Sem choro e sem vela
Pare de chorar, enxugue os olhos, não fique triste: o teatro existe e resiste. Quer sair desta tristeza? Agir para aumentar a potência desta paixão, ajudar o palco a conquistar corações vadios, mas merecedores? Tenho uma ideia. Coisa bem simples. O resultado, porém muda tudo.
Aposte na história do teatro, invista na memória cênica. Você já reparou que à fragilidade do teatro, entre nós, corresponde o esgarçamento de nossa memória cênica? Vivemos numa relação superficial, epidérmica, com a magia do palco? A cena passa e seguimos indiferentes, sem nos deixar levar?
Você não acha doloroso perceber que uma deusa tal como Dulcina de Moraes caminha para ser um nada na nossa mente coletiva? E Paulo Autran, você aceita que ele desapareça? Se as plateias deliravam por Leopoldo Fróes e Chaby Pinheiro, Itália Fausta ou Oscarito, está certo que suas figuras tenham sido suprimidas das sensibilidades, estejam se tornando apenas alimento de traças vorazes?
É isto. Portanto, pegue a deixa e se torne protagonista de uma revolução necessária – comece a cultivar a História do Teatro. Para quem ama teatro, não custa grande esforço, nem físico, nem sentimental. Vários acervos on line podem ajudar a sua luta. Você pode encontrar relíquias estonteantes no CEDOC da Funarte, na Biblioteca Nacional, no Instituto Moreira Salles.
Mas pode também passear – ir longe do Rio de Janeiro. Em Portugal, tanto a Biblioteca Nacional como o Museu do Teatro ou o CET, ligado à Universidade de Lisboa, oferecem maravilhosas condições de pesquisa à distância, para perceber algo da profunda intimidade histórica existente entre o palco dos dois países.
Sim, vivemos no Brasil momentos de aflição. A hora de agora dói, mesmo que não se possa dizer que vivemos por aqui, em algum tempo, uma vida de conforto quanto à História e à memória. Gosto sempre de ter consciência clara a respeito do país em que vivo, um país capaz de incendiar o Museu Nacional. O fato sozinho assusta, é escabroso. Olhar o conjunto da obra nacional no campo da liquidação cultural, aterroriza qualquer alma.
Rezo todos os dias para uma provável Nossa Senhora das Bibliotecas, suplicando que proteja a Biblioteca Nacional. Tenho certeza de que a santa existe, só pode existir, caso contrário a BN já teria sumido. Por que razão digo isto? Pessimismo? Claro que não.
Está bem – tenho um trauma pessoal com a BN, uma aventura escondida que me mantem assustada. Da adolescência. Eu estava com doze anos, no segundo ano ginasial, e precisava fazer um trabalho sobre Gonçalves Dias, o primeiro poeta por quem me apaixonei. O segundo, claro, foi Castro Alves.
Nos livros de casa – contávamos com uma pequena biblioteca – não consegui dar conta da pesquisa. Passei a importunar o meu pai, para resolver o problema. Objetivo e um tanto louco, ele me levou à BN e me deixou por lá. Foi paixão à primeira vista.
Até hoje acho engraçado como eu, uma criança, consegui rastrear sozinha o catálogo, escolher os livros que eu queria e pedir para a bibliotecária. Depois de longa demora, recebi uma pequena pilha de livros caindo aos pedaços, mofados, amarrados com barbante, uma decepção. Foi difícil e sofrido consultar aquele amarfanhado de papéis velhos. Os outros livros que pedi, faltaram ao encontro – o andar deles estava com uma praga de pulgões e nenhum exemplar poderia sair de lá.
Fiquei estarrecida diante do meu caso de amor frustrado. Os exemplares que consultei eram apenas dedicados à fortuna poética, material que em boa parte eu já tinha. Eu precisava consultar estudos biográficos. Falei com a bibliotecária e ela, muito atenciosa, lamentou o fato e declarou que eu só poderia encontrar solução indo até a Academia Brasileira de Letras (!). Ela me explicou o caminho e eu lá fui.
A Academia não era uma instituição para consulta pública – e definitivamente não era para uma criança de doze anos. Fui recebida com espanto. Mas as pessoas acharam graça, ficaram admiradas com o meu jeito decidido e justamente neste momento chegava um acadêmico, sem fardão. Anos mais tarde, descobri que era Raimundo Magalhães Júnior. As recepcionistas falaram com ele e ele resolveu me ajudar.
Ganhei uma cadeira na recepção, com uma mesa. De pé, o acadêmico passou a me contar toda a vida de Gonçalves Dias, pausadamente, para que eu anotasse. Muitos dados eu já reunira, ele apresentou algumas informações novas, mas… a experiência foi um deslumbramento, claro.
Até então, nunca imaginara que fosse possível pegar um cidadão e pedir: conte a vida do tal poeta assim assado, para que a criatura soltasse o verbo e fosse ilustrando a tarde como quem conta uma história qualquer de invenção. Descobrir que a poesia podia andar em intimidade com a vida corrente foi revolucionário. Sobretudo ali, naquela tarde, depois de ver as obras do poeta e sobre o poeta mergulhadas em pulgões.
A bibliotecária me enganou, é verdade, mas ela provavelmente nunca soube da lição que me ofereceu sobre as chances da arte no Brasil: a arte aqui depende exclusiva e diretamente das pessoas. Mas não de qualquer pessoa, sim das pessoas que decidem amar a arte como valor supremo. Já as instituições, podem ser celeiros de pulgões.
Portanto, se você acredita que viver sem arte, não é viver, mexa-se, antes que acabe por virar um rochedo inerte embrutecido, como os tantos tais que odeiam os exercícios requintados da sensibilidade. Há muito o que fazer. Por exemplo? Uma urgência do momento que demanda a sua energia é a SBAT. Você vai permitir que ela se acabe, vai manter os seus braços cruzados?
Mas há ainda um pouco mais ao seu alcance – na rede, tente despejar arte, uma gota de arte por dia que seja. A rede, a internet, se tornaram o grande shopping center do nosso tempo. O comércio grassa descabelado. Então, vale temperar o mercantilismo com arte pura, toda a arte.
Existem muitas outras iniciativas a favor da memória e da difusão da arte: estou envolvida neste momento com um sensacional encontro de historiadores do teatro. Com apoio da Faperj, o acontecimento ficou restrito ao virtual por conta da pandemia. Trata-se de uma iniciativa do Grupo de Pesquisa História do Teatro Brasileiro, integrante do Diretório de Grupos do CNPq.
Falo do I colóquio teatro e sociedade – novas perspectivas da história social do teatro. Participei da organização, com os professores Henrique Gusmão e Valmir Aleixo. E confesso: estamos exaustos, mas nossa alegria não tem fim. Ainda no dia de hoje, que acaba de passar, contamos com uma conferência emocionante, do Professor Jean-Claude Yon, sobre o teatro e a imprensa do século XIX. Teremos ainda conferências com os Professores Georges Banu e Jorge Dubatti.
Há também, no colóquio, um olhar amplo para o fato teatral, com experiências diretas de formação. Assim, um belo minicurso sobre produção teatral abordará este campo tão urgente e tão pouco trabalhado, com a experiente Professora Deolinda Vilhena. E segue a roda. Ao lado de seminários dedicados às pesquisas em andamento, três mesas redondas integradas por especialistas focalizam temas prioritários – imprensa, público, ator e sociedade, dramaturgia e sociedade…
Portanto, gente amiga do teatro, gente amante das artes, a cena não se faz sozinha, nem interessa aos poderes instituídos, pois ela representa, exatamente, nesta época tão conturbada, a afirmação de um poder novo. O poder cidadão. Sem choro nem vela, não permita que cuidem, à sua revelia, do seu enterro social: vá a luta a favor da arte. Nenhum outro meio apresenta capacidade semelhante à arte, para enxugar os olhos humanos cansados dos excessos do nosso tempo.
Na foto, Professor Georges Banu.
PARA CONFERIR COM UM CLIC:
https://www.funarte.gov.br/cedoc/