O grão de ervilha e o chão do mundo
Não sinta vergonha: é normal sonhar com o mundo, com a vida fora de nossa pequena aldeia. Talvez a aldeia exista para ser um pouso de decolagem em direção à vida, logo, ao mundo. Então, está tudo certo: faz parte do nosso jeito de ser a vontade de partir.
Até porque, vamos combinar, se a aldeia é forte, ela sobrevive dentro de cada filho. Portanto, não adianta querer fugir do Brasil, pois ele seguirá dependurado nos seus ombros, para o bem e para o mal. Isto enquanto a vida seguir assim, com esta divisão histórica em países, cercados por fronteiras, às vezes de arame farpado.
Imaginei, lá pelos anos 1970, a possibilidade de nascimento de um novo mundo, de irmãos, cidadãos fraternos, uma só nacionalidade: terráqueos. Acreditei piamente no projeto da união europeia e entrevi, nas negociações, uma Europa iluminada capaz de apontar caminhos. Quando o quintal do mundo começava a jogar pedra na casa-grande, eles traziam uma nova utopia. Mas real, palpável.
O tempo passou, as fronteiras e os poderes resistiram firmes. E o mais curioso de tudo é que, aqui no Brasil, o principal agente divulgador do projeto da Europa Unificada foi o Conselho Britânico. Hoje, já não sabemos dizer se sobrevive no horizonte algo da velha utopia, agora mais parecida com delírio hippie do que projeto político universal. Era mesmo uma utopia?
Agora, as aldeias seguem sólidas, como as barreiras alfandegárias. Insistem em demarcar quem somos, definir a forma de ser de cada um de nós. Arbitram para onde podemos ou não ir, onde devemos ficar. Nestas horas, lembro sempre de uma encantadora história da infância.
Era a história de uma princesa, tão bela quanto cheia de iniciativa. Um dia, impetuosa, ela saiu castelo afora para passear pelo mundo. Enveredou pela floresta e pá – claro – se perdeu, pois era princesa e não um ser vagante acostumado com o mato.
Andou, andou, rasgou as belas roupas em galhos secos, levou um vendaval de galhos e folhas, virou uma figura maltrapilha. Ficou exausta. Mas, abençoada por aquela estrela que segue sempre as princesas, viu, de repente, luz ao longe. Era um castelo.
Aproximou-se aflita, indagou quem morava ali. Pediu para falar com a rainha imediatamente – e, apesar dos farrapos, foi atendida. A rainha olhou com absoluta descrença aquela pessoinha em retalhos. Mas, como era educada e hospitaleira e tinha um filho encalhado para casar, resolveu testar a garota.
Mandou que preparassem um belo quarto, com imensos colchões de penas de ganso. Porém, sob a enorme pilha, ordenou que deixassem um grão de ervilha. Depois de um banho reconfortante e uma sopa quente, a moça foi dormir.
Na manhã seguinte, a rainha recebeu-a para o desjejum. A mocinha estava desfigurada. A rainha indagou a razão de seu mal estar. A jovem lamentou o fato, sentenciou que não queria ser descortês, o quarto era ótimo, os colchões esplendorosos, mas… passara a noite sem conforto qualquer, pois parecia haver, sob a pilha macia, algo muito agressivo, talvez alguma pedra…
A rainha vibrou de alegria: o seu filho estaria muito bem casado. Pois só uma autêntica princesa sentiria, sob as pilhas memoráveis de colchões, a presença incômoda de uma ervilha. E o fato parece ser bem este, cada um de nós tem a sua ervilha, o seu modo plebeu ou principesco de ser, ditado por sua aldeia. O problema é saber se isto é fortuna ou defeito.
Lembro de amigos que viveram no exterior por um belo tempo e que retornaram como se a partida tivesse sido na véspera, eles nem sequer se tornaram fluentes no novo idioma de acolhimento. Levaram consigo, e cultivaram sempre, a vida da aldeia em que nasceram.
Pois então – páira no ar agora a sensação de que a utopia retorna. Quem sabe um dia seremos apenas a aldeia terra, sem mais? O grande arauto a anunciar o feito é o teatro. Se olharmos com atenção, faz tempo que a arte da cena se estende, se desdobra e acena para um formato universal.
As grandes navegações dos palcos, se podemos chamar assim a primeira epopeia teatral de conquista do mundo, começaram no século XIX, com a invenção do turismo e das rotas transatlânticas. A nova trama mundial encontrou, pronto para navegar, o teatro europeu dos grandes astros. Eles puderam, então, estender o seu poder para palcos além aldeia.
Um teatro de estrelas se lançou ao oceano. São mais conhecidas Sarah Bernhardt e Eleonora Duse. A lista, no entanto, não tem fim: incorpora Adelaide Ristori, Tommaso Salvini, Ernesto Rossi, Emília das Neves, Coquelin Aîné e vai…
Com as grandes guerras, a invenção do avião e o declínio progressivo da navegação a vapor, este curioso teatro do mundo se recolheu. Afinal, nos grandes navios dava para carregar cenários imensos e variados, figurinos originais, extensa companhia e, muito prático, se podia tanto ensaiar como fazer apresentações a bordo. Nada disto cabia dentro de um avião (ou o preço seria estratosférico!).
A pausa, porém, foi curta. Logo a rede teatral internacional retomou o ímpeto para buscar romper os limites aldeões e bem recentemente o cenário se tornara impressionante. Uma grande montagem de Andrew Lloyd Webber poderia estrear em Londres e/ou Nova Iorque e logo pipocar pelo mundo – inclusive excursionar pelo extremo oriente.
Sim, o Brasil ficou de fora. Ou quase – talvez se deva pensar como exceção a industriosa cidade de São Paulo, definitivamente um caso particular. De resto, o país foi se tornando uma espécie de princesa perdida na floresta, sem qualquer sinal de castelo no horizonte. Várias razões favoreceram a desconexão do país com a cena do mundo. Sim, em particular, há a bela crise carioca.
Agora, temos uma notável crise nacional, com um governo aldeão no pior sentido da palavra: é tosco, rudimentar. Temos um presidente que elegeu como norte a aclamação das trevas, instaurou um jogo político pesado, de recessão humana. Quer dizer, floresta densa.
Nesta trama obscura, o teatro não é reconhecido como arte essencial à vida, uma poética por excelência do humano – tudo o que um governo de assumida miséria política não quer é reconhecer a sua identidade. Ou favorecer a percepção do outro.
Tornou-se mais difícil, portanto, para o Brasil e para o teatro brasileiro, a participação no projeto mundial de expansão teatral das aldeias. Até mesmo a retomada da vida corrente, com as políticas pífias de saúde e vacinação adotadas aqui, se tornou uma proeza notável – o país caminha para uma derrocada de dimensão assustadora.
Assim, naturalmente, o mundo ficou bem mais longe. E é com espanto e admiração que vemos a volta da vida teatral nos grandes centros. A Broadway de novo se agita, programou a retomada e comanda a abertura das cortinas, os cartazes retornam às cenas ou começam as atividades.
Em Londres, Andrew Lloyd Webber anunciou a estreia solene para esta semana de sua nova versão da Cinderella, sintonizada com os tempos humanos atuais. O músico consagrado começou valente, declarando guerra às restrições sanitárias vigentes para a reabertura com lotação total do Gillian Lynne Theatre. A multa prevista era polpuda.
A bravata durou pouco, Webber retrocedeu, a casa será aberta apenas com metade da lotação e todos os cuidados sanitários exigidos pelas autoridades. Tudo indica que será uma grande festa, agora definitivamente distante dos brasileiros amantes de teatro.
Pois assim é. Nem podemos contar com visitas internacionais, nem podemos planejar com facilidade uma escapada teatral. Contudo, apesar desta condenação rigorosa à existência aldeã, a marcha da História segue adiante e, claro, está ao lado de quem sonha.
Pois o teatron – teatro online – está a pleno vapor. E, se não podemos trilhar os caminhos convencionais para olhar de perto nossas cenas ou para chegarmos às cenas do mundo, surgem caminhos para o mundo chegar aqui.
A notícia sensacional estourou como um clarão na floresta na semana passada, assinada pelo grupo Os Satyros. Foi a estreia mundial de The Art of Facing Fear, encenação com atores de 25 países, espalhados em 5 continentes, sob a direção do brasileiro Rodolfo García Vázquez, diretor da cia nacional.
A peça, produção conjunta do Brasil e da Índia, dois dos países mais atingidos pela pandemia, acontece online, com transmissão ao vivo. O tema é o coração da vida hoje: a perplexidade e o medo mundiais diante da pandemia do coronavírus.
O projeto nasceu no ano passado – portanto já tem uma dimensão histórica importante. A origem é a montagem, em junho de 2020, da peça digital A Arte de Encarar o Medo, realizada em versões brasileira, afro-europeia e norte-americana.
A peça foi reconhecida como um dos trabalhos icônicos criados a partir da pandemia. Em destaque, figurou a sua potência para falar da perplexidade e do medo diante de uma situação desconhecida, compartilhada por todo o planeta, ainda hoje pródiga em perguntas sem resposta.
A versão mundial conta com atores de múltiplas nacionalidades: Alemanha, Angola, Argentina, Cabo Verde, Coreia, Cuba, Bolívia, Brasil, China, Filipinas, França, India, Indonésia, Irã, Nigeria, Quênia, Reino Unido, Rússia, Singapura, USA e Venezuela. A beleza da proposta já nasce desta trama mundial – cada ator fará a peça de sua casa, numa orquestra admirável de fusos horários, sob a direção de Rodolfo García Vázquez.
Também quanto à produção, a proposta se tornou uma abertura do limite da aldeia – a montagem de agora é uma coprodução da cia Os Satyros com a organização The Red Curtain International, da Índia. A experiência das duas equipes em trabalhos de cooperação internacional se tornou uma ferramenta decisiva para viabilizar o projeto. O idioma básico da montagem é o inglês, mas haverá inserções de idiomas locais.
Da mesma forma, o texto original se manteve, mas a intenção básica é o diálogo com a vida. Assim, frisa o diretor, a peça surgirá renovada, em função da passagem do tempo. E mais – os trabalhos dos Satyros sempre reconhecem as condições sociopolíticas, econômicas e culturais dos artistas envolvidos em cada produção. Neste horizonte, não há chance de ignorar, no roteiro, a dinâmica desenvolvida com um elenco de tal naipe, transcultural, transnacional.
Então talvez exista uma luz, uma indicação de caminho, por entre os ramos cerrados da floresta. Uma montagem de tal envergadura não pode passar ignorada pela cena teatral brasileira. Talvez ela signifique um sinal novo, exponha a marca do tempo.
Em lugar de eliminar a aldeia, para mergulhar no mundo, parece que chegou a hora de reconhecer que o mundo é a aldeia das aldeias, a aldeia de toda a humanidade – simplesmente o lugar em que a vida é necessária e possível. E sob este desenho, esta nova grande aldeia deve ser cultuada, como se contivesse, introjetado, aquele mesmo limite que nos fazia, dentro da aldeia primitiva de outrora, nos sentirmos seguros, abrigados.
FOTO: ATOR PAULO FIGUEIRA (ANGOLA)
DE OLHO NO MUNDO:
Cinderella
FICHA TÉCNICA RESUMIDA:
A nova Cinderella musical
De: Andrew Lloyd Webber, David Zippel e Emerald Fennell
Estreia: 25 de Junho
Gillian Lynne Theatre, Londres.
Elenco:
Carrie Hope Fletcher – Cinderela
Victoria Hamilton-Barritt – Madrasta
Ivano Turco – Príncipe (Sebastian)
Rebecca Trehearn – Rainha
Georgina Castle and Laura Baldwin – Irmãs
Gloria Onitiri – Fada.
Diretor – Laurence Connor
Coreografia – JoAnn Hunter
Cenário e figurino – Gabriela Tylesova
Som – Gareth Owen
Iluminação – Bruno Poet
SCo-supervisor musical – John Rigby.
The Art of Facing Fear
A Arte de Encarar o Medo
SERVIÇO:
PRÉ-ESTREIA: dia 18 de junho (6ªf), às 21h30 (horário de Brasília) com legendas em português
ESTREIA: dia 19 de junho (sab), às 15h e 23h (horário de Brasília)
TEMPORADA GRATUITA
APRESENTAÇÕES E HORÁRIOS (horário de Brasilia):
18/06 (6ªf) às 21h30
19/06 (sab) às 15h e 23h
20/06 (dom) às 8h
26/06 (sab) às 15h e 23h
27/06 (dom) às 8h
03/07 (sab) às 15h e 23h
04/07 (dom) às 8h
RETIRADA DE INGRESSOS: a partir de 1º de junho em https://www.theredcurtaininternational.org/
DURAÇÃO: 60 min / CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 16 anos / GÊNERO: drama / TEMPORADA: até 04 de julho
FICHA TÉCNICA:
Produzido por The Red Curtain International e Os Satyros
Dirigido por Rodolfo García Vázquez
Escrito por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Elenco
Abel Garcia
Antonio Peredo Gonzales
Bola Stephen-Atitebi
Bong Cabrera
Chasse Jingya Peng
Inna Lipovets
Fenny Novyane
JF Cuvillier
João Branco
Mahana Narimani
Maria Brighenti
Mariana Alom
Nakasha Norwood
Nina Erst
Nina Denobile Rodrigues
Nirmal Sekhar
Norberto O. Portales III
Paulo Figueira
Onyango Daisy A.
Roxanne Korda
Rutva Satish
Sedona Vivirito
Sabrina Denobile
Segun Adefila
Shirleen Ishenyi
Victoria Chen
Yena Gim
Apoio Cultural Associação Paulista dos Amigos da Arte, #CulturaemCasa e Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo
The Red Curtain International
Produtor: Sumit Lai Roy
Tesoureiro: Paul Lopez
Webpage: Tanmay Patel, Gordon Grant
Gerente de Relações Publicas: Radha Iyengar
Time de Relações Publicas: Aishwaria Sherine, Ananya Ravi Shankar, Dyan Boby, Karen David, Shivani Meherwade, Sneha Raitani
Os Satyros
Direção: Rodolfo Rodolfo García Vázquez
Dramaturgia: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Participação em Vídeo: Ivam Cabral
Design de Aparência: Adriana Vaz
Assistência de Design de aparência: Letícia Gomide
Multimídia Designer: Henrique Mello
Iluminação: Rodolfo García Vázquez
Fotografia: Andre Stefano
Trilha Original: Marcelo Nassi
Produção: Janna Julian
Produção de captação: Silvio Eduardo
Marketing e Social Media: Diego Ribeiro e Isabella Garcia
Assessoria de Imprensa: JSPontes – João Pontes e Stella Stephany
THE RED CURTAIN INTERNATIONAL
https://www.theredcurtaininternational.org
The Red Curtain International é uma organização sem fins lucrativos criada em Calcutá, India, em 1969, para apresentação de peças teatrais e festivais em beneficio de causas sociais. Atualmente baseada na Georgia, Estados Unidos, dedica-se a promover o teatro digital.
É formada por artistas e profissionais de outras áreas que apoiam a arte.
Não são cobradas taxas para se tornar um membro. Todo aquele que tiver participado de uma peça ou festival produzido pela organização, pode se tornar membro. Doações para os eventos produzidos pelo TRCI são frequentes e bem vindas, e quem doa torna-se membro, caso deseje.
Assessoria de Imprensa Brasil: JSPontes Comunicação