High-res version

A cena ideal, os ídolos do nosso tempo e o sonho carnavalesco

Claro, você com certeza já gastou algum tempo de vida com uma velha pergunta: qual  seria o teatro ideal para o Brasil? Um teatro de texto e de ideias, filho dileto das nossas raízes europeias? Ou um teatro buliçoso e rebolativo, herdeiro garboso das festas de terreiros e quintais?  Ou um teatro de pura música, apenas vidas expostas aos ritmos e sensações? Ou algo novo, nosso, com tudo junto e misturado…?

A pergunta tem uma face áspera – insinua que não temos ainda, depois de tanto tempo em cena, um teatro para chamar de nosso, quer dizer, brasileiro. Será? E mais: afinal, o teatro não é, no fundo e na alma, um fato europeu? Como desejar que ele seja outra coisa, sem que ele escape de sua verdadeira forma de ser? Não seria um paradoxo absurdo buscar um “teatro brasileiro” que não fosse súdito da cena d’além mar?… Discutir a definição do teatro, a essência do teatro, que desafio, apenas com a pretensão de singela de encontrar lá no fundo, encolhido, o Brasil!

Sem mergulhar no lado mais denso do debate, pois esta é apenas uma coluna de caráter informal, importa reconhecer o valor de todos os que doam as suas vidas a favor da cena por todo o território nacional. Tentar dizer que o teatro que nos abraça por todos os cantos do país não é teatro ou não é brasileiro, ou não nos diz respeito, é mais do que blasfêmia, é agressão desmedida contra os séculos de suor cênico, de João Caetano a  Juca de Oliveira ou Totia Meirelles, estes lindamente em cena neste exato momento.

Basta passar os olhos pela lista dos vencedores do 16º Premio APTR, aclamados hoje numa linda noite de festa no Teatro Claro Rio, para encontrar, nos nomes celebrados, muito do Brasil. Os destaques da noite não apenas incluíram indicados e vencedores. Uma lista generosa de homenagens trouxe à cena nomes representativos da mais fina arte teatral brasileira: Suely Franco, Emiliano Queiroz, Antonio Pedro e Miriam Mehler. A atriz Ana Beatriz Nogueira recebeu uma homenagem especial por seu projeto, durante a pandemia, de Teatro Sem Bolso – um tipo de presença de espírito em situação de crise que, convenhamos, tem muita sintonia com um jeito de ser nacional.

Mas vale perguntar um pouco adiante. Onde ficaria, neste vasto elenco de homenageados e premiados, o tema da brasilidade? Se olharmos com atenção, dá para perceber, nos diversos nomes, tanto uma malícia física intensa, no caso dos atores, quanto existe uma inteligência geométrica peculiar no tratamento dos espaços, por diretores, cenógrafos, iluminadores. Em geral, um tipo de calor afetivo visita as cenas em destaque, tanto para criar como para sobreviver cercado por adversidades – esta temperatura é inegavelmente nacional.

É possível medi-la, nomeá-la, decifrá-la em palavras e racionalizações? Difícil responder – em lugar de brigar contra a obra que realizamos, discutir em vão o que somos, vale mais a pena nos olharmos, vermos o estágio da arte coletivamente construído por aqui. Padecemos de uma estranha doença, um enclausuramento narcisista. Para este mal, só importa a arte de nossa própria lavra ou da nossa tribo, todo o resto é desprezível.

A síndrome tem origem histórica. Em boa parte, ela traduz um velho jeito de ser Brasil, lá do século XIX, segundo o qual haveria uma elite requintada cercada por bugres que precisam ser ou extintos ou civilizados. O mal afetou muito a vida do teatro musical, da comédia e a arte dos primeiros atores, em benefício do que seria uma verdadeira elevação em direção ao grande espírito da arte. Interessante perceber como este preconceito evoluiu e chegou até hoje, sempre voltado para a criação de formas de negação da arte, no interior mesmo da classe artística.

A partir da implantação do moderno, especialmente a partir dos anos 1940, se fortaleceu muito no interior do teatro brasileiro um sentido estranho de negação  da criação instituída. Se antes a campanha nascia muito dos literatos e doutos, de repente ela passou a grassar dentro da categoria. Para os modernos, os velhos primeiros atores, a seu ver antigos, eram algo para soterrar, esquecer, quando na verdade eles foram artífices da cena num grau avançadíssimo de construção poética.

Sim, existe sempre, na lógica de produção da arte, um atrito entre as gerações – o novo, o jovem, para se afirmar, busca detonar cegamente a geração anterior. Mas isto deve se dar dentro de certos limites: o exemplo clássico é a inteligência de Machado de Assis em reconhecer a grandeza impressionante de João Caetano, muito embora o grande ator fosse visto como uma aberração cênica para os valores do realismo.

De certa forma, no século XIX, apesar da ideia de arte refinada versus arte bárbara, havia uma espécie de “pacto de sangue da arte”, que permitiu até mesmo que Artur Azevedo sobrevivesse no meio acadêmico. No entanto, o pacto  foi rompido com os modernos. Era importante, para buscar instaurar o poder da encenação e do diretor, negar todo e qualquer mérito a personalidades artísticas tão inebriantes quanto Procópio Ferreira ou Dercy Gonçalves, os dois grandes exemplos históricos deste quadro. Contudo, logo o feitiço iria se virar contra os feiticeiros – a geração do teatro de grupo engajado se preocupou em negar qualquer qualidade ao palco moderno, do TBC e das grandes companhias de atores, que passou a ser visto como o “teatrão”.  Quer dizer, arte para desprezar e rejeitar.

E assim seguiu a roda: logo os jovens grupos irreverentes, da criação coletiva, também atiraram pedras contra o teatro engajado. Por sua vez, todo o palco instituído, hoje, recebe ataques frontais dos defensores da performance, do experimentalismo radical e da teatralidade difusa – em falta de nome melhor para falar de um certo tipo de experimentação espontaneísta artístico-cênica de agora. Isto sem que se fale nas ondas de rejeição aos musicais – justamente o segmento do teatro atual que mora no coração do público…

Sim, sofremos de uma estranha síndrome: uma vontade de não aderir a um projeto coletivo de contemplação da sociedade brasileira. Uma boa parte da classe teatral foge do teatro, nega o teatro, briga para fazer uma arte de reduzido alcance público, um teatro de iniciados, quase religioso. Isto é – busca-se fazer um teatro em que o que menos importa é o público. Sem problemas fazer uma arte na qual a fatura poética é o mais importante; só que, para ser teatro, talvez a ênfase não possa residir no projeto do artista, mas, sim, antes, deve viver do diálogo direto com os contemporâneos.

Caminhos, muitos caminhos podem ser traçados a partir deste tipo de reflexão. Seria muito importante manter os olhos bem abertos para não perder de vista o edifício construído até aqui. Para entender os seres humanos do nosso tempo, inequívocos resultados de um processo humano histórico, os grandes textos da dramaturgia ocidental trazem uma carga poética e humana sempre revolucionária. Mas, tradições locais – sim, tradições, a palavra é esta – precisam ser reconhecidas, tais como a plasticidade corporal, a musicalidade, a descontração essencial gerada pelo hábito de dançar nas ruas, a inclinação para a pulsação mais quente das cores, o ímpeto decorativo barroco…

        

Um espetáculo estreia esta semana apontando um encontro curioso de vertentes poéticas – Joãosinho & Laíla: Ratos e Urubus, larguem minha fantasia, novo cartaz do Teatro de Arena do SESC Copacabana. Importante conferir o resultado alcançado, no qual se cruzam múltiplos caminhos teatrais e populares, se é que ainda se pode qualificar os desfiles das escolas de samba do nosso tempo como arte popular. Mas esta é uma outra discussão.

O que vale aqui é este coquetel brasilov, digamos, um tipo de molotov para chamar de nosso. Uma combinação bem explosiva, provocante e provocadora. Há um texto convencional de teatro, assinado por Marcia Santos, cujo foco central é o histórico desfile da Beija Flor de Nilópolis em 1989, no qual as genialidades de Joãozinho Trinta e Laíla sacudiram, no mínimo, a cidade.  Na avenida, a miséria social característica do país, profunda e constrangedora, era abençoada pela figura de um Cristo mendigo, censurado e envolto em plástico preto. A cena, portanto, trará os bastidores e a gestação do desfile, recortes da vida brasileira, questões básicas do carnaval e da mecânica dos desfiles.

A ideia, concebida por um ator que é profundo conhecedor do carnaval carioca e do samba, Édio Nunes, contou com a adesão de Patrick Carvalho, experiente coreógrafo de comissões de frente dos desfiles. A equipe reunida, aliás, é formada por nomes dotados de vivência intensa do carnaval, do candomblé e do teatro: Wanderley Gomes, Cridemar Aquino,  Ana Paula Black e Milton Filho dominam todos os alfabetos acionados pela proposta.

Isto significa a abertura de um campo de pensamento teatral inteiramente novo – seria de absoluto interesse para a cena contemporânea se a Prefeitura do Rio de Janeiro convidasse o projeto para apresentações no sambódromo, uma forma de levar ainda mais adiante a pesquisa original proposta. Fica muito evidente um dado fundamental a respeito da encenação, de alcance prioritário para os debates teatrais atuais: o projeto tem um enorme potencial de público. A peça lança no mercado teatral uma outra interface possível para a aproximação entre o palco e a sociedade do nosso tempo.

Portanto, a coisa é muito simples: é ir ver a montagem, conferir a vitória alcançada a favor de uma visão nova da cena e estimular ao máximo a difusão do projeto. Diante dele, uma bela novidade: a chance de, enfim, perguntarmos, com muita convicção, se acontece, nesta cena, algo que se poderá qualificar como um caminho para um teatro verdadeiramente brasileiro.

16º PRÊMIO APTR DE TEATRO ANUNCIA OS VENCEDORES DE 2021  
Autor:
Guilherme Gonzalez – Rainha

Direção:
Miwa Yanagizawa – Em Nome Da Mãe

Cenografia:
Analu Prestes – Sonhos Para Vestir

Figurino:
Simone Mina e Carol Bertier – A Gaivota

Iluminação:
Renato Machado – Vozes Do Silêncio


Música:
Federico Puppi – Em Nome Da Mãe

Ator em papel Coadjuvante:
Joelson Medeiros – Cuidado Com As Velhinhas Carentes e Solitárias

Atriz em papel Coadjuvante:
Maria Esmeralda Forte – Meu Filho Só Anda Um Pouco Mais Lento

Ator em papel Protagonista:
Filipe Codeço – Aquilo De Que Não Se Pode Falar

Luis Lobianco – Macbeth 2020

Atriz em papel Protagonista:
Bete Coelho – Medeia Por Consuelo De Castro
Suzana Nascimento – Em Nome Da Mãe


Espetáculo:
Em Nome Da Mãe

Jovem Talento – Troféu Manoela Pinto Guimarães:
Elenco – Invencíveis


LISTA DE INDICADOS POR MEMBROS DA COMISSÃO DO PRÊMIO

Espetáculo Infanto-Juvenil:
A Menina Akili E Seu Tambor Falante, O Musical – Autor: Verônica Bonfim| Direção: Rodrigo França


Categoria Especial:
Ana Beatriz Nogueira – Pelo Projeto “Teatro Sem Bolso”.


Produção:
Pinóquio – Cia Pequod – Teatro De Animação
 

ESPETÁCULO EM DESTAQUE – ESTREIA DA SEMANA

Joãosinho & Laíla: Ratos e Urubus, larguem minha fantasia

FICHA TÉCNICA

Texto – Márcia Santos

Idealização e direção – Édio Nunes

Direção musical – Marcelo Alonso Neves

Elenco:

Wanderley Gomes – Joãosinho Trinta

Cridemar Aquino – Laíla

Ana Paula Black – Rosangela, Mendiga, Tia Eulália, Repórter

Milton Filho – Cosme, Jackson, Adécio Alves

Fábio D Lélis – Jenilson, Hamiltinho Correa.

Músicos:

Fábio D’Lélis (percussão)

Leo Antunes (cavaquinho)

Marlon Jr (violão)

Léo Antunes- Cavaquinho, Viriato.

Felipe D Lélis – Mestre de Bateria Didico/ Percussão

Marlon Julio – Violão 7 Cordas / Dadá

Juliane Procópio/ Percussão

Fernandes Martins/ Percussão

Marquinhos / Percussão

Assistente de Musical –  Marlon Julio

Mestre de Bateria – Felipe D Lélis

Cenário e figurinos – Wanderley Gomes

Iluminação – Valdeci Correa

Ass. geral e produção executiva – Leandro Melo

Programação visual – Marcos Acher

Assessoria de imprensa – Alessandra Costa

Redes sociais – Fernanda Portela

Apoio: G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis

Serviço

De 9 de junho a 3 de julho de 2022

De quinta a domingo

Horário: 19h

Local: Arena do Sesc Copacabana

Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)

Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ

Informações: (21) 2547-0156

Horário de funcionamento da bilheteria: de terça a sexta, das 9h às 20h; e sábados, domingos e feriados, das 13h às 20h

Classificação indicativa: 12 anos

Duração: 75 minutos

Lotação: sujeito a lotação