
A guerra está em nós
Guerra branca: este parece ser um bom nome para o nosso conflito atual. Não, não falo dos confrontos sociais, dos assassinatos frios, das formas inusitadas de cancelamento do outro, das escolhas de ser inflexíveis.
Falo do nosso ser interior. Da perplexidade diante da cilada histórica ao redor, a surpresa de viver um momento histórico daqueles que estarão nos livros dos futuros. Falo do incomodo de ser exatamente isto: página. Seremos página dos manuais históricos dos nossos descendentes.
Mas, aí está o problema, não sabemos o que seremos. E por quê? Simplesmente não sabemos o que somos… Parece inacreditável viver no meio de tantos avanços da ciência e, de repente, tombar refém de um vírus. Um treco imprevisível, capaz de matar alguns amigos queridos e, em outros, atacar sem deixar qualquer marca. Um bicho doido solto na vida e no mundo.
A consequência é dolorosa. De repente, apesar de todos os impulsos e necessidades gregárias, somos pessoas sós, apenas, solidão em dó maior. Sim, dó, temos pena de nós, ilhados em nós. E no entanto, por vezes, sentimos um enorme alívio, graças à imensa desobrigação social agora imposta a cada um. Surge aí uma ponta do conflito.
Mesmo quem circula, quem precisa sair para trabalhar, andar de transporte público e encontrar pessoas, está diante desta nova experiência – saber-se só, por trás da máscara, em estado de desconfiança, atento à necessidade de água-sabão-e-álcool. Éramos mesmo uma sociedade do abraço e do encontro?
O fato é bem este – existe o isolamento social, obrigatório para grupos humanos mais frágeis e para quem pode fazer o trabalho em casa. E existe o isolamento humano – universal, obrigatório para todos, até para os que circulam, condição tão essencial para a sobrevivência quanto o ato de respirar.
O desafio do isolamento humano corta a alma em tiras finas, como se fosse uma folha de couve na mão de exímia cozinheira. Nunca vivemos nada parecido. O que pensar, o que sentir, o que fazer? Quem efetivamente somos?
Quanto tempo de autoemparedamento, presos em nossos corpos, suportaremos viver? Qual o sentido do avanço tecnológico de nossa era se a vida não tem garantia de vida, sucumbe diante de um vírus? Temos um mundo de tecnologia e um mundo de solidão.
Sei bem das ideias tresloucadas dos malucos beleza. Sim, existe um povo que optou por pensar a existência e a sociedade sob a aura de um negacionismo lírico fantasista, delirante. Para eles, as explicações se fundam no desvario, não na lógica formal ou na história.
Faz tempo que não encontro com alguns dos grandes malucos beleza que topei pela vida – com certeza, muitos deles vão explicar a crise como intervenção de uma inteligência extraterrestre, preocupada em corrigir o rumo torto da vida na Terra. Teriam soltado um vírus para dar lição, simples como água.
Parecem histórias para rir, sempre pensei. Como alguém pode pensar de uma forma tal, capaz de rejeitar por completo toda a obra do pensamento humano? Pois se o que nos acontece, das pirâmides aos computadores e aos vírus potentes, é obra pura de ets, para que serve mesmo a inteligência humana? E eles não percebem que reproduzem as sagas religiosas punitivas mais toscas?
No entanto, quem sabe insinuam, no desvario, certa luz. Talvez a chave para o armistício, o fim da nossa guerra interior, passe um pouco por aí. Nasceria de uma singela pergunta, nada estranha ao pensamento dos loucos. Será que a nossa inteligência andou rápido demais, se distanciou demais dos corpos e da vida? A qual senhor a nossa ciência tem servido?
Neste caso, o vírus pode se tornar uma arma branca, branca no sentido da paz. E a expressão guerra branca poderia ganhar uma dimensão esclarecedora. Guerra branca não seria o drama de viver em estado de isolamento humano. Seria a possibilidade de um novo pensamento: o resultado de viver um formidável e inédito conflito interior, capaz de nos levar a uma nova conexão com o mundo. E mudar tudo – talvez como os deuses sempre queiram.
Enquanto a civilização sobrevive, isolada, a cabeça dos artistas roda e tenta encontrar caminhos. Alguns espetáculos teatrais novos trabalham um pouco certos aspectos deste tema. Com estreia hoje, gerados na dinâmica cidade de São Paulo, temos Aquele que caminha ao lado, especialmente concebido para as plataformas digitais, e Guerra em Iperoig.
O texto da primeira peça, de Daniela Smith, explora situações de conflito extremo, na fronteira entre o real e o virtual. Serão sete apresentações ao vivo, na plataforma Zoom, editadas em tempo real e veiculadas pelo Youtube.
A estrutura reúne três diferentes cenas – A Outra, A Marca do Recusado e Do Outro Lado do Mar. Elas se fragmentam, se complementam, sob uma estética inspirada nos filmes Pulp Fiction e As Horas. A nota dominante é o olhar para o inusitado da vida.
Dois eixos fortes percorrem a obra – as ideias de solidão e do outro. A sua potência é sublinhada graças à referência ao conceito de duplo – a hipótese de existência de uma réplica de si, passível de ser encontrada durante a vida.
Seria uma espécie de gêmeo maligno, abordado na história da literatura em obras como William Wilson, de Edgar Allan Poe, e O Outro, de Jorge Luis Borges. As três histórias justamente exploram a convivência consigo mesmo e com o outro. E rondam os limites desta convivência, os seus conflitos e ergarçamentos.
A segunda montagem interessante para o debate do tema é o novo trabalho da mundana companhia, Guerra em Iperoig, cartaz do Teatro Oi Futuro Flamengo, para quatro exibições ao vivo transmitidas online. Aqui, a História traz a presença forte da pergunta a respeito do outro.
A própria concepção da estrutura da mundana companhia lida com o tema da solidão humana em sintonia com a possibilidade de cooperação. Ela nasceu da militância política dos artistas em São Paulo, a partir do movimento Arte contra a Barbárie.
Nesta inquietude, desde 2000 os atores-produtores Aury Porto e Luah Guimarãez optaram pela criação de um núcleo artístico que, a cada trabalho, reunisse um conjunto de colaboradores. Assim, a cada projeto a companhia apresentaria um novo corpo, regido pela ideia de continuidade na transitoriedade. Neste trabalho, a cena nos traz de presente o encanto de ator que é Silvero Pereira.
O grande tema da nova peça do conjunto remonta ao estado de guerra brasileiro, guerra social, da História à atualidade. Duas referências incandescentes foram articuladas, a guerra da implantação da estrutura colonial e a guerra de extermínio social praticada hoje em diferentes sentidos no país.
A ideia inicial, a partir de uma proposta de Bruno Siniscalchi e André Santana, era pesquisar a Confederação dos Tamoios, no século XVII. O episódio histórico marcou o primeiro grande confronto entre colonizadores e tamoios, gerado pelas tentativas de escravização indígena.
Trata-se de um marco imponente no debate a respeito do extermínio das populações indígenas brasileiras. O objetivo da companhia é, precisamente, apontar para a complexidade dos problemas brasileiros – e, de certa maneira, a imensa solidão do indivíduo pensante no país.
Portanto, munição para a nossa nova guerra interior é que não falta. Como se trata de uma guerra branca, movida por um clamor absoluto pela paz, um belo arsenal da melhor munição está aí, em cena: ideias teatrais.
Desta forma, a guerra pode ser verdadeiramente branca, quer dizer, o oposto de si. E funcionar como arma para fuzilar preconceitos, mesquinharias e formas sociais de liquidação humana. Sim, vale formular no mais escondido de si um secreto desejo: que o enfrentamento do vírus nos dê régua e compasso para a construção desta paz.
SERVIÇO
AQUELE QUE CAMINHA AO LADO
De 14 de dezembro de 2020 a 25 de janeiro de 2021
Todas as segundas, às 20h
Duração: 55 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Peça de teatro online exibida pelo Youtube
Ingressos: www.sympla.com.br/aquelequecaminhaaolado
Preços: a partir de R$ 20
Ficha técnica
Texto: Daniela Smith
Idealização: Francisco Taunay
Direção: Francisco Taunay, Bernardo Vilhena e Thiago Sacramento
Atores: Alexandre David, Francisco Taunay, Katia Bronstein, Luciana Borghi, Nelson Moreira e Vanessa Pascale
Produção: Velocino
Produção Executiva: Marcelo Marrah
Direção de Arte: Milena Vugman
Figurino: Bia Salgado
Direção de Fotografia: Marcio de Andrade
Imagens ao Vivo (VJing): Thiago Sacramento
VFX e pós-produção: Rafael Galo
Música Original: Antonio Saraiva
Operador de Som: Bárbara Toledo
Pesquisa de Imagens e Videografia: Ana Costa Ribeiro
Programação Visual/ Design: Roberto Unterladstaetter
Visibilidade na Rede/ Marketing Digital: Priscila Corrêa
Assessoria de Imprensa: Flavia Tenório (LEAD Comunicação)
SERVIÇO
GUERRA EM IPEROIG – uma criação da mundana companhia
Temporada ao vivo: 14 a 17 de
dezembro
16 de dezembro – apresentação com tradução em libras
Acesso gratuito: Youtube do Oi Futuro, às 20h
Duração: 50 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
A apresentação do dia 16 de dezembro (quarta-feira) contará com tradução em libras.
informações à imprensa:
Adriana Monteiro
FICHA TÉCNICA
texto: André Sant’anna
roteiro: Aury Porto, Cristian Duarte, Joana Porto, Roberta Schioppa, Rogério Pinto e Zahy Guajajara
direção coletiva: mundana companhia
elenco: Aury Porto, Érika Puga, Silvero Pereira e Zahy Guajajara
participações de Anderson Kary Báya, Gui Calzavara, Igor Pedroso, Lian Gaia, Mariana Ximenes e Raquel Kubeo
Fotos de Renato Mangolin
cenografia: Rogério Pinto
iluminação: Wagner Antonio
direção musical: Gui Calzavara
figurino: Joana Porto e Rogério Pinto
direção vocal e interpretativa: Lúcia Gayotto
direção de movimento_Christian Duarte
colaboração conceitual_Renato Sztutman e Stelio Marras
operação de som e cortes_ Ivan Garro
assistência e operação de luz_Dimi Luppi
direção de palco_Arthur Costa
câmera, captação e edição de imagens e sistema de transmissões: Bruna Lessa – Bruta Flor Filmes
assessoria de imprensa_Adriana Monteiro
produção executiva _Bia Fonseca
produção_Aury Porto e Marlene Salgado
mundana companhia