High-res version

O poder do tempo

Hoje a coluna está etérea: saudades de mim. Recebi a visita do tempo, este companheiro que eu escolhi para a vida e para todo o sempre, o casamento dos casamentos, pois escolhi ser historiadora. Aceitei o convite, bailei com ele por salões de puras ideias. Impossível resistir ao tempo.

Sou historiadora. Mas, divagante, dispersiva, inquieta, talvez ligeiramente autista, percorro sempre múltiplos caminhos, às vezes enrodilhados ao redor da História. Um pouco além. Porém, no final, me vejo sempre, exausta com a superficialidade de tudo, nos braços de Heródoto. A ocupação escolhida lá na mocidade não me abandona, ela molda o meu olhar e tudo ao meu redor.

Decorre daí esta mania de entender o que acontece como trama de tempos múltiplos, presentes, passados, lógicos, extemporâneos. Os acontecimentos podem parecer transparentes, imediatos, esta é, porém, uma pobre ilusão, os acontecimentos são como aqueles novelos de linha que o gato embolou, são emaranhados de tempo.

A constatação vale para tudo. Todavia, não utilizamos esta inteligência tão aguda na correnteza cotidiana. Seria um tremendo cansaço. Cada grão de poeira ao redor traz um mundo de histórias, mas nem sempre estamos com vontade de entender o mundo.

Se olharmos para os afazeres humanos, em especial para as artes, deparamos com uma avalanche de referências, um acúmulo de intervenções, um tecido saturado de humanidades várias. A superfície de um quadro tem tanto o artesanato da tela, quanto a história de tintas, pincéis, pinceladas e olhares. E lugares. E gentes.

Ainda que a indústria, entregue à produção em série, seja a pátria do múltiplo, para o nascimento daquele protótipo foi necessária uma longa fila de intervenções humanas. Na prateleira do supermercado mora uma multidão. A história de cada copo e de cada caneca remonta às cuias e aos usos das palmas das mãos.

Li há pouco o livro mais recente de Ken Follett, O crepúsculo e a aurora. A ação acontece no século X, data remota o suficiente para deslocar muitas das nossas certezas cotidianas. O escritor se revela um grande pesquisador e, ainda que o livro não seja um livro de História, ela, a divina ciência, está lá nas páginas, intensa e elucidativa.

Impressiona constatar quantas coisas nossas cotidianas – muitas tentamos tornar universais – simplesmente não faziam parte daquela vida cotidiana. Na Inglaterra, principal lugar da ação, a pobreza de recursos vigente na Alta Idade Média é uma lição de vida curiosa.

De saída, a fome fazia parte do cotidiano da maioria. Comer não era tão fácil ou acessível. A variedade de alimentos era mínima. O enxoval de objetos ligado aos atos de cozinhar e ao de comer era a própria modéstia.

E mais. Se, no continente, casas e construções de pedra começavam a se difundir – e tinham sido correntes no mundo greco-romano –, na ilha, as casas de madeira cobertas de palha eram a norma.

Mesmo as habitações dos grandes senhores eram de madeira, situação que traz uma outra visão da nobreza, diferente da nobreza de salão, bibelô comum nos nossos imaginários. Não há nem sombra daquele nobre emperucado de escola de samba. Chão forrado por juncos e ausência de conforto sanitário eram usuais.

 Sob chuva frequente, eterna parceira dos ingleses, a lama rica em dejetos sanitários era o chão de todos os pés. Sair de casa para fazer as necessidades  era tão normal quanto o uso de vasilhas que seriam os ancestrais dos penicos.

Um detalhe interessante – pessoalmente, considero-o  encantador para o universo feminino – é a estruturação da trama ao redor de um homem do povo de espírito nobre, capaz de amar profundamente. Ao fim e ao cabo, o longo texto é um romance no sentido mais sentimental da palavra.

Afinal o protagonista, Edgar, reúne todas as qualidades do príncipe encantado – jovem, atlético, inteligente, perspicaz, sensível, forte… Filho de um modesto construtor de embarcações, ele é um engenheiro.

Apesar de analfabeto – claro, ele vai estudar e se aculturar ao longo das 701 páginas do volume – ele tem a perspicácia daqueles que nascem para desentortar o mundo, portanto, engenheiro. Quer dizer, insisto, é um príncipe encantado. E, assim, a velha magia da História impregna o texto em dois sentidos.

O primeiro, imediato, é nossa visita ao passado em que nascemos. Todo o nosso mundo falta por lá, existem apenas as pessoas como vontade de erguer… o mundo! O sujeito empreendedor está embutido ali. E o que vemos é o nascimento de uma cidade nova, quase uma cidade ideal, Kingsbridge.

Cada pessoa, mesmo as pessoas mais ricas, possui um volume de bens muito reduzido: é uma solidão. A maioria quase que só tem de seu o corpo – no caso dos escravos, pois haviam escravos por toda a parte apesar de ser a Idade Média – a falta de bens chega à falta de roupas ou à sua precariedade.

Na verdade, as pessoas livres e pobres possuíam apenas a roupa do corpo, no máximo uma ou outra ferramenta. As roupas, aliás, eram despojadas. E sujas. Os hábitos de banhar-se e o de lavar as roupas não faziam parte da rotina.

As casas contavam com um ambiente único, apenas, e quase nenhum móvel. Ganchos nas paredes de madeira serviam para dependurar o que houvesse de ferramenta, utensílios, roupas.

No centro do espaço, ficava o lugar do fogo, algo que não se poderia chamar de fogão. No chão, espalhados ao redor, ficavam os lugares para dormir, em geral o chão duro mesmo, sem camas. Privacidade, zero.

O segundo sentido da presença da História poderia ser definido como a nossa presença naqueles tempos remotos, nos quadros pintados pelo autor. Claro, o livro não veio do passado, não é um pedaço do passado. Alguém do nosso tempo criou toda a trama.

Portanto, o texto se constrói no reconhecimento desta distância – o autor aqui e ali chama a atenção para a diferença e para as ausências. Dois exemplos são ilustrativos.

Um é o tema dos talheres, objetos praticamente inexistentes, reduzidos à faca de cinta e à nem tão universal colher. Isto significa que o sujeito pegava a sua faca de ponta e cortava o seu naco de comida, mas podia também espetar um outro comensal, em caso de aborrecimento.

A outra presença de nosso tempo no texto é a já citada trama de amor que estrutura o relato. Num tempo em que as mulheres eram absolutamente dominadas e desautorizadas, a mocinha da trama atende a um desenho confortável para o nosso ideário. É uma mulher de ação e de decisão.

Em paralelo, surgem no desfecho duas histórias de relações homoafetivas, uma delas bem sucedida. Elas neutralizam a possibilidade de julgar o grosso volume como um mero elogio ao velho amor hetero convencional.

Outros dados importantes revelam a presença de traços da sensibilidade de hoje. Merece destaque a punição eficiente dos malfeitores, sujeitos à morte ou a sofrimentos, na época, incuráveis e terríveis, em particular a sífilis.

Para pesar bem as tintas dos malvados, e, ao mesmo tempo, problematizar os bons, os heróis positivos são capazes de atos muito violentos. Mas são atos inevitáveis, de defesa, absolutamente justificados, em virtude das maldades hediondas sofridas.

As reviravoltas da trama, intensas e de ritmo bastante acelerado, ecoam o gosto atual por ação – a célebre opção por tiro, porrada e bomba. Assim, para chegar à felicidade, no desfecho, os heróis enfrentam um calvário verdadeiramente… medieval!

Para quem gosta de ler e ama História, o livro fascina – vira aquele tipo de leitura-chiclete, uma obsessão deliciosa até chegar ao desfecho. Acredito que o ponto principal de atração nasce da possibilidade de pensar o tempo nas artimanhas do texto.

É isto. Trata-se do melhor jogo para ser jogado, o jogo que enfrentamos durante toda a vida, a percepção dos tempos do mundo. Este pode ser um passatempo intelectual apaixonante, nestes tempos em que muitos ainda estão sujeitos a viver trancados, precisamente fora do tempo do mundo.

Um objeto de análise sempre curioso é o teatro. Um texto teórico conhecido de Pierre Francastel observa que o palco do nosso tempo não tem nunca a forma do nosso tempo – ele é concebido e gerado num tempo anterior. O exemplo que ele usa no texto é o palco à italiana, em vigor no século XX, criação do século XIX.

Agora, ao que tudo indica, estamos criando um novo palco, o palco do teatro online, teatron, um palco em geral bidimensional. Se estávamos em cena com um espaço híbrido, um misto, algo do século XIX no século XX, a novidade deverá trazer uma intervenção curiosa no olhar.

O palco do século XX persistiu à italiana, grosso modo, exigindo o uso das leis convencionais da perspectiva. Aboliu a plateia hierarquizada, porém manteve a cena italiana.

O sabor do século, contudo, tratou de questionar o velho palco. Alguns experimentos lidaram, sem grande eco, com o enfrentamento da perspectiva linear e, consequentemente, com o problema do foco da ação. A busca seria para explodir a cena por dentro.

Trabalhar com cenas múltiplas, simultâneas, o estilhaçamento consequente da trama e a dispersão do olhar seriam decorrências naturais destas pesquisas dos limites do espaço à italiana e da ruptura com a perspectiva. Poderia ser, talvez, uma espécie de geometrismo ou cubismo cênico, em falta de nomes melhores.

A partir do teatron, contudo, há um retorno, certamente incomodo, do tema do espaço bidimensional e do problema do jogo figura x fundo. Quer dizer, a pesquisa aqui se desloca, vai do estudo do espaço à italiana para a abordagem do espaço de representação enquanto tela.

Os desafios esboçados por estes enunciados não se detém aí. A História fez nascer, no século XIX, um homem novo, o zépovinho, o cidadão sem eira nem beira dotado de cidadania e direito à voz e ao voto. No início, ele ficava isolado, tinha um teatro baixo para chamar de seu. Mas o tempo andou.

No teatro, o homem comum forçou a mudança do desenho do painel de personagens. Ele veio da rua, entrou nos teatros populares, ganhou a plateia e subiu no palco. Intrometido, passou a meter o nariz em cenas de nariz empinado e se aclimatou.

No século XX, o homem comum adquiriu cidadania plena nos tablados. Assim, a onda crescente da nova expressão humana atingiu um resultado curioso. A voz do homem comum ecoou na cena. Ou a classe teatral desejou fazer crer que ela ecoava na cena.

Aos poucos, o limite foi corroído. De inspiração, os homens comuns se tornaram atores. O jogo estimulou a proliferação de poéticas participativas, ao lado dos relatos de auto-ficção, memorialismo e ego-literatura. A pergunta do século XXI, portanto, também é – para onde vai o texto de teatro? Existe ainda o dramaturgo?

A maré não poupou também as especialidades profissionais. Se o século XX aclamou a derrocada do primeiro ator, rei da cena no século XIX, distribuindo louros ao encenador/diretor capaz de honrar as letras dos poetas dramaturgos, o século XXI parece disposto a lançar os profissionais da cena numa máquina centrífuga. Ou trituradora.

Enquanto o dramaturgo se apaga e se rende à sala de ensaio e à intervenção textual da população cênica, o seu grande aliado de outrora desmaia nos camarins. Pois o diretor se reduz a ser, no máximo, regente de expressões que podem desautorizá-lo.

Mas que ninguém pense que os astros da cena, sob as luzes, sonham com antigas ribaltas. Os atores estão lá, mas caminham para artes de si, aceitam o convite para mostrar os seus avessos e para contracenar com criaturas comuns, sem qualquer formação específica no campo da arte.

Um exemplo deste cadinho de transformações e destas peripécias históricas pode ser localizado no Grupo Galpão, um coletivo de perfil histórico raro. E explosivo. O Galpão simplesmente dinamitou – ou quase – o eixo teatral consolidado no país no século XX.

Na sua origem, trata-se de um grupo do interior, de Minas Gerais, formado por atores, devotado ao cultivo da direção-encenação e dos grandes textos de arte. Ousados, os seus integrantes inscreveram Minas Gerais na dinâmica teatral moderna brasileira.

A continuidade de pesquisa e a inquietude fizeram com que o elenco não parasse no tempo, não cristalizasse um tempo para chamar de seu. Simplesmente eles avançaram pelo futuro, pelos debates acerca da performance e da presença, abraçaram o século XXI com fé e estão aí.

Para saber mais, trate de ver – teatro é mesmo o que se vê. A leitura vale apenas como um convite ao baile. Pois o Galpão está no salão, ouvidos e olhos apurados, preocupados em saber o que se passa nas estradas do mundo. Vale bailar com o grupo.

Eles chegam no youtube com Histórias de Confinamento. O assunto está claro no título. A direção, esta função que seria tão inteira e assertiva, cabe a três integrantes do grupo, atores do coletivo – Eduardo Moreira, Inês Peixoto e Thiago Sacramento.

A proposta surge tão avançada, tão pós-moderna que dispensa ficha técnica: tudo acontece lá, na tela, no tempo da cena. E assim a coluna acontece num tempo avançado também, sem ficha técnica e sem serviço teatral: tudo está na imagem do cartazete. Dizer o quê? Entregue-se ao seu tempo, case-se com o seu futuro, vá ver…

Serviço Literário:

FOLLETT, Ken. O Crepúsculo e a Aurora. São Paulo: Arqueiro, 2020. 701 páginas. Preço sugerido: 59, 42 (Livraria da Travessa).