
Uma Semana Santa histórica: ela foi encerrada com a morte do Papa Francisco, um líder espiritual que se projetou com rara beleza neste nosso mundo tão pródigo em crises. Apesar de a Igreja Católica ser um organismo resistente e ainda manter uma distância considerável diante das mudanças da vida no mundo, as contribuições do Papa Francisco ficarão como sinalizações fortes em direção à renovação.
Um dos pontos importantes de seu pontificado foi a abertura de espaço para cardeais da Ásia, da África e da América Latina – sacudir a secular estrutura eurocêntrica da Igreja não é algo para desprezar, não é feito de pouca importância. Talvez ainda não seja o momento para a eleição de um papa não branco, mas o caminho está aberto.

O reconhecimento da diversidade da vida no mundo é uma conquista recente, um processo radioso de percepção da riqueza da multiplicidade humana que somos. É importante perceber a rapidez do processo de mudança – ainda que ele pareça lento para alguns.
Se a África ainda sofre dilacerada com os resultados da expropriação colonial, em particular com o processo de partilha de seu território no século XIX, especialmente nefasto no Congo, ainda hoje terra ardente, a arte tratou de construir pontes e aproximações de impacto profundo.
Vale lembrar Picasso (1881-1973) e a influência da arte africana sobre o Cubismo – o artista repensou a sua poética a partir de uma exposição de máscaras e esculturas africanas apresentada no Museu do Trocadéro, em Paris. Este é apenas um exemplo, a lista pode ser longa; ela aponta para um lugar de encontro formal inclinado a demonstrar a inteireza do que é humano.

Portanto, a livre expressão e a divulgação ampla das obras artísticas constituem fatores básicos para a transformação das pessoas e da sociedade. A arte precisa ser mantida em diálogo, em trânsito, não apenas para se comunicar, acontecer como arte, mas para levar o humano a ver o humano como amplidão e unidade. O processo de difusão precisa abranger tanto a exposição quanto a reflexão, o debate.
No caso do teatro, é fundamental montar as peças, trazer à cena a rica herança dramatúrgica da sociedade, mas também publicar os textos. Em relação à temática da arte negra, um exemplo interessante para debater é o do teatro de Athol Fugard (1932-2025), homem de teatro sul-africano branco, campeão na luta contra o apartheid e o racismo. A sua obra, de uma densidade impressionante, não está divulgada no Brasil e não está sequer publicada aqui. Aliás, ele morreu este ano sem manifestações diante da perda.
Sim, existem exemplos bem mais fortes, se olharmos para o próprio Brasil. De saída, temos o nome de Abdias do Nascimento (1911-2011) – uma liderança notável no país, ainda bem menos prestigiado do que a magnitude de sua obra exige. Ele foi um intelectual dotado de uma inteligência aguda, escreveu textos fundamentais para o pensamento brasileiro. Foi ativista, político, líder do movimento negro nacional e idealizou o TEN – Teatro Experimental do Negro.

Abdias do Nascimento
Muitas pesquisas e estudos ainda precisam ser feitas ao redor de sua obra – o próprio TEN ainda não foi estudado em toda a profundidade que requer. Afinal, a ideia central era a de um movimento verdadeiramente emancipador, capaz de iluminar a cultura negra, revelar talentos negros e disseminar na sociedade a fortuna cultural afro-brasileira.
Pois uma boa notícia está no ar, renovando o clima triste desta semana: na Sala Multiusodo SESC Copacabana, estreia no dia 24, quinta-feira, a peça Abdias do Nascimento, texto de Ivan Jaf e Diego Ferreira, com direção de Johayne Hildefonso e Iléa Ferraz. A proposta foi idealizada pelo ator Lincoln Oliveira, que defenderá o papel protagonista.
Em cena, Abdias aparece como ator, sob a direção de Paulo Guidelly – a situação escolhida funciona como recurso para apresentar a vida e a obra do grande ativista. Mas a peça reconhece que, a rigor, a figura de Abdias ultrapassa o foco estreito de uma simples valorização de vida e obra. O que se deseja mostrar é exatamente como a sua ação foi monumental, não no sentido de uma celebração retórica, para decorar praças e galerias, mas sim naquilo que desencadeou para transformar o país.
O ponto de partida, no caso, é o Teatro Experimental do Negro, de 1944, início de um movimento em defesa da presença negra nos palcos, mas que, para que se cogitasse chegar a tanto, significou lutar contra restrições sociais, políticas e mentais – considerando-se que o racismo se consolida muito a partir de sua condição de pensamento cotidiano, imediato e invisível. E considerando-se que a situação de miséria social significava também interdição do acesso ao estudo e à cultura. Isto sem que se fale nos impedimentos de expressão lançados contra a cultura negra.
Assim, a peça promete ser bem mais do que uma homenagem ou uma peça em louvor. O tecido pulsante da cena é o agradecimento, a memória afetiva, o reconhecimento do valor de um homem destemido, capaz de perceber os grilhões inaceitáveis impostos ao povo negro, e de lutar por mudanças. O resultado de sua coragem está bem vivo ao redor: mudou a sociedade brasileira, até por ter aberto o caminho para muitos outros seres de luz, que aderiram à luta.
No fundo, nesta semana em que ficou muito plausível pensar na possibilidade de termos um Papa Negro, a peça Abdias do Nascimento soa como o anúncio de um lugar teatral de intensa expressão brasileira – um lugar em que limites arcaicos foram vencidos a favor de uma forma de humanidade renovada, mais plena. Notícia feliz, em resumo. Afinal, é um prazer enorme constatar o fato de que a humanidade, muito embora devagar, anda para a frente…

Abdias do Nascimento
FICHA TÉCNICA:
IDEALIZAÇÃO: Lincoln Oliveira
TEXTO: Ivan Jaf (@ivanjafoficial) e Diego Ferreira (@diegodacostaferreira2017)
DIREÇÃO: Johayne Hildefonso (@johaynehildefonsooficial) e Iléa Ferraz (@ileaferraz)
ELENCO:
Lincoln Oliveira (@lincoln.oliveira.7545708) – Abdias do Nascimento
Paulo Guidelly (@pauloguidelly) – Personagem do diretor
João Vitor Nascimento (@ojoaovnascimento) – Stand In do personagem do diretor
FIGURINO E CENÁRIO: Nello Marrese (@marresenello) e Monica Carvalho (@monicacarvalhoklausschneider)
TRILHA SONORA: André Abujamra (@andre_abujamra)
ILUMINAÇÃO: Daniela Sanchez (@danisanchez1)
COORDENAÇÃO GERAL e PRODUÇÃO EXECUTIVA: Beto Bruno (@beto_bruno) e Dora Lima (@doramarialima)
MÍDIAS SOCIAIS e IDENTIDADE VISUAL: Conexione – @conexionebr
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Carlos Pinho – @dicasdopinhao
REALIZAÇÃO: EVOÉ PRODUÇÕES ARTÍSTICAS
SERVIÇO:
Teatro SESC Copacabana – Sala Multiuso
Temporada: de 24 de abril a 18 de maio
Dias e horário: quinta-feira a domingo, às 19h
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: R$ 10 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Informações: (21) 3180-5226
Bilheteria – Horário: terça a sexta-feira, das 9h às 20h, sábados, domingos e feriados, das 14h às 20h
Duração: 60 minutos
Classificação Indicativa: 12 anos
Site do SESC Rio: https://www.sescrio.org.br/programacao/artes-cenicas/abdias-nascimento-axes-de-sangue-e-esperanca/
Rede social: @abdiasdonascimentonoteatro