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Eu, pecadora, confesso

Sim, confesso: com frequência, eu não entendo nada do Brasil. Nasci aqui, mas fazer o quê? A aldeia me trai, nossa conversa atravessa e eu fico no ar, atônita. Nestes momentos, sinto um ódio violento do meu país. Recorro ao pensamento, acalmo, o amor retorna. Vida dura.

Sábado passado, apesar de já acostumada a um longo retiro, iniciado em março de 2020 e rompido apenas três vezes para exames de saúde, obtive a graça de uma voltinha de carro. Era preciso comprar um remédio, senti um pouco de culpa, mas aproveitei o pretexto.

A tarde caía, vencida pelo mormaço da noite. E eu me senti japonesa. Logo na Lagoa, e depois por toda a orla, de Ipanema ao forte da Urca, uma multidão de gente alegre comemorava o verão. Muitos sem máscara, aglomerados e saltitantes.

Lembrei daquele japonês que se escondeu da guerra e, algumas décadas depois, apareceu, surpreso, verificando o fim, já remoto, do conflito. Eu me senti bem assim: a pandemia acabou para este povo todo, só eu que não percebi? Ninguém me avisou? Ou este povo enlouqueceu?

Ao mesmo tempo, as notícias ao redor não param de sacudir a minha percepção. Há um rol infinito de fatos sombrios: amigos doentes ou mortos, gente com sequelas rudes geradas pelo coronavírus, gente em desespero diante da crise. E o povo na rua alegre, como se estivesse festejando. Que gente é esta? Este é o meu país? Este povo tem alma?

No lado do teatro, a cena permanece tensa. Não há previsão clara de retomada plena das atividades. A cada momento, múltiplas formas de criação surgem, generosas, mas com baixo poder de retorno econômico. A vida se tornou um desafio sério para aqueles cujo maior talento é a arte de representar.

Bom, é mais grave. Toda a estrutura da atividade teatral foi atingida, abalada. O teatro mobiliza uma extensa cadeia produtiva, para recorrer aos termos dos economistas. Trata-se de uma atividade de mercado, é o sustento de milhares de famílias. Eles produzem bem estar social, ao garantir à população peças de qualidade, trabalhos de arte dedicados à exposição da sensibilidade de nosso tempo. São socialmente relevantes.

Mas são vulneráveis diante da pandemia. Se precisamos conter a pandemia, isto significa manter o isolamento social o mais amplo possível, enquanto não se tem acesso à vacina. Decorrência lógica, teatros fechados. Mas, então… vale a aglomeração sem máscara na praia, nos calçadões, nas muretas?

Este é o problema: não entendo, confesso, o que está acontecendo aqui. Recebo, ao mesmo tempo, as piores notícias a respeito da SBAT. Sim, a sociedade brasileira de autores teatrais, à qual me filiei, está em ruína total. Depende do auxílio – o menor que seja – de quem simpatizar com a arte e com a velha casa majestosa. Qualquer contribuição é bem vinda, a penúria é total.

Quer dizer, a casa, a sede histórica, está sendo entregue esta semana. O acervo precioso que ainda está na instituição seguirá para duas salas da Rua da Quitanda, cuja situação de liquidez também é precária. Se nada for feito, a SBAT vai ser extinta.

Fico chocada. Nenhuma grande instituição da cultura brasileira, nenhum grande nome da fortuna, do poder ou do saber nacional se mexeu em socorro da instituição. E bastava fazer pouco, muito pouco, é verdade – obter o perdão de dívidas na esfera pública, uma dotação inferior a muitos dos gastos correntes na República milionária, oferecer os direitos autorais de um bestseller…

E quem se importa? Somos aquela multidão de gente inconsequente suando sem máscara no calçadão, felizes com a latinha de cerveja e o espetinho sabe-se-lá-de-que na mão. Por quê se preocupar com uma instituição fundada em 1917, rica de histórias de arte e documentos? Qual a razão para defender a casa de Chiquinha Gonzaga, Joracy Camargo, Raimundo Magalhães Jr, Oduvaldo Viana, Dias Gomes, João Bethencourt, Ziraldo – para ficar numa lista rápida e aleatória?

Enquanto não soubermos reconhecer e enaltecer os nossos valores, aclamar os grandes criadores da nossa arte, não podemos pensar em ter solidez enquanto nação. A queda da SBAT revela muito da nossa decadência, é mais um motivo de vergonha nacional. Somos um país que desaba e somos a dinamite.

O caso denuncia o vazio de liderança que varre o país – não temos ninguém comparável a Paschoal Carlos Magno, Carlos Miranda, Orlando Miranda, B. De Paiva, Lúcia Camargo, Simeão Leal. Não temos grandes gestores estadistas capazes de discernir o que importa para a grandeza do país e agir. Vivemos um abismo humano no poder.

Então, sigamos, para baixo e para o fundo, lema contrário àquele do teatro musical. Quem sabe se há um esritor sob os escombros da SBAT e do país com olhos atentos capazes de dimensionar a terra arrasada? Quem sabe se desta imensa tragédia nacional nasce um teatro – uma arte pulsante capaz de ajudar a recompor tantos dilaceramentos?

Pois a luta da arte segue, vai adiante, com as armas disponíveis. O teatro não vai ceder. Permanece de pé. Em São Paulo, a decisão de reabrir as casas de espetáculo adquiriu fôlego. Os planos de retomada começam a ser divulgados, ao lado de formas criativas originais geradas pela recessão. Duas propostas diferentes chamam a atenção neste janeiro.

De um lado, o teatro comercial busca voltar à forma presencial, sob protocolos sanitários rigorosos, inclusive a redução considerável da plateia. Chama a atenção a peça Para Duas, de Ed Anderson, direção de Elias Andreato, com Karin Rodrigues, Chris Couto e Claudio Curi, em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso desde o dia 8 janeiro.

Vale destacar o desenho temático do texto – um acerto de contas entre mãe e filha, cercado por inquietudes em relação às memórias e à família. Quer dizer, um olhar para os dramas interiores da individualidade. Ao mesmo tempo, uma proposta de investigação também do horizonte do indivíduo mobilizará um grupo teatral notável por sua dedicação ao estudo da linguagem teatral – o Grupo Tapa.

Natural do Rio, mas radicado em São Paulo desde o final do século XX, o Grupo Tapa figura entre os mais importantes coletivos históricos da cena brasileira. Sob a direção de Eduardo Tolentino, a equipe retoma neste janeiro, no Teatro Aliança Francesa, a sua mostra online, com diferentes trabalhos.

O cartaz deste sábado, Vidas à Margem, talvez seja o mais impactante dos anúncios do grupo, pois figura como uma abertura de caminhos criativos importantes, ao propor não apenas um trabalho cênico e atoral, mas uma pesquisa dramatúrgica. Isto sem falar no desenho temático, justo agora, quando a velha democracia norte-americana estremece sob arroubos individuais desmedidos.

O fio condutor da peça contem uma proposta estimulante para a reflexão. Ele aborda o sonho americano desfeito, numa realidade social que divide os cidadãos entre vencedores e perdedores, sem uma segunda chance para os deserdados. O título brinca com À Margem Da Vida, de Tennessee Williams, cuja tradução brasileira mais conhecida recebeu o nome de Zoológico de Vidro.

Portanto, temas recorrentes da dramaturgia americana do século XX estão em cena, com um homem (Flavio Tolezani) e uma mulher (Natalia Gonsales) vivenciando uma difícil relação, por estarem à margem do sistema.

Em resumo, o teatro respira fundo e traz, nestes dois exemplos, estudos atentos a respeito do ser humano em sociedade. Os seus projetos, sonhos, ambições, fracassos, egoísmos – a materialidade do ser em sociedade, no jogo com a sociedade, surge como foco objetivo. É a pergunta rascante em cena.

E tudo indica que, aqui, neste país tão estranho, estranho ao ponto de se tornar um contingente humano capaz de desafiar uma pandemia sem hesitação, este vem a ser um tema muito relevante. Talvez a pergunta esteja atrasada cem anos – deveria ter sido formulada no século passado.

Talvez por isto – entre outras variáveis e razões – a SBAT tenha falido e não tenhamos, no nosso íntimo, nenhum culto a qualquer autor, dramaturgo, brasileiro. Nem Millôr Fernandes escapa à nossa solene indiferença. Pois justamente o humano nos é estranho.

Neste caso, vale ler os norte-americanos. A sólida dramaturgia erguida por eles, cultuada por eles, pode ensinar bastante ao país. Arthur Miller, Tennessee Williams, Clifford Odets têm muito para nos dizer; afinal, estamos atrasados um século.

 Por mais que o sonho americano possa ser definido como mais um sonho, sobrevive por lá a ideia de democracia, a crença no direito social pleno do indivíduo.

O que por lá se pode vir a fazer com isto, bem, esta é uma outra história. Antes de nos aglomerarmos de cara limpa e peito aberto, devíamos tentar pensar se é apenas esta solidão bruta e egoísta à deriva o que nós, por aqui, verdadeiramente somos.

FICHA TÉCNICA:

SBAT – SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS –

RENOVAÇÃO DA ANUIDADE 2020 OU DOAÇÃO: CONTA BRADESCO, AGÊNCIA 0478, CONTA CORRENTE 40920-0, CNPJ 33646456/0002-63

SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS. ATENÇÃO: A CHAVE PIX É O MESMO NÚMERO DE CNPJ SEM OS PONTOS E SÍMBOLOS.

INFORME O DEPÓSITO EM financeiro@sbat.com.br

SAIBA MAIS:

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DOAÇÕES PELA LEI ROUANET: DEDUÇÃO TOTAL DE 4 OU 6% DO PRÓXIMO IMPOSTO DE RENDA.

FICHA TÉCNICA:

Para Duas

Texto: Ed Anderson.

Direção: Elias Andreato.

Assistente de Direção: Rodrigo Chueri.

Elenco: Chris Couto, Claudio Curi e Karin Rodrigues.

 Cenário e Figurino: Fábio Namatame.

Assistente de figurino: Juliano Lopes.

Trilha Sonora: Jonatan Harold.

Iluminação: Cleber Eli.

Comunicação Visual: Alexandre Brandão.

Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes.

Produção: Nosso Cultural.

Direção de Produção: Ricardo Grasson.

Produtor Executivo: Heitor Garcia.

Gestão de Projetos: Lumus Entretenimento.

Fotos: Kim Lee Kyung.

SERVIÇO:

Teatro Sérgio Cardoso – Sala Paschoal Carlos Magno

Rua Rui Barbosa, 153 – Bela Vista. São Paulo – SP | 01326-010

Temporada: De 8 de janeiro a 1º de fevereiro.

Sexta e sábado, às 19h. Domingo e segunda, às 20h.

Duração: 60 Minutos. 

Classificação: 12 Anos.

Capacidade Sala Paschoal Carlos Magno: 58 lugares (40% da capacidade total da plateia, conforme estabelecido pelo protocolo do Governo do Estado e da Prefeitura da capital).

Ingressos www.sympla.com.br/teatrosergiocardoso

MORADORES DO BIXIGA E BELA VISTA

50% de desconto nos ingressos

O Teatro Sérgio Cardoso e as produções seguem rigorosamente os protocolos estabelecidos pelo Governo do Estado e pela Prefeitura da capital para ocupação dos espaços culturais durante a pandemia de COVID-19.

FICHA TECNICA

Vidas à Margem

Dia 16 de janeiro, sábado, às 19h

Texto: Grupo TAPA.

Direção: Eduardo Tolentino de Araujo.

Elenco: Flávio Tolezani e Natália Gonsales.

Fotos: Ronaldo Gutierrez.

Captação de Vídeo e Fotografia da Transmissão: Gito Fernandez.

Operação de Áudio: Lucas Bulhões.

Design Gráfico: Mau Machado.

Assistência de Produção: Natália Beukers.

Produção Geral: Ariel Cannal.

Duração: 40minutos.

Classificação etária: 14 anos.

Assessoria de imprensa

Adriana Balsanelli

Renato Fernandes

SERVIÇO

Grupo Tapa – retomada da mostra on-line – Teatro Aliança Francesa.

 Peças: Vidas à Margem, dramaturgia original do grupo no dia 16 de janeiro; O Urso, de Anton Tchekhov em 23 de janeiro; e Despedida de Solteiro, de Arthur Schnitzler, em 30 de janeiro.

Ingressos: R$ 20 (Ingresso único), R$ 35 (SOS TAPA), R$ 50 (SOS TAPA), R$ 75 (SOS TAPA), e R$ 100 (SOS TAPA).

Venda ingressos e acesso à transmissão: Sympla.com.br/teatroaliancafrancesaonline

Especificação técnica: baixar o aplicativo Zoom, preferencialmente no PC ou notebook. Também é possível assistir por tablet, celular ou emparelhamento com Smart TV.