High-res version

A crise e a morte do teatro

Viver um fato histórico avassalador tem lá o seu atrativo. Um deles nasce da oportunidade de observar o ser humano em seus impulsos básicos, diante do perigo. Sem julgar o próximo ou querer expressar uma pretensa superioridade,  vale sugerir a experiência. Sim, quem é mais racional, menos sentimental, alcança uma percepção maior. Ainda que ninguém – ninguém mesmo – consiga ficar alheio ao desespero e à depressão que, aos poucos, ameaçam submergir tudo.

 Os muito sentimentais, porém, não conseguem se desembaraçar do seu nervoso para olhar tranquilamente ao redor. Talvez sejam os mais vulneráveis – se apegam ao turbilhão de notícias ruins, não conseguem desligar, ficam hipnotizados com a vertigem negativa ameaçadora. Se tornam vítimas emocionais, não conseguem se assenhorar do próprio raciocínio. Perdem a autoproteção.

Veja: algumas pessoas, diante da mudança radical de tudo, diante de um terremoto existencial, começam a tremer com o espírito e não conseguem mais encadear duas ideias. São arrastadas por boatos, fakenews e o que mais passar pela frente. Engrossam a procissão de penitentes prontos a vagar sem rumo até cair no abismo, sem lei, até mesmo sem fé.

Outros, no extremo oposto, duvidam de que algo possa mesmo estar acontecendo. A cada prova, avançam com a dúvida adiante, incólumes, impermeáveis, agarrados a uma verdade-fantasma impossível para sempre acenada. São capazes de ir gritando contra a mentira, mesmo que só eles a vejam, espetados no chifre do touro brabo do futuro, que veio furioso visitar a alma de todos, com a verdade outra, negada, derramando o sangue.

Encontrar o ponto de equilíbrio entre os dois extremos é bem difícil, mas necessário. No sabor da batalha, naturalmente oscilamos. Para escapar, pisamos fundo no acelerador da mente, para tentar acompanhar a marcha desvairada dos fatos com o pleno domínio da razão. E a recompensa vale o esforço – pois, muito embora a situação, nestes casos, seja de calamidade humana radical, sempre existem os coveiros da espécie, inclinados a tirar proveito da miséria geral. Só a razão nos protege desta sub-raça hedionda.

O que eles querem? Amplificar o desespero, a ruína. Fazem projeções catastróficas alarmantes, tiram algum proveito de tudo, se não for em dinheiro, certamente pode ser em vaidade, poder ou em prazer sádico. A destruição nunca vem só – ela tem o seu exército de pragas. Manter a mente radiosa, em sintonia fina com a realidade, ajuda a neutralizar os abutres.

Agora, por exemplo, muitos amantes e seres do teatro se inquietam, alvoraçados, sob alarmantes histórias inclinadas a decretar o fim da arte da cena. O vaticínio é, no mínimo, ignorância histórica, pois não é a primeira vez que os teatros fecham – por tempo indeterminado – a favor da saúde social. Não sabemos quando será saudável contar com grandes encontros coletivos: este é um fato objetivo. A sanção afeta não apenas o teatro, pois música, dança, circo, cinema também estão banidos, estão todos no mesmo barco. Ou fora do barco. Isto sem falar no futebol e tantas outras modalidades esportivas.

A situação aponta, no caso do teatro, para duas urgências. Vale insistir. A primeira, a absoluta necessidade de formas coletivas de organização da categoria. É bem verdade que os sindicatos, no Brasil, possuem um perfil problemático, de engajamento político nebuloso, condição que fez com que a sua ação a favor da categoria, ao menos no Rio, nesta crise fenomenal, não adquirisse ainda grande projeção. É um problema sério para pensar, aproximável ao problema da SBAT, que teria sido preciosa, agora, se não tivesse sido devastada.

Das armas coletivas antigas, persiste precioso o Retiro dos Artistas, apoiado pela categoria, ainda que o seu alcance seja restrito. Das novidades, a grande revelação é a APTR, rápida na organização de um movimento de apoio aos trabalhadores da categoria desamparados. A partir da APTR,  talvez possam surgir pleitos de sucesso, com editais de emergência e de crise para a estruturação de eventos virtuais, sem riscos para a saúde coletiva. Quem sabe se pode criar um banco de fatos teatrais com direitos autorais remunerados?

A outra urgência apresenta um rendilhado mais apurado, mais sofisticado, capaz de causar brotoejas em peles ligadas a corpos rebeldes juvenis. Representa a urgência de constituir o teatro enquanto atividade capitalista autossuficiente, dotada de capital próprio e, portanto, dispositivos de segurança para situações de exceção.

Sem dúvida não é fácil, nem mesmo para um capitalismo avançado bem equilibrado, pensar mecanismos de sobrevivência para um abismo da ordem de uma pandemia. Vale, com certeza, observar os grandes centros mundiais, em particular a Broadway e o West End, para pensar o caminho possível para a cena. No caso brasileiro, em que  a sobrevivência econômica da arte já estava há bastante tempo no vermelho, as coisas ficam um tanto piores.

Mas nada pode ser invocado, no cenário duro do momento, para falar em fim do teatro, como desejam alguns brancaleones descabelados. O teatro sobreviverá. Deverá repensar a sua fragilidade, reorganizar os seus procedimentos, redimensinar a sua função, o ponto é este, mas sobreviverá. Em lugar de acionar espirais de desespero, vale mais a pena convocar as mentes para avaliar a dimensão real dos fatos.

Vários artistas estão fazendo lives, recitais, stories, apresentações ao vivo, debates, leituras on line. Várias peças de sucesso se tornaram programas acessíveis para ver ou rever na internet em belas gravações. Aliás, há na rede teatro do mundo inteiro, de toda a Europa, da América Latina, da América do Norte. Falar em morte do teatro só poderia ser admissível depois que se dispusesse dos dados de acesso a este tesouro. Foi repudiado? Foi timidamente acessado? Foi aclamado?

Há também um mundaréu de livros, cursos, oficinas, palestras – quer dizer, se o bicho do teatro morreu, ele se revelou um bicho de múltiplas cabeças e corpos, capaz de se espalhar por toda a parte. Um morto difícil de enterrar.

A experiência do isolamento e da quarentena, por sinal, precisarão ser revisitadas nos palcos quando a crise passar – haverá muita roupa suja e muita roupa limpa para a máquina teatral cuidar. A constatação é óbvia, pois sempre todas as grandes crises humanas geraram reflexões teatrais, não necessariamente mecânicas ou diretas. Os estudiosos são unânimes em reconhecer o peso da segunda guerra para a gestação de Esperando Godot, de Beckett.

Sim, sinto desiludir os pessimistas, mas o ser humano vai mudar e não é preciso ser Poliana para pensar isto. Enfrentaremos uma época de muita dor. Os canalhas, psicopatas, sobreviverão imunes. Mas os que forem de humana carne e humana alma, em vão tentarão esconder as cicatrizes. Ela estará tatuada em toda a superfície dos seres. Não há escapatória: incline a sua cabeça diante da História.  Aceite o que ela fará com você.

Vale observar que especialmente no Brasil não estamos vivendo uma tragédia – o caos brasileiro poderia ser evitado, poderia ser menor, poderia ter uma dimensão administrável, se não tivéssemos sido, ao longo de séculos, cidadãos omissos diante das nossas fragilidades sociais. Viveremos uma caosgédia produzida por nós. Enquanto nos dilaceramos, perdemos parcelas preciosas das nossas vidas, abdicamos de sermos os melhores de nós, importa ver com alguma racionalidade esta pequeninice, para, quem sabe, sonhar a mudança.

Lições de melhoria humana nos chegam de todo o Brasil. No noticiário, destaca-se a desinfecção realizada pelos próprios moradores no Morro da Babilônia, em Copacabana, quando  se teme a devastação das favelas pelo coronavírus. A tensão carioca em alta, após um mês ou mais de isolamento, se abranda um tanto após o anúncio da obrigatoriedade do uso de máscaras nas ruas e várias pessoas, anônimas, decidiram passar a fazer máscaras para doar. Produtores de hortifruti doam, a cada cesta vendida, uma cesta para quem está passando fome.

Portanto, você pode aderir ao feitiço, se engajar na luta. Doe algo de si, nem que seja a sua atenção. O mínimo a fazer é escolher uma peça digital, virtual, para se entregar. Você não tem escolha a não ser viver a História. E o melhor de tudo é que viver a História pode ser dor, mas, quando trabalhamos ao lado da nossa humanidade, pode ser um enorme prazer. 

Serviço

Imagem – Clio, deusa grega da História, mármore carraca branco, Villa Adriana, Tivoli, atualmente no Museu do Prado.

Peças completas para ver:

Chacrinhahttps://dai.ly/x2xq3p7
Cócegashttps://youtu.be/quOXly8fSG8
Paulo Gustavo – Hiperativohttps://youtu.be/UQh3D29SURw

7 O Musical – https://youtu.be/6d1wsNolRzw

A Bela e a Fera – https://youtu.be/Xa6pxvlMeAY

Avenida Q – https://youtu.be/qhcZqg_wkJY

Beatles num Céu de Diamantes – https://youtu.be/7EU59AYUmv8

Book of Mormon Parte 1 – https://youtu.be/Odo7NNbxwDE

Book of Mormon Parte 2 – https://youtu.be/kKVx1zP7vGA

Diogo Almeida – Vida de Professor – https://youtu.be/266ejI9uLCg

Floribella O Espetáculo Musical – https://youtu.be/danJhuPs5-Q

Gypsy O Musical – https://youtu.be/PbiPIpKuG9M

Hair – https://youtu.be/vCJAabp0_UU

O Despertar da Primavera – https://youtu.be/BuGfEBDEwis

O Fantasma da Ópera – https://youtu.be/rZB6r0VTgeg

O Mágico de Oz – https://youtu.be/QFfFv6StVRM

Ópera do Malandro – https://youtu.be/lkH0nPiF7mE

Os Miseráveis – https://youtu.be/6z7N2q5tpp0

Rent – https://youtu.be/zpS6oAg-IGo

Vingança O Musical – https://youtu.be/nCV2vLBkvkk