Na multidão, ser um ser só. Ou ser um nada. A pressão do grupo social pode funcionar assim, como uma máquina de compressão humana, criadora de um tecido vivo único, roto, estendido sob a ação do tempo. É a base subterrânea da sociedade brasileira, modelada por brutais mecanismos coloniais de liquidação do ser. No entanto, o grito de liberdade existe: é a força teatral vertiginosa que move o deslumbrante espetáculo da Cia Atores de Laura, A Palavra que Resta, cartaz no Teatro Correios Léa Garcia.
A montagem se impõe como ato teatral obrigatório para todo e qualquer brasileiro – se você tem amor à sua pele, corra para ver. A trama foi estruturada a partir do livro do escritor cearense Stênio Gardel. O texto contundente tem como foco central a vida de Raimundo Gaudêncio de Freitas, obrigado a esconder a própria sexualidade diante de uma sociedade ultraconservadora, fiel a rígidos padrões heteronormativos, para que as pessoas existam como peças mecânicas de uma engrenagem de produção.
Como a vida não pode ser coisificada em engrenagens, de repente, ele encontrou o amor nos braços de um companheiro de vida e de trabalho. Descobertos, os jovens foram violentamente castigados pelos pais. Raimundo, expulso de casa por sua mãe, levou o seu amor para a vida, uma vida vivida nas sombras; Cícero fugiu e deixou uma carta para o namorado que, analfabeto, só irá ler o texto cinquenta anos depois.
A adaptação do romance assinada pelo diretor Daniel Herz faz justiça ao jogo central básico do texto, no qual cada sujeito é obrigado a renunciar a si, para viver como a multidão ao redor. Para chegar a tanto, ele conseguiu propor uma forma teatral coral de beleza requintada: nela, narração e dramatização encontram uma harmonia surpreendente. Isto significa a proposição, já no texto, de uma relação peculiar com a plateia: a um só tempo, há o arrebatamento afetivo, graças às cenas dramáticas bem desenhadas, e a percepção racional, intelectual, gerada por formas narrativas impregnadas de teatralidade.
O achado foi transposto para a cena pelo diretor com a transformação do elenco – e vale exclamar, que elenco! enfim, são os magistrais Atores de Laura… – numa massa orgânica de contundente força expressiva. Os atores se revezam em todos os papéis, exatamente como se todos fossem um e cada um pudesse ser qualquer um do todo.
Em consequência, a atitude social de castração se revela em cena como um dispositivo de liquidação humana que devasta todas as pessoas, não apenas os que fogem aos padrões heteronormativos. Homens, mulheres, crianças, pais, mães, irmãos, irmãs, todos aparecem liquidados, em diferentes graus, diante do panorama de desertificação dos seres. A partir deste ritmo, a cena ultrapassa o drama, adquire tons trágicos: a fonte do mal revela as suas raízes profundas na estruturação da alma social.
A tessitura, porém, vai muito adiante. O conceito firmado a partir do texto ressoa forte no palco para um lugar de criação além da felcidade da direção: há uma fabulosa afinação geral da proposta. Cenografia e figurino, de Wanderley Gomes, iluminação, de Aurélio de Simoni, e trilha sonora, de Leandro Castilho, desempenham funções expressivas de grande impacto para a obra acontecer com plenitude.
Para materializar o chão bruto, devorador de almas, Wanderley Gomes criou um impressionante revestimento de lona velha rústica que, de certa forma, abraça a cena, uma solução genial. A natureza inclemente, mais humana do que natural, se destaca graças a um imenso sol-lua branco, vigilante, abrasador, impassível. Pequenos bancos, panos, adereços praticáveis oferecem apoios mínimos para a ação, enquanto sublinham o peso da cena humana imutável.
O figurino ecoa o mesmo tom, do todo que submete tudo – a partir de macacões de jeans, o pano operário em roupa operária, subalterna, discretos recortes aplicados colorem os trajes, mas sem construir indivíduos de expressão plena, singular. Sobreposições de roupas e adereços sugerem variações humanas ao redor do mesmo, como se o imutável simulasse detalhes para se manter senhor de tudo.
A luz do consagrado mestre Aurélio de Simoni amplia tons, exacerba climas densos, incorpora vermelhos infernais, desenha alguma pacificação amorosa celestial. Vale destacar a força da iluminação para materializar pessoas que se fundem, se cristalizam num todo que é, afinal, apagamento dos seres. A trilha sonora estimula algum movimento humano ao redor do abismo permanente de não existir.
Este cálculo estético ousado mobiliza os atores com aquela garra só compatível com a rotina dos grandes grupos de teatro. Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Verônica Reis, integrantes da Cia, e Valéria Barcellos, atriz convidada, assumiram na carne intensamente o desafio de ser a um só tempo personagem e multidão. Em termos modernos, são atores-rapsodos, conforme a definição de Jean-Paul Sarrazac. Para a história do teatro brasileiro, levam adiante a técnica do coringa, do Teatro de Arena e de Boal, transportando-a para o estudo político das emoções. Não se trata mais de teatro engajado ou de denúncia, mas sim da busca objetiva de uma arte capaz de radiografar os rincões mais remotos da forma de ser do país.
Isto significa que, a partir da incorporação de pequenos detalhes de figurino, cada ator se transforma no protagonista da ação e atesta que, afinal, o drama encenado é patrimônio nacional, tragédia cotidiana de nós todos. Na pauta, não está apenas a tragédia reacionária brasileira que massacra os amores homossexuais, mas sim a forma histórica rude limitadora de todos os que vivem aqui, mesmo que os carrascos da hora teimem em não perceber a sua profunda miséria existencial.
Uma ousada geometria dos corpos, de profunda teatralidade, povoa a cena de ponta a ponta – neste caso, não se trata de ballet ou dança, mas antes de uma sofisticada expressão física dos sentimentos motores da cena. Há sempre um requinte poético profundamente teatral, capaz de levar a plasticidade dos corpos ao limite, sob a égide da palavra, que reina.
Em suma, o espetáculo seco, sem didatismo ou banalidade, capaz de incorporar toques surpreendentes de humor na sua tessitura densa, se revela uma forma cênica radical, uma declaração de profundo amor ao teatro. Por isto, a apresentação apaga o tempo: impossível perceber a duração do jogo cênico em sua concretude objetiva. E assim a cena mimetiza a realidade, pois a aridez da sociedade brasileira, de extrema crueldade com a potência dos seres, também nos envolve numa dura atemporalidade – como se vivêssemos ainda numa vala colonial, enfrentamos desvarios da vida social contrários à possibilidade de expressão plena das pessoas. Como se fosse possível impedir cada um de apenas ser. Como se fosse aceitável impor a cada ser a proibição de simplesmente ser. Então, não hesite, apoie a rebelião da sua alma diante da imposição histórica castradora em vigor por aqui, que nos constrange a ser uma massa informe ou um nada – a temporada é curta, vale insistir, corra para ver.
Ficha técnica
A Palavra que Resta
Texto original: Stênio Gardel
Adaptação e direção: Daniel Herz
Com: Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Valéria Barcellos e Verônica Reis
Cenário e figurinos: Wanderley Gomes
Iluminação: Aurélio de Simoni
Trilha sonora: Leandro Castilho
Programação visual: Luciano Cian
Fotos: Carolina Spork
Direção de Produção: CultConsult Produções e Escudero Produções
Produção executiva: Clarah Borges
Realização: Cia Atores de Laura
Assessoria de imprensa: Barata Comunicação e Dobbs Scarpa
Serviço
Teatro
Correios Léa Garcia
Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro.
De 10 de outubro a 30 de novembro.
Quinta a sábado, às 19h. 14 anos.
Plateia
Principal: R$ 80,00 (inteira) / R$ 40,00 (meia)
Plateia promocional: R$ 30,00 (inteira) / R$ 15,00 (meia)