melhor não se meter, deixar a briga rolar.

Mas nós, que ficamos de fora do galinheiro só olhando, pois não temos nobreza bastante para figurar entre as penosas, às vezes ficamos voando. O galinheiro pega fogo, sobram penas para todos os lados e a nossa vontade de  entender permanece na pura vontade, coisa que dá e passa.

Duas notícias recentes deixaram esta sensação. Uma foi a entrevista de Jorge Paulo Lemann, um dos homens mais ricos do país, que declarou, convicto, que o país briga demais. E que a falta de consenso inviabiliza a chance de um norte para sociedade. Na briga, impossível formular projetos coletivos. Digamos que vigora a lei do galinheiro, cada qual salve as suas penas e o conjunto que se dane: não há conjunto. Apenas galinhas.

Na mesma ocasião, o senhor Lemann falou de sua crença no papel da educação, a seu ver a única alavanca capaz de mover o Brasil para uma trajetória positiva. Citou exemplos comoventes, heroicos, a batalha dos abnegados de sempre. Mas não apresentou, estranhamente, uma visão da tragédia que é hoje, no país, a situação dos professores. Sem professores, não existe projeto educacional válido. Existirão apenas casos isolados, de exceção.

Se um professor não ganha o suficiente para se manter atualizado, não consegue comprar livros, se informar, se ilustrar, não consegue viver a vida cultural de sua cidade, melhor fechar as escolas e mandar os estudantes para casa – os pais que se virem. Quando um professor tem que escolher se compra um item da cesta básica, para comer, ou se compra um jornal, a coisa está feia. Os jornais, afinal, são baratos.

Seria muito bom se o senhor Jorge Paulo Lemann, sem dúvida um grande aliado a favor da grandeza do país, andasse pelas escolas e pela vida cotidiana. Teria, por este meio, uma ideia objetiva da ruína que nos envolve. Uma ruína histórica, muito consolidada. Parece até projeto de Estado. Ou o grande projeto da elite nacional, em vigor desde as capitanias hereditárias até agora.

Sim, se ele mergulhar na leitura, poderá ver a velhice do problema: basta uma pesquisa rápida em textos de Artur Azevedo (1855-1908), por exemplo, para constatar a precariedade vetusta do professor nacional, em particular o mestre escola. Já naqueles tempos era fácil zombar do analfabetismo dos regentes improvisados das classes escolares. Eram esforçados, porém mal sabiam o que sabiam.

Vale reconhecer, contudo, que a fala, em certo sentido, foi uma fala de briga positiva – a rigor, nada tem sido feito de profundamente importante no campo da educação no país, pois ninguém se habilita a mudar a situação do magistério. Mudar, transformar, arejar, sacudir o bolor são ações ousadas demais para a vida nacional. Indesejadas.

Que o diga a briga de galinheiro seguinte, que varreu a Odebrecht e baniu o herdeiro-regente dos quadros da organização. A partir das declarações aos jornais recentes de Marcelo Odebrecht, seria natural pensar no aparecimento inédito de um capitalista revolucionário – revolucionário se considerarmos o quadro predador arcaico que envolve o empresariado nacional.

O pano caiu rápido. O velho patriarca, zeloso dos antigos rituais e saiba-se lá de qual ordem no poleiro, mandou cortar a cabeça do frango rebelde. No redemoinho, cifras espantosas voltearam nas falas. Um dinheiro impressionante, sobretudo se for cotejado com as dotações oficiais da Odebrecht para a cultura e a educação.

Parece claro: mais do que nunca, no Brasil, precisamos estudar os ricos. Os muito ricos. Para tentar entender o que estes líderes propõem e impõem à sociedade. Em lugar de fazer estudos, peças, espetáculos e que tais denunciando a pobreza, mostrando a miséria, exercitando o mais tosco populismo, a urgência é a de levantar o véu do paraíso das fortunas.

Já se vê: comecei a ler ávida o livro sensação do momento, Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013, de Pedro H. G. Ferreira de Souza. Desconfio que o caminho para o país passa por este tipo de estudo. Sempre achei impressionante a indiferença glacial da elite brasileira frente à miséria nauseante que estrutura a base do país.

Desde que comecei a me encantar por Botafogo, o que mais me chocava no bairro não era o casario milionário, as mansões deslumbrantes da São Clemente. Não, nada disso me desnorteava – o que eu considerava inexplicável era o contraste arrasador entre o mundo de nossa nababesca elite pseudoaristocrática e a favela espetada precariamente no Morro Dona Marta.

Quando conheci a favela Santa Marta – e a da Catacumba e a Macedo Sobrinho – fiquei impressionada com a grandeza do engenho humano na miséria absoluta. Naquela época, os barracos eram de zinco, papelão, madeira, um fluxo de pura carência. Entregues à sua miséria, os moradores se viravam e as soluções de engenharia eram inusitadas. Havia um desperdício de inteligência social perturbador. Mas a única política que eu vi nascer diante de tamanha miséria foi a da remoção, que debatíamos muito na escola, no ginásio. Remover era esconder o problema.

Uma sociedade como a nossa, construída sobre este preço, precisa se pensar. Profundamente. É Natal. A festa existe para todos, não importa se a pessoa acredita ou não, é uma tradição da nossa sociedade. Ao lado do consumo, da ostentação, ela significa amar. Um amar pleno, solto, amar a vida, amar o mundo, amar o próximo. A festa exige o confronto com a alteridade – nesta época, você tem que pensar o outro. E a sua relação com o outro.

É justo viver assim, brutos entre brutos? As pessoas reclamam muito, reclamam de uma realidade-Brasil que está brotando violenta hoje. Um jeito de ser estúpido, arrogante, grosseiro, mal educado causa horror por toda a parte. Mas é Natal, vale perguntar: de onde veio este ser primitivo que, ao que tudo indica, é o ser que nos governa hoje? Não fomos nós, na nossa indiferença, que o cevamos? Não foram as elites nacionais indiferentes, avaras, que escolheram ser ilhas de prosperidade num mar de selvageria social?

Fala-se muito da Idade Média, usa-se arbitrariamente o adjetivo medieval para classificar realidades consideradas brutais. No entanto, o nobre medieval não era um nobre de salão. Nem era canalha ou cínico diante do próximo. Ele era rico e, por ser rico, podia sustentar cavalos, comprar armas, forjar armaduras. Estes bens significavam uma missão de vida: a defesa da sociedade. A riqueza trazia consigo a exigência de uma contrapartida.

Os pátios dos castelos, numa época em que ainda eram de madeira, se abriam para abrigar os servos miseráveis sem nome que não tinham nem armas nem arte para se defender. Depois, a nobreza ficou ociosa e certamente foi esta classe fútil que a burguesia pretendeu derrubar e imitar.

Pois bem – é Natal. E neste Natal em que a crise varre a sociedade brasileira e fustiga em especial os miseráveis, não temos no Rio nenhuma estreia teatral anunciada. Nenhuma. Nem um auto de Natal – apesar de tantos políticos religiosos no poder dizendo que sim, vão trabalhar para resolver a crise.

Um Natal sem teatro, fato raro no Rio de Janeiro. A notícia assusta, traz um fantasma medonho, a suspeita de que em breve poderemos nos tornar uma sociedade sem teatro. Quer dizer, uma sociedade ainda mais brutal, menos dialógica, mais selvagem e desumana, boçal mesmo. Escolas ruins e teatros extintos. Vamos desbrasilizando perigosamente.

É Natal. É hora de mostrarmos que nós somos o próximo também, nós, que consideramos o teatro como uma necessidade social básica. Há que levar a elite a se nacionalizar, não desfilando com credencial VIP na pista do sambódromo, mas assumindo compromissos profundos com o ser brasileiro, com a gente do país. Se o dinheiro foi parar na sua mão, alguma razão social maior move o fato – e você, da elite, que nada em dinheiro como o Tio Patinhas, tem a obrigação, no mínimo, de lutar pelo fim da miséria social infantil. Por exemplo. Como a elite de um país pode aceitar a existência de crianças rolando no lixo, nas ruas, como se fossem trastes?

Há o teatro – nenhum outro procedimento de arte afeta de maneira tão profunda e tão radical a sensibilidade coletiva. O teatro é necessário para que se possa sentir e pensar, a um só tempo, o humano. Na verdade, o engenho da mente não para, foi feito para si, para o pensamento, pode pensar qualquer coisa – até mesmo a vida social das galinhas, por exemplo.

Na marcha que seguimos, se não houver uma grande mudança, parece que este será em breve o destino da sociedade brasileira. Criadores de galinhas. Mas não neste sentido aldeão imediato, bucólico, não. Seremos apenas a força cega, bruta, entorpecida, apta a sustentar a papuda elite do país.

Estarrecidos, o único teatro que teremos será a contemplação das brigas de galinheiro, a disputa pelos lugares mais altos dos poleiros, enquanto o produto suado de nossas carnes será trocado, a preços vis, para que as penosas possam cacarejar forte, exultantes com a sua felicidade. Pois trabalharemos para que tenham muito milho.

Serviço:

Leitura obrigatória de Natal – Prêmio Jabuti 2019.

Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013

De: Pedro H. G. Ferreira de Souza

ISBN: 978-85-8404-173-2

Editora: Hucitec, São Paulo, 2018

Edição: 1 ed.

Número de páginas: 421

Do release:

A história de desigualdade, de Pedro Ferreira de Souza, é uma história dos ricos. Faz sentido olhar para o topo: uma parte imensa da renda está lá. Por essa razão, flutuação na renda dos ricos tem um peso desproporcional na evolução da distribuição total. Quando a concentração é muito alta, os ricos conduzem a dança. Conduzem, mas não ditam como deve ser o baile.

Este livro encaixa uma peça importante no quebra-cabeça da história econômica brasileira. Com ele, aprendemos sobre quem ganhou mais e quem ganhou menos em quase um século de desenvolvimento. Trata-se do resultado de um trabalho cauteloso, que envolveu uma coleta de dados atenta, selecionou as informações mais precisas e usou as melhores ferramentas, a fim de apresentar a série histórica mais longa e completa sobre a desigualdade no Brasil.

 Marcelo Medeiros