
Você de nós: quem é você, teatro novo?
O teatro parou em todo o mundo. Ou não – na Coréia do Sul, O Fantasma da Ópera manteve uma rotina de apresentações sob severas normas sanitárias. Andrew Lloyd Webber, segundo matéria publicada no New York Times, anunciou que a temporada irá fornecer pistas, importantes para todos, a respeito da sobrevivência do teatro pós-pandemia. Afinal, o grande lema do teatro em vigor em todos os quadrantes soa bastante imperativo – O show não pode parar.
E o teatro não parou. Na verdade, ele se mudou, decidiu passear por novas paragens e assim como a tournée coreana trará lições para o palco, os novos continentes percorridos irão incorporar algo especial à velha linguagem. Acabou de nascer um garoto esquisitíssimo, um tal de teatronet, para alguns teatroweb ou mesmo teatro de rede. Os mais realistas juram que se trata apenas de uma nova roupagem do velho teatro em casa. Será só isto?
Bom, a quantidade de produtos pululando nesta webprateleira já desperta de saída um espanto: quais os caminhos ideais para pensar este múltiplo, que se transfigura em tantos, querendo apenas ser o mesmo? É teatro mesmo e sempre, sob inumeráveis formas? Ou é preciso falar de outras coisas? Afinal, o que é teatro? A forma teatro é exclusivamente aquela da arte que acontece no fervilhar do sangue, duas tábuas e um ator diante de um público?
Ou o ato de representar para outro, supondo ou imaginando a presença de quem ali efetivamente não está, ainda é teatro? A única diferença decisiva entre teatro e televisão é a inserção comercial? E afinal, o que separa o teatro do cinema? Teatro-filmado-no-teatro, com público vivo e de verdade, corrente, vira cinema? Ou persiste sendo teatro, apenas filmado, passa a ser um documento do teatro que se foi?
Pois bem, agora, no isolamento, sob quarentena, vivendo o jugo da pandemia, o espectador preso em casa dispõe de uma avalanche de ofertas teatrais. Na internet. O tal do teatro filmado está ao seu alcance sob infinitas roupagens – há desde os clássicos franceses e ingleses, alemães, italianos, holandeses e o que mais oferece a velha Europa, obras das maiores casas teatrais do continente, e até um museu notável de experimentos e invenções, das mais surpreendentes linhas de vanguarda. E há o Canadá, os Estados Unidos… no fim das contas, o amante do teatro pode não ter teatro, mas tem o mundo nas mãos.
Só que a coisa não é tão simples – nesta categoria mais rica, de acesso aos documentos de arte de nossa época, aparecem convites desconcertantes, propícios a sacudir as fronteiras da arte. Dança, artes plásticas, música, ópera se fazem notar com um cálculo muitas vezes interpelativo, disposto também a discutir as molduras do teatro. Um exemplo quente – esta semana o Metropolitan disponibilizará a ópera de Phillip Glass, Akenaton (Akhnaten) – algo que decididamente importa para o povo de teatro ver.
A fortuna oferecida ao pobre do espectador recolhido não se resume, no entanto, às peças de arquivo, registros de temporadas passadas. Longe da poeira, mergulhado no presente, o velho teatro conta com mais duas categorias de trabalhos online. Uma pertence ao mundo da ação – ações coletivas em prol da arte. Além dos debates, encontros, conversas, a internet está oferecendo interessantíssimas obras de criação online, ao vivo, e algumas até abraçam o espectador, este ser carente total.
Quer dizer – você, plateia, recebe uma convocação não apenas para ver, mas para integrar uma ação de arte. Confesso que, de todas as ações que vi até o momento – não foram muitas, não tenho especial amor por práticas participativas – a que mais me impressionou foi, na verdade, musical e ensaiada. Quer dizer, eu não participei. Divulgado na página do Festival de Edimburgo, este ano cancelado, o projeto da violinista Nicola Benedetti gravou um concerto virtual, de celebração da música, ao vivo, no facebook e no youtube. Gente do mundo inteiro, de todas as idades. Foi lindo. A artista de sucesso mantém uma fundação cujo objetivo é demonstrar a grandeza da música para unir, inspirar e educar (Benedetti Foundation).
Certamente esta ação não foi tão espontânea, pois envolveu três semanas – no mínimo – de trabalho duro, ensaios, aulas, orientações. Mas o ponto importante a ressaltar corresponde ao gesto de trazer, associar, abrigar almas – quer dizer, incorporar gente para a descoberta de que, afinal, gente é gente e vale a pena. Recomendo que se veja a gravação; é um pouco longa para a atenção borboleta do presente, mas dá muito o que pensar.
A outra categoria de obras disponíveis na internet é a mais moça do trio: engloba os trabalhos feitos agora, para o imbróglio vivido por todos. Invenção do momento. Obras de arte mesmo, convencionais. O objetivo, neste caso, é também pensar o mundo, o desejo também é mudá-lo. Mas a diferença aparece clara: sob o foco está o indivíduo, aquele ali, ou melhor, você aí diante da tela. Quer dizer, nós.
Três trabalhos bem diferentes entre si, todos desta categoria de obras feitas por artistas para a quarentena, atraíram a minha atenção esta semana. O primeiro, o mais fácil de se achar, caiu sob os meus dedos no Twitter e nem sei se é necessário dar as indicações técnicas para o eventual leitor chegar lá. São quadros quentes diários, presentes do ator comediante Marcelo Adnet, satirizando as inacreditáveis notícias políticas que povoam as páginas e telas cotidianas, num convite às vezes ácido, mas sempre hilário, para este nosso constrangedor baile dos loucos.
O projeto importa por duas razões: ainda que se possa tentar distanciá-lo do mundo nobre do teatro, para aprisioná-lo na sub-linha por vezes bem desprezada do humor de televisão, Adnet constrói cenas minuciosamente pensadas enquanto representação e pretende falar diretamente ao CPF que está do outro lado da tela. Há uma teatralidade muito forte, além do vigor da performance, e há um cálculo cidadão, uma ação para mover o mundo.
E aí está o grande ponto a considerar – o indivíduo em quarentena, o espectador. As duas apresentações seguintes são casos bem específicos de teatronet – ou teatro de internet. São dois trabalhos bastante diferenciados, merecem, inclusive, reflexões mais detalhadas. Receberão aqui apenas rápidas abordagens, adequadas à reflexão maior, a respeito do teatro na crise. O primeiro trabalho é tão teatro que está mesmo em cartaz, como se fosse uma apresentação teatral convencional. O outro, concebido a partir de uma peça que saiu de cartaz por causa da pandemia, está lá no youtube, acesso aberto. Os dois vão para a sua casa, o seu teatro privado, basta você querer.
Para a peça, o agendamento por e-mail garante o acesso. Não é cobrado ingresso, porém a ajuda à campanha da APTR em prol da classe é indicada como desejável. O espectador precisa chegar na hora e seguir um protocolo pré-fixado. Por exemplo, a plateia deve ficar “no escuro”, quer dizer, com telas apagadas e microfones desligados, quase um simulacro da situação teatral convencional. Quando a ação começa, ela revela um espaço natural da casa da atriz Karen Coelho, que foi cenarizado – quer dizer, foi tratado cenograficamente para falar com o texto. É um espaço de quarentena – como o seu.
O pequeno quarto amarelo insinua uma composição entre o homeworking e o íntimo, lugar de trabalho e de estar consigo. A cor amarela vibrante faz um pouco a sala incandescer, sentimento de incêndio interior que percorre o texto e justifica a presença, no plano mais ao fundo, de um quadro de São Jorge. Tudo está ali entre o mergulho na perplexidade individual e a insegurança coletiva a respeito dos rumos da vida aqui e agora, na pandemia.
O texto assinado pela jovem Juliana Leite impressiona por sua aguda sensibilidade. Reúne relatos da rotina da quarentena a estados d’alma, como uma peça da contemporaneidade de tom rapsodo. A atriz Karen Coelho desliza por climas e palavras com absoluta elegância existencial, elegância de quem sabe que está sozinha, na ficção, e está em cena, quase sempre em close, na tela da plateia. A direção de Moacir Chaves se projeta sobretudo como direção de ator, basicamente sem investir na exploração do espaço-casa-prisão. O interesse é fazer com que cada um ali se veja, como se a superfície da tela pudesse se tornar um espelho. É inquietante, desafiador e redentor.
Finalmente, há um outro trabalho disponível para o público cuja avaliação surge como crucial para o pensamento do teatro sob a pandemia. Trata-se de uma provável série, agora com dois episódios – Eu de Você, com Denise Fraga, postada no canal da atriz no Youtube. Neste caso, parece fundamental reconhecer a existência de um híbrido de cinema e teatro.
A produção, bem cuidada, conta com razoáveis recursos de edição, traz algumas chaves técnicas a considerar para a realização de teatro na internet, em especial este tipo pré-gravado. O debate precisa acontecer de saída ao redor da exploração da linguagem cinematográfica, sujeita, neste caso, a variações tímidas, contidas pela condição de registrar algo que a atriz tem para falar, quer dizer, como se um teatro-voz delimitasse o desenho da linguagem.
Em geral, a tela é dela, ela está em close e dá o seu recado de forma bem objetiva. Um ou outro close busca um detalhe, as mãos, um objeto; o ângulo de algumas cenas puxa a atenção para algum detalhe, mas são afinal apenas formas simples para sublinhar o ato da fala da atriz – a mensagem, digamos, recorrendo a uma velha terminologia, cara ao teatro engajado.
Engajamento, aliás, aqui, adquire um sentido maior, novo – não é apenas a causa política imediata, automática, a chamada para a luta. Há, antes, um teatro que deseja revelar a intimidade do pensamento e, assim, sublinhar a necessidade do pensamento. O truque da cena consiste em desvelar momentos desta mulher pensando, um pensamento que interroga a vida. Quer dizer, o voto é o de sugerir a transformação do cidadão: veja, pegue, a vida é sua, mude.
A cena roda ao redor de um impasse colossal, além da quarentena. A mulher integra um casal confinado que vai se separar, tem um filho alienado da convivência caseira. Trancada e entregue a si, ela é uma mulher que sonha e que ainda quer se jogar no mundo, em especial no amor. Ela cita sem hesitar, mesmo sob um tom forçado, rompendo a ação, notícias revoltantes da vida aqui fora – as mortes da pandemia, a crise econômica geral, a morte bárbara do menino João Pedro, o assassinato brutal de George Floyd, a enfermeira exausta de trabalho no hospital. A rigor, são quase palavras de ordem do tipo “se liga, veja o que se passa no mundo”.
O efeito soa forte porque a mulher que está em cena é um ser afetivo, pura carne e sentimento. Espelho das tensões naturais da quarentena, ela lava um melão e pergunta pelo futuro. As sentenças não são domésticas, o efeito é insólito, puro ato de teatro. Se a concepção geral é pródiga no desenho dinâmico da cena, nos cortes ágeis e na variação de visões oferecidas da mulher-clausura, a atuação de Denise Fraga impacta por sua força teatral – a sua capacidade notável de irradiar humanidade e sentimento diante das oscilações da relação entre o eu e o mundo. Também aqui a tela é sugerida como espelho, mas não há uma entrega à dor, e sim à consciência, que seria a indicação de uma saída.
Finalmente, importa muito pensar o sentido de toda esta presença do teatro no mundo virtual. A sinalização irradiada por estas obras materializa uma certeza – o teatro não pára de pulsar, inquieto, preocupado em manter o ser humano sob o foco e no centro da tela. Em breve, será possível dimensionar ao lado, nos palcos, as marcas resultantes desta mutação. Sim, porque ela vai ficar, ao lado do teatro real – com certeza ela vai levar o teatro real à percepção mais aguda da nossa sempre frágil existência. No fundo, o problema é este: mentiu quem disse que o teatro parou. O teatro faz parte do motor da vida, segue com ela, ele não pára.
SERVIÇO:
Metropolitan – Met Streams Series – Ópera:
Junho 16: Rossini’s Semiramide
Regência: Maurizio Benini; com Angela Meade, Elizabeth DeShong, Javier
Camarena, Ildar Abdrazakov, e Ryan Speedo Green. (Originally broadcast March
10, 2018.)
Junho 17: Gluck’s Iphigénie
en Tauride
Regência: Patrick Summers; com Susan Graham, Plácido Domingo, e Paul Groves.
(Originally broadcast February 26, 2011.)
Junho 18 e 19:
Verdi’s La Forza del Destino
Regência: by James Levine; com Leontyne Price, Giuseppe Giacomini, Leo Nucci, e
Bonaldo Giaiotti. (Originally broadcast March 24, 1984.)
Junho 20: Philip
Glass’s Akhnaten
Regência:Karen Kamensek; com Dísella Lárusdóttir, J’Nai Bridges, Anthony Roth
Costanzo, Aaron Blake, Will Liverman, Richard Bernstein, Zachary James.
(Originally broadcast November 23, 2019.)
Junho 21: Philip
Glass’s Satyagraha
Regência: Dante Anzolini; com Rachelle Durkin, Richard Croft, Kim Josephson, e
Alfred Walker. (Originally broadcast November 19, 2011.)
Concerto da Benedetti Foundation:
#benedettisessions #nicolabenedetti #virtualbenedettisessions
Virtual Benedetti Sessions Celebration Concert: The Grand Finale
TEATRONET
Onde estão as mãos esta noite
Uma peça de quarentena
Com Karen Coelho
Dramaturgia Juliana Leite
Direção Moacir Chaves
Direção de arte de Luiz Wachelke
Sessões: 18, 19, 20 e 21 de Junho, quinta a domingo às 20h, matinê sab às 15h.
Pelo ZOOM – reservas: maosaoteatro@gmail.com
Denise Fraga – Eu de você – youtube:
Criação: Cassia Conti, Denise Fraga, Luiz Villaça, Rafael Gomes e Silvia Gomez
Roteiro: Silvia Gomez
Redação final: Rafael Gomes
ência: